(O Globo, 28/11/2015) Apesar da predominância de homens na literatura, autoras levaram principais troféus
Agora é que são elas nos prêmios literários. No ano em que a campanha #LeiaMulheres ganhou as redes e as livrarias, só escritoras venceram nas categorias romance e conto das quatro premiações mais importantes do país cujos resultados já foram divulgados. No Prêmio Jabuti, Maria Valéria Rezende, com o romance “Quarenta dias” (Alfaguara), e Carol Rodrigues, com o livro de contos “Sem vista para o mar” (Editora Edith), foram as escolhidas. No Prêmio Literário da Biblioteca Nacional, venceram Tércia Montenegro, com o romance “Turismo para cegos” (Companhia das Letras), e de novo Carol Rodrigues. Na categoria ficção, do Prêmio da Academia Brasileira de Letras, Ana Miranda ganhou com o romance “Semíramis” (Companhia das Letras). E o Prêmio Sesc de Literatura foi dado, pela primeira vez, a duas mulheres: Sheyla Smanioto, com o romance “Desesterro” (Record), e Marta Barcellos, com o livro de contos “Antes que seque” (Record).
Seriam esses resultados sinais de que, finalmente, estaria sendo superada a baixa presença feminina na cena literária brasileira? As vencedoras concordam que se trata de uma boa notícia, mas apontam que o caminho até o reconhecimento ainda é bem mais árduo do que o dos homens. Carol Rodrigues ressalta que as mulheres estão muito presentes em toda a cadeia de produção do livro. No entanto, diz ver “uma certa falta de fé” nas autoras, algo que ela própria sentiu em relação a seu trabalho.
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— Senti uma certa falta de fé da parte de algumas pessoas, a mesma falta de fé que por muito tempo eu mesma senti, que fez minha avó parar de escrever na minha idade, em tempos mais obscuros, a mesma falta de fé que faz mulheres talentosas pararem de escrever até hoje. A boa notícia é que minha avó voltou a escrever no ano passado e vejo nesse microcosmo um começo de superação — conta Carol.
As personagens do romance “Desesterro”, de Sheyla Smanioto, são mulheres fortes e sofridas. Contudo, a busca pela dicção literária própria que lhe rendeu o Prêmio Sesc foi longa.
— Quando comecei a escrever, eu era um homem que morava no Centro de São Paulo e caminhava para comprar cigarros. Eu não fumo, sempre morei em periferias, mas quando ia escrever tinha esse narrador que grudava em mim, fazia-se semelhante ao óbvio, um personagem que eu tive que matar aos poucos no processo de descobrir quem eu sou como escritora, por que eu escrevo, para quem minhas palavras se desdobram — afirma Sheyla.
Os números do Prêmio Sesc dão a dimensão da distância entre homens e mulheres. De quase 2 mil inscrições recebidas em 2015, 71% foram de homens e 29% de mulheres. O escritor Henrique Rodrigues, assessor do Sesc e um dos responsáveis pelo concurso, confirma que os homens venceram mais vezes e sempre foram maioria entre os inscritos, mas espera que o resultado de 2015 incentive mais mulheres a participar no ano que vem. As inscrições começam em janeiro.
— Acredito que ainda seja uma predominância histórica do acesso do homem aos espaços em geral, e a literatura é mais um deles — diz Rodrigues, que lembra um caso curioso. — Nas duas vezes em que a Luisa Geisler venceu o prêmio, ela se inscreveu com pseudônimos masculinos.
PRECONCEITO ESTRUTURAL
Luisa, que há um ano escreveu um artigo no GLOBO criticando a escassez de mulheres em prêmios, feiras e antologias, diz que a opção na época foi fruto mais de intuição do que uma atitude política. A escritora tem dúvidas de que os resultados deste ano representem uma virada.
— Eu me baseei muito mais em um sentimento de que, se eu usasse um nome feminino, seria vista como uma “autora mulher” e não simplesmente como “um autor” — afirma. — O meio literário não é uma bolha machista em um Brasil paz e amor só de igualdades. Existe ainda algo estrutural na criação de meninos e meninas. Há um longo caminho pela frente.
Marta Barcellos concorda que a baixa representatividade das mulheres está relacionada ao preconceito. Na sua opinião, não é algo consciente, mas se deve ao próprio enraizamento do machismo na sociedade brasileira:
— Parece mais “natural”, por exemplo, eleger um escritor homem para representar a literatura brasileira em um evento. A mulher é a exceção, aquela que não é homem, enquanto o escritor homem, com seu personagem masculino e seus “temas” masculinos, parece produzir uma literatura mais “universal”. É uma bobagem, claro: a boa literatura não tem gênero. Mas muita gente rotula o livro escrito por mulher como “mulherzinha”, sem nem ler.
Para a escritora Ana Miranda, os prêmios são para livros, não para mulheres ou homens. Ela concorda que, por as mulheres terem sido excluídas da educação durante séculos, a presença feminina nos cânones é menor. No entanto, não se deve cair na vitimização, diz a escritora, que hoje vê uma boa representatividade feminina:
— Há muito mais mulheres escrevendo livros hoje. Vejo nas viagens de escritores uma boa representatividade feminina, a todo instante novas escritoras despontando. Para onde vou, as mulheres estão realizando coisas fabulosas.
O sucesso da campanha #LeiaMulheres e do clube de leitura homônimo, que, em menos de um ano, já está presente em dez capitais e em cidades do interior, é outro indicativo da mobilização feminina. No caso dos clubes, homens também podem participar, mas a mediação e a escolha dos livros é sempre feita por elas. Para uma das fundadoras da iniciativa, Juliana Gomes, apesar dos prêmios, é preciso avançar em outros campos:
— Em muitos eventos não vemos mediadoras e organizadoras, nas mesas as autoras são entrevistadas apenas por homens. Se levantarmos a situação da mulher negra, é ainda mais destoante. É um longo caminho para seguirmos, mas neste ano pudemos ver que há, sim, luz no fim do túnel.
Leonardo Cazes
Acesse o PDF: Em 2015, os prêmios literários são das mulheres (O Globo, 28/11/2015)