Este é um dos textos produzidos no âmbito do projeto de pesquisa “Zika e microcefalia: Um estudo antropológico sobre os impactos dos diagnósticos e prognósticos das malformações fetais no cotidiano de mulheres e suas famílias no estado de Pernambuco”. Os textos partem de histórias marcantes e intensas que foram relatadas por mulheres da Grande Recife que estão, no momento, vivendo a maternidade de crianças com a síndrome congênita do vírus Zika.
Coordenado pela professora Soraya Fleischer, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, o projeto teve início em 2016 e conta com o apoio da FINATEC/UnB e do CNPq. Fazem parte da equipe estudantes de graduação e mestrado que, a cada semestre, viajam ao Recife para conversar com as famílias diretamente atingidas pelo surto.
Uma das propostas do projeto é a criação de pequenos textos, de até 3 páginas, para contar histórias marcantes que a equipe ouve em campo, para lançar questões que possam provocar e manter na pauta o tema da epidemia e suas consequências e para levar dados científicos a um público mais amplo. Algumas dessas histórias estão publicadas no blog https://microhistorias.wixsite.com/microhistorias.
“Enquanto eu aguentar, eu vou levar ele no braço, para onde eu for, eu vou carregar”
A síndrome congênita do vírus zika acionou atenção constante. As mães dos bebês com microcefalia são as principais protagonistas nos cuidados diários que demandam tempo, esforço, recursos e uma mudança total da rotina doméstica anterior ao nascimento da criança. As “mães de micro”, como se autodenominam, são mulheres que, principalmente, caminham atrás de atendimento, remédio e informações para seus filhos. Mas outras pessoas se envolvem com esses cuidados demandados por crianças com intensas deficiências, como irmãs, avós, vizinhas, parentes e amigos. Assim, quais são as dificuldades encontradas por cuidadoras que não são especificamente a mãe da criança?
Marcela é uma “avó de micro” de 41 anos de idade. Enquanto sua filha Clara vai trabalhar, é ela que circula com Caio no colo várias vezes por semana entre ônibus, consultas e terapias de reabilitação. Desde a gravidez de Clara até o momento, a avó Marcela é que sabe de todos os acontecimentos, das demandas de seu neto, os significados de cada um de seus choros, assim como seus gostos singulares por um determinado tipo de terapia em detrimento de outra.
Clara tem 23 anos e morava só com seu marido, mas com a chegada de Caio, tiveram que se mudar para uma casa menor, “casulo”, como é apelidada por Marcela, mãe de Clara. É nesse “casulo” que Caio recebe afeto e atenção, não só por parte de seus pais e sua avó Marcela, mas também por outros parentes que, vez ou outra, são mobilizados para que fiquem com a criança. Essa aceitação é o apoio mais importante recebido por Caio.
Marcela também teve sua vida transformada com a vinda de seu neto. Antes dele, viajava bastante com seu marido caminhoneiro, passava até 15 dias fora visitando parentes e passeando. Atualmente, nas suas idas sozinha às reuniões dos grupos e ONGs de apoio na Grande Recife, fica ansiosa pelo momento em que retornará para casa e poderá ver seu netinho novamente. Ela não o leva com ela, dada a distância, o peso da criança e ao estresse que pegar dois ônibus e caminhar pela cidade pode produzir na criança.
O convívio intenso e diário com Caio foi fazendo com que Marcela desenvolvesse uma consciência de suas capacidades, e ela não se deixa levar por toda e qualquer sugestão de profissionais de saúde. Uma vez, uma equipe médica ordenou a colocação de uma sonda gástrica após Caio ter tido uma crise de broncoaspiração do alimento. Os médicos insistiam que a criança nunca havia conseguido engolir, mas Marcela foi firme em dizer que seu neto sabia deglutir, e que uma crise convulsiva provocou o retrocesso, havia feito com que esquecesse como mastigar e engolir. Ela garantiu à equipe que ensinaria tudo a ele novamente e, portanto, não havia necessidade de usar sonda. Marcela acredita que os médicos não dão esperança de um futuro para as crianças. Segundo ela, só os próprios familiares é que estimulam essa expectativa.
A “avó de micro”, assim como as “mães de micro”, também aprendeu progressivamente coisas a partir da vivência com seu neto. Por conta de olhares maldosos e de reprovação na rua e no transporte público, Marcela privava Caio do contato com pessoas fora da sua rede. Contudo, a partir de encontros e de vivências com outras mães, avós e cuidadoras de bebês com microcefalia promovidos por ONGs e grupos de apoio ao redor da cidade, ela percebeu que não estava sozinha e que tinha que incluí-lo no meio social. Afinal, segundo ela, são os outros que devem se adaptar à presença da criança, e não ao contrário. Ela explica: “A gente tem que lutar para incluir nossos filhos”.
A possibilidade de suporte dada por Marcela à sua filha e ao neto acabou por fazer ser possível rearranjos financeiros, já que o marido de Clara se encontrava desempregado e o salário de Clara, como atendente de telemarketing, é baixo. Os custos com a criança eram muito altos, e incluíam desde medicamentos, leite, fraldas até a hidroterapia que Marcela faz questão de pagar porque sabe o quanto seu neto gosta e pode evoluir ao estar dentro da piscina.
O apoio familiar que Clara possui de sua mãe e da família não é uma realidade evidente entre suas contemporâneas. Ao contrário, o descaso e a desatenção – até por parte da família – eram recorrentes na fala de grande parte das mulheres entrevistadas por nossa pesquisa. A presença e o apoio concreto de Marcela possibilitam que Clara trabalhe fora e tenha a certeza de que seu filho estava sendo bem cuidado em casa, que continua frequentando suas terapias reabilitadoras e que não vai ser discriminado por conta de sua deficiência por onde circular na cidade. Essa base e suporte são fundamentais em tempos de arrocho financeiro, medos e inseguranças sentidas pelas jovens mães de micro.
Lucivânia Gosaves é graduanda em Ciências Sociais na Universidade de Brasília.