A ativista e investigadora brasileira Sonia Corrêa esteve em Lisboa e conversou com o Esquerda.net sobre a primavera feminista que tem sacudido o Brasil e também sobre os avanços e os recuos, na já tão longa luta pelo fundamental direito ao aborto.
(Esquerda.net, 27/01/2018 – acesse no site de origem)
Sonia Corrêa é feminista e investigadora em estudos de género, com inúmeras publicações na área dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Desde 2002, é também co-coordenadora, com Richard Parker (EUA/Brasil), do fórum global Sexuality Policy Watch(link is external)(Observatório de Sexualidade e Política), e investigadora associada da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e do Departamento de Estudos de Género da London School of Economics and Political Science(link is external).
No final de dezembro de 2017, Sonia Corrêa esteve em Lisboa e conversou com o Esquerda.net sobre a primavera feminista que tem sacudido o Brasil, desde 2015, e também sobre os avanços e recuos na já tão longa luta pelo fundamental direito ao aborto. Não há desistências, “em 2018, as feministas vão estar na rua!”, garantiu-nos.
“Um feminismo plural, colorido e cheio de corpo”
Sobre a então denominada “primavera feminista”, Sonia Corrêa fez questão de começar por referir que o movimento feminista brasileiro “tem uma história larga” e “remonta ao século XIX”, exemplificando com a luta pelo direito à educação, a das mulheres abolicionistas e “a luta das mulheres escravas rebelando-se contra a escravidão”. Também após os anos 70 do século passado, continuou, “a chamada última onda feminista” constituiu-se num movimento importante, com “energia”, provocando “mudanças legislativas” e “trazendo novos temas”, ligados também à sexualidade, como o direito ao aborto.
Se há algo de novo na “primavera feminista” brasileira, a ativista destacou o facto deste movimento implicar um retorno a uma prática de “política de resistência, política de fronteira e de rua”, rompendo, desta forma, com o antecedente “processo de institucionalização”, muito ligado também ao “processo de democratização”. Em 2015, considerou ainda, “o feminismo toma as ruas” e tem esse “sentido de política de contestação”, concretizada por “uma nova geração de mulheres, muito mais plural” e “mais diversa”, do ponto de vista étnico-racial, das sexualidades e das identidades de género. “É também um feminismo que traz a radicalidade das palavras de ordem e da presença do corpo nu e pintado na rua”, disse ainda, sublinhando que se trata de um “feminismo plural, colorido e cheio de corpo”.
Sonia Corrêa notou também que este movimento surge como “resposta a uma tentativa de restrição do direito ao aborto”, por iniciativa do então deputado federal Eduardo Cunha, que hoje está preso (tendo sido condenado por corrupção, no âmbito da operação Lava Jato), e no contexto do que considera ser “o contexto da restauração conservadora” brasileira. Corrêa lembrou ainda que a atual lei brasileira, que regula o acesso legal à interrupção voluntária da gravidez, remonta aos anos 40 e é “muito restritiva”, permitindo o aborto apenas em caso de risco de saúde para a mulher, de violação e, a partir de alterações muito recentes, também nos casos de anencefalia.
Não por acaso, o último momento mais ativo e mediático da primavera feminista brasileira teve lugar em dezembro passado, “com mais uma tentativa de retrocesso no direito ao aborto”.
“O aborto clandestino é a quarta causa de morte materna no Brasil”
Para compreendermos melhor esta já tão longa luta por direitos sexuais e reprodutivos no Brasil, em particular, a luta pelo fundamental direito ao aborto seguro, pedimos a Sonia Corrêa que nos explicasse melhor como tem sido esse caminho de resistência feminista. Além disso, como poderemos fortalecer os laços de solidariedade feminista transacional? O que é hoje essa realidade “clandestina” do acesso ao aborto, no Brasil, e quais os perigos legais e de saúde que as mulheres enfrentam, quando se encontram na situação de uma gravidez indesejada?
Apesar da lei que criminaliza a interrupção voluntária da gravidez, prevendo exceções, de modo muito restritivo e apenas nos casos já mencionados, remontar aos anos 40, o primeiro serviço de aborto legal só foi criado em 1999, em São Paulo, e como “resultado da mobilização feminista dos anos 80 e 90 do século passado”, explicou a investigadora.
Além disso, continuou, porque “o Misoprostol é proibido desde os anos 90”, este medicamento “chega por redes clandestinas” e a sua venda ilegal é um crime enquadrado numa moldura de penalização penal muito agravada. O acesso ao “aborto médico”, que “reduz a 90 por cento os riscos de complicações”, lembrou Corrêa, é então mesmo muito difícil. As consequências desta situação são pesadamente trágicas, levando a que o aborto clandestino seja hoje “a quarta causa de morte materna no Brasil”.
“Em 2018, as feministas vão estar na rua!”
Sobretudo nos últimos anos, o direito a decidir e, do outro lado, a criminalização do aborto têm estado envoltos num intricado processo jurídico-legal, marcado pela relação de forças entre os movimentos feministas e de esquerda, e as várias ondas conservadoras que vão encontrando o seu caminho na sociedade brasileira e tomando importantes lugares de poder. Sonia Corrêa falou-nos sobre como os sectores religiosos, por exemplo, têm feito pressão, um pouco por todo o mundo, para que “o direito à vida desde a conceção” seja inscrito no ordenamento constitucional dos Estados. A Constituição brasileira, referiu a investigadora, “não inclui o direito à vida ‘desde a conceção’”, porém, “a Igreja Católica tem feito pressão” e os primeiros países a ceder “foram Malta, na Europa, e o Chile, durante a ditadura de Pinochet”.
Em 2015, no Brasil, foram então apresentados dois projetos legislativos: “o primeiro morreu na praia”, contou Corrêa, pois este partiu da iniciativa do agora ex-deputado Eduardo Cunha, que foi preso na altura. O segundo, partiu da ação de um senador “pastor evangélico” e trata-se de uma “uma emenda constitucional para incluir o direito à vida desde a concepção”. Este diploma “continua em tramitação no Senado brasileiro”, explicou.
Porém, prosseguiu a investigadora, em novembro de 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou “um caso criminal sobre aborto, envolvendo médicos e enfermeiros” e, nesse contexto, “foi emitida uma opinião, na qual uma turma de juízes defendeu a inconstitucionalidade das restrições e da criminalização do direito ao aborto”. Esta situação teve “dois desdobramentos”, explicou Corrêa, referindo que a consequência positiva concretizou-se numa petição entregue no STF, em março de 2017, a favor da despenalização do aborto (a pedido da mulher e até às 12 semanas), uma iniciativa do PSOL, apoiada por movimentos feministas.
O “desdobramento negativo” foi a oportunidade encontrada pelas “forças conservadoras e contrárias ao direito ao aborto”, que se aproveitaram da já conhecida ‘PEC 181’, uma ‘Proposta de Emenda Constitucional’, já aprovada no Senado brasileiro e que “estava em tramitação”. Embora esta emenda tenha surgido, inicialmente, no sentido de “ampliar a licença de maternidade para mulheres com filhos prematuros”, os movimentos conservadores conseguiram introduzir, no mesmo diploma, “o direito à vida desde a conceção”. “Agora, a PEC está a ser debatida numa comissão especial, composta por 18 homens e uma mulher, todos contrários ao direito ao aborto”, lamentou Sonia Corrêa. Como seria de esperar, nestas condições, a PEC 181 vai fazendo o seu caminho, que é também de “retrocesso”, no que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, e já foi aprovada naquela instância, em outubro do ano passado.
Como relatou a investigadora e também ativista, “a reação feminista foi imediata e houve um regresso às ruas”, levando a que o debate sobre o direito ao aborto voltasse a ser colocado no espaço público “de uma maneira muito intensa”.
Sonia Corrêa contou-nos ainda o conhecido “caso de Rebeca”, ou seja, a história de uma “corajosa” mulher negra que, encontrando-se na situação de uma gravidez indesejada, “solicitou, ao Supremo Tribunal de Justiça, uma autorização para o acesso ao aborto medicamentoso”. A decisão foi negativa e Rebeca Mendes acabou por realizar a sua interrupção voluntária da gravidez, de forma segura, mas deslocando-se à Colômbia, “onde este direito é garantido, em caso de dano psicológico para a mulher”, tendo sido esta a razão invocada. “Este caso, de uma mulher corajosa, deu uma nova energia ao movimento que resiste à PEC 181”, afirmou Corrêa, descrevendo ainda como “a votação final tem sido adiada”, graças a vários procedimentos regimentais, “no sentido de adiar a decisão final para a próxima legislatura”.
Aliás, defendeu, por agora, esta “é a única estratégia possível, dada a atual situação política do Brasil”. Na sua opinião, nas próximas eleições presidenciais de 2018, as questões sobre o direito ao aborto estarão em cima da mesa e presentes no debate eleitoral. “Será uma eleição muito difícil, os horizontes para o próximo ano são difíceis de predizer”, disse, acrescentando que também haverá luta e é preciso solidariedade internacional: “Em 2018, as feministas vão estar na rua!”.
Sofia Roque