Quantos hospitais públicos realizam o aborto legal no Brasil? Em quais estados e municípios o procedimento é realizado? Por que essas informações não estão facilmente disponíveis nos portais do governo? Foi a partir desses questionamentos que a Artigo 19 Brasil e América do Sul, organização que luta pela liberdade de expressão e peflo acesso à informação, criou o Mapa do Aborto Legal, a primeira ferramenta que mapeia os hospitais do SUS habilitados a realizar o aborto legal no país.
Ainda que a legislação brasileira garanta o direito ao aborto para pessoas que gestam em casos de violência sexual, anencefalia fetal e risco de vida da pessoa gestante, os obstáculos para acessar o procedimento começam muito antes da porta de entrada do hospital. O estigma, o preconceito, o moralismo e o avanço do conservadorismo são elementos que ajudam a explicar esse cenário, mas há uma barreira anterior que impede que quem precisa acessar o serviço saiba onde buscá-lo: a falta de transparência pública em saúde.
Investigar a intersecção entre acesso à informação e o direito ao aborto legal por meio da disponibilidade e qualidade das informações produzidas pelo Estado é o que tem direcionado a pesquisa do Mapa do Aborto Legal, iniciativa construída pela Artigo 19, desde 2019. Em todas as atualizações, a ferramenta evidenciou obstáculos que se convertem em barreiras concretas ao acesso ao procedimento, em desacordo com a legislação brasileira, as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) e os tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário.
Em 2020, a pesquisa revelou os impactos da pandemia sobre a rede de acolhimento a pessoas que necessitavam do aborto legal; em 2022, destacou a ausência de informações de qualidade e a disseminação intencional de conteúdos falsos em materiais oficiais; e agora, em 2025, a pesquisa “Mapa do Aborto Legal: Direitos reprodutivos na encruzilhada da informação”, revela a grave falta de padronização nas bases de dados públicas e protocolos de atendimento nos hospitais autorizados a realizar o aborto legal no Brasil.
Com uma nova metodologia, que cruza (i) os hospitais listados no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) sob a categoria “Serviço Especializado de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual”, (ii) a base de dados pública do Ministério da Saúde (SIH/DataSUS) e (iii) as informações sobre serviços que realizam aborto legal disponibilizadas pelas Secretarias Estaduais de Saúde, a atualização de 2025 chegou ao número de 416 hospitais públicos indicados pelo Estado como aptos a realizar o procedimento.
Diferentemente dos anos anteriores, a nova metodologia buscou ampliar os filtros de análise por nível de confirmação. Isso significa que, ao invés de classificar os hospitais por “realizam” ou “não realizam” o aborto legal como era feito anteriormente, o Mapa agora apresenta quantas e quais confirmações foi possível obter sobre o serviço — se houve a confirmação em nível federal, estadual e/ou local pelo Estado.
Fonte: Pesquisa “Mapa do Aborto Legal: Direitos reprodutivos na encruzilhada da informação” (Artigo 19, 2025).
Com a divisão dos serviços listados por região, fica evidente a grave desigualdade territorial na garantia do acesso ao aborto legal no Brasil: mais de 40% dos equipamentos públicos estão concentrados na Região Sudeste, enquanto o Norte e Centro-Oeste somam, respectivamente, apenas 40 e 29 serviços. No Acre e em Roraima, por exemplo, só foi possível identificar um hospital apto a realizar o procedimento em todo o Estado.
Ainda que os dados sejam essenciais para escancarar as diferentes realidades espalhadas pelo país, eles não revelam toda a complexidade da temática. A impossibilidade de cruzar informações de forma interseccional a partir das bases públicas disponíveis, as quais sequer possuem a categoria “identidade de gênero”, evidencia, por exemplo, uma grave lacuna na produção e disponibilização de informações públicas sobre o acesso ao aborto legal de homens trans, pessoas transmasculinas e não-binárias. Essa problemática demonstra não apenas os impactos na autonomia de grupos vulnerabilizados sobre seus corpos, mas igualmente no acesso a políticas públicas e a tomada de decisões informadas sobre direitos sexuais e reprodutivos.
Aborto legal em disputa nos Poderes
Além de obstáculos estruturais relacionados à transparência de dados sobre saúde, são recorrentes denúncias quanto à intervenção negativa dos poderes públicos no oferecimento de serviços de aborto legal.
Seja pelo fechamento de serviços de referência por parte do Executivo, como, por exemplo, no caso do Hospital Vila Nova Cachoeirinha, na cidade de São Paulo; no Judiciário, pelos votos emblemáticos recentemente proferidos no julgamento da ADPF 442; ou mesmo no Legislativo, pela propositura de textos que visam criminalizar o aborto, como o PL 1904/2024, que tinha por objetivo equiparar o aborto ao crime de homicídio simples.
Em resposta a este cenário, de forma inédita, foi adicionada à metodologia do Mapa do Aborto Legal o monitoramento legislativo, dadas as crescentes preocupações da Artigo 19 com o aparecimento de propostas de lei estaduais e municipais que visavam obstruir o acesso à informação ou o acesso a procedimentos de interrupção de gravidez. A pesquisa traz como resultado um crescimento expressivo no número de proposições legislativas sobre aborto legal a partir de 2022.
O levantamento considerou territórios que possuem ao menos um serviço de aborto legal habilitado, segundo a base de dados do CNES, resultando em 26 unidades federativas e 111 cidades pesquisadas, entre os anos de 2019 e 2024. Ao todo foram localizados 193 projetos de lei, sendo 91 em âmbito municipal e 102 na esfera estadual. Concluiu-se que cerca de 40% dos PLs objetivaram obstruir o acesso ao aborto legal e 48% tentaram dificultar a circulação de informações sobre o tema.
A pesquisa aponta para a consolidação de uma estratégia coordenada entre parlamentares do campo conservador, que abarca a reprodução massiva de textos legais em diferentes estados e municípios com o objetivo de promover retrocessos a direitos assegurados.
Sem justiça reprodutiva não há democracia
O Mapa do Aborto Legal evidencia que a justiça reprodutiva está na encruzilhada da informação: se, por um lado, cresce o reconhecimento de que informações confiáveis, acessíveis e baseadas em evidências são condição indispensável para a autonomia e para o exercício pleno dos direitos sexuais e reprodutivos; de outro, o cenário local frequentemente se move em direção contrária, com desinformação, censura e políticas restritivas que limitam o acesso à informação, transformando direitos em privilégios e não os consolidando enquanto garantias universais.
Os caminhos apontam que garantir o acesso ao aborto legal exige mais do que marcos legais e decisões judiciais: requer transparência na gestão de políticas públicas, acesso igualitário aos equipamentos de saúde em todos os territórios, reconhecimento e respeito a todas as pessoas atendidas. Somente com informação de qualidade, acolhimento e compromisso institucional será possível transformar o que hoje é um direito restrito em exercício pleno de liberdade, dignidade e acesso à justiça reprodutiva.
Taynara Lira é advogada, bacharela em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, promotora legal popular e assessora no programa de Proteção e Participação Democrática da Artigo 19 Brasil e América do Sul.
Caê Vatiero é jornalista, pós-graduado em Jornalismo de Dados, assessor na equipe de Proteção e Participação Democrática da Artigo 19 Brasil e América do Sul. É cofundador e diretor institucional da Transmídia, primeira agência de jornalismo de pessoas trans do Brasil. Trabalhou na Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) e foi um dos primeiros jornalistas transmasculinos a participar do programa Roda Viva, da Tv Cultura, em 2023.
