Faltam políticas públicas de proteção para todas as mulheres, sejam indígenas ou não, aponta Elizângela Baré

23 de maio, 2022

Elizângela da Silva, da etnia Baré, socióloga

(Juliana Vieira/Agência Patrícia Galvão) Violência sexual, destituição dos territórios, extermínio dos corpos e culturas indígenas marcam a construção da história do Brasil. Em abril deste ano, a denúncia do estupro e assassinato de uma menina Ianomâmi de 12 anos, da comunidade Aracaçá, na região de Waikás, Roraima, repercutiu por todo o país.

Duas meninas encontradas mortas, uma dos povos indígenas Kaingang, no Rio Grande do Sul, e a outra dos Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Daiane Griá Sales, de 14 anos, e Raíssa da Silva Cabreira, de 11, foram assassinadas em agosto de 2021. Ambas com sinais de estupro.

A cada 20 dias, uma mulher amazônica é vítima de feminicídio, aponta o  monitoramento Um vírus, duas guerras, de 2020, uma parceria colaborativa entre mídias independentes que mostrou um crescimento de 67% dos assassinatos pela condição de ser mulher e por discriminação de gênero em relação ao mesmo período de 2019.

Em dez anos (2010 a 2019), 4.681 registros de lesão corporal, ameaças de morte ou estupro de mulheres indígenas em São Gabriel da Cachoeira, cidade do Amazonas, região norte. Mais de 1 caso por dia.

Casos brutais, dados e pesquisas compõem um contexto profundo de violação dos direitos de gênero das meninas e mulheres indígenas que fazem parte dos cerca de 350 povoamentos originários resistentes hoje. Para dar visibilidade a todas essas violências e buscar formas de mitigação e proteção às mulheres, o projeto Mulheres Indígenas, Gênero e Violência no Rio Negro é realizado por lideranças indígenas, em conjunto com o Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Dmirn/Foirn), o Observatório da Violência de Gênero no Amazonas/UFAM, o Instituto Socioambiental e a Faculdade de Saúde Pública da USP. Entre suas ações destacam-se a formação de promotoras legais populares indígenas e a produção e divulgação de material informativo em linguagem indígena, como a  cartilha Violência doméstica e violência sexual em tempos de pandemia. Redes de apoio e denúncias: você não está sozinha!.

Em entrevista para o Boletim Violência de Gênero em Dados, do Instituto Patrícia Galvão, uma das autoras da cartilha, a socióloga Elizângela da Silva, da etnia Baré, analisa o atual cenário de violência de gênero, ausência de políticas públicas para o bem viver das mulheres e implementação de uma política de extermínio dos povos originários. Também conhecida como Elizângela Baré, participa desde 2010 do projeto Mulheres Indígenas, Gênero e Violência no Rio Negro, foi coordenadora do Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro da Foirn de 2017 a 2020 e uma das finalistas do Prêmio Inspiradoras 2021, na categoria Conscientização e Acolhimento.  

Em 10 anos, foram registrados 4.681 casos de violência contra mulheres em São Gabriel da Cachoeira, no alto do Rio Negro, no extremo noroeste da Amazônia, o que corresponde a uma mulher vítima a cada dia de lesão corporal, ameaças de morte ou estupro, entre outros crimes, segundo o levantamento do Projeto Mulheres Indígenas, Gênero e Violência no Rio Negro. Qual é a importância desse dado? O que ele revela e também, por conta da subnotificação dos casos, o que ele não mostra e é importante destacar?

Elizângela Baré: A importância do dado é para que a gente possa trabalhar a conscientização, possa propor e cobrar das instituições públicas políticas voltadas à proteção das mulheres, indígenas ou não. Estes dados ajudam a gente a falar: ‘olha, aqui na nossa região os casos de violência contra a mulher estão muito altos, precisamos criar políticas para defender as mulheres do noroeste amazônico, ter regras para que quem cometeu a violência possa pagar. Os casos devem chegar até quem cuida dos direitos, como juízes, delegados e os demais da segurança pública’.

Os casos que mais se destacam são por causa da bebida. A mulher é espancada, é afetada psicologicamente. Além da violência contra as crianças, como o estupro, principalmente por parentes, o que prejudica nossos povos indígenas. Através destes dados precisamos reivindicar. Precisamos também demonstrar para aquela mulher que está sendo vítima de alguma violência que a situação que ela vive não é certa, que a violência não é da nossa tradição.

A partir da experiência da elaboração da cartilha sobre violência doméstica e violência sexual em tempos de pandemia com foco em mulheres indígenas, qual é a sua avaliação sobre as diversas formas de violência de gênero praticadas contra as indígenas e como implementar políticas públicas que garantam efetivamente proteção? 

Elizângela Baré: Faltam bastante políticas públicas para o bem viver das mulheres. Precisamos de políticas de proteção para as mulheres, sejam indígenas ou não. Esse tema da violência precisa ser dialogado dentro das escolas e das comunidades, dentro dos territórios indígenas, porque muitas vezes não sabemos lidar com ele. Para nós, mulheres indígenas, é difícil o cumprimento da Lei Maria da Penha, por exemplo, pelos vários artigos e incisos, que acabam não fazendo parte da nossa realidade.

Assim, a experiência de elaborar a cartilha visa criar diálogo com as mulheres indígenas, fazer com que possam diferenciar o que é violência e o que é tradição. Este é o foco da cartilha: ajudar na proteção, no bem viver das mulheres indígenas. Por isso foi escrita em língua indígena e em língua portuguesa, para ajudar em como expressar conforme a realidade da mulher indígena, já que são 23 povos indígenas no território do Rio Negro.

Hoje a maior barreira é a de conscientizar as mulheres e diferenciar o que é ou não tradição. Seguimos muitas coisas, somos cuidadoras do lar, repassamos as línguas aos nossos filhos. Mas tem coisas que já são de fora e precisamos saber se fazem bem a nossa saúde, a nossa família.

O trabalho no Rio Negro é um pouco este, explicar para as mulheres, traduzir a palavra que o branco escreveu em português sobre lesão corporal, ameaça de morte, estupro, falando que estas atitudes não são da nossa tradição, mas sim são ameaças de gerar desarmonia, desorganizar nosso território, nossa comunidade. E, para que isso não aconteça, a gente precisa estar sempre ciente, conscientizar as jovens, crianças, as nossas mulheres e as nossas lideranças para trabalhar contra as violências, que a gente pode não ver, pode ser abstrata, mas está no nosso dia a dia.

No fim de abril, ganhou grande repercussão na mídia o caso da menina Ianomâmi de 12 anos, estuprada e assassinada na comunidade Aracaçá, em Roraima, mais um crime grave que se une a outros que compõem a nossa história, estruturada a partir do genocídio e da violência sexual contra as populações indígenas e negras. Como você analisa o cenário atual de violência contra meninas e mulheres nos 305 povoamentos indígenas resistentes do Brasil? E o que pode ser feito para transformar esta realidade?

Elizângela Baré: A situação é muito difícil, sendo Ianomâmi, sendo Baré, sendo Pataxó, somos povos indígenas. E acredito que estamos passando por um cenário não só de volta da violência doméstica, da violência contra as mulheres, estamos em um processo muito difícil de violência contra nossos direitos. A nossa Constituição brasileira está passando por violência, porque muita gente que está dentro do poder está com vendas nos olhos, no poder executivo, municipal, estadual. As pessoas que poderiam estar fazendo a nossa proteção, que poderiam colocar a Constituição na prática, não estão fazendo. E hoje passamos por violações – violações dos direitos das crianças, das mulheres, dos povos indígenas.

O caso da menina Ianomâmi em pleno século 21, em um mundo globalizado, cheio de tecnologia. E os nossos direitos?  As meninas têm direitos, as mulheres têm direito, temos direito à saúde, tem tudo na Constituição que nos ampara, mas não é cumprida. Os mais de 300 povos indígenas do Brasil estão passando por diversas violações que acontecem agora, neste momento. Os povos originários estão sendo violados.

Tudo o que diz respeito a nós – a natureza, a água, nossos territórios – estão sendo ameaçados pelo minério, querem o território para isso. Mas lá está toda nossa vida, está a nossa salvaguarda. A floresta é a nossa mãe terra, a floresta é que nos salva, a floresta é que nos dá vida, são as árvores que nos dão vida. Quanto mais destruição da natureza em nome do desenvolvimento mais seremos violentadas. As nossas casas estão sendo violentadas, não respeitam a mata, não respeitam nossas terras.

E o mais doloroso é a falta de respeito pelo ser humano, somos seres humanos, indígenas e seres humanos. Hoje o desrespeito acontece, começa por quem deveria fazer a lei acontecer a nosso favor, por quem deveria proteger e está destruindo. Isso é muito doloroso.

Somos impactados, principalmente as mulheres indígenas, quando nos violentam e matam nossas crianças. Sentimos desânimo, um grande vazio dentro do nosso território, queremos viver com humanidade. Cada criança indígena que morre, a gente sente. Fica o vazio.

Sobre o Boletim Violência de Gênero em Dados

Realizado com apoio do Consulado Geral da Irlanda em São Paulo, o Boletim Violência de Gênero em Dados divulga mensalmente uma seleção de estatísticas e dados de estudos realizados por órgãos governamentais, institutos de pesquisa e organizações da sociedade civil, sobre os diversos tipos e formas de violência contra as mulheres, com curadoria da equipe do Instituto Patrícia Galvão. Para receber o boletim por e-mail, inscreva-se neste link.

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