Feminismo significa uma oportunidade extraordinária para sermos melhores pais e homens mais justos
(El País, 13/08/2017 – acesse no site de origem)
Em muitas partes do mundo, no segundo domingo de agosto é comemorado o Dia dos Pais. Que bom! Além celebrar a vida, os relacionamentos, reconhecer nossos antepassados ou aumentar as vendas de furadeiras, sapatos ou perfumes de certas empresas, é uma oportunidade extraordinária para fazer uma revisão crítica da paternidade e o papel que os homens devem ter na criação, com uma visão feminista.
Todas as estatísticas mostram que o envolvimento dos pais no trabalho reprodutivo e cuidados dos filhos continua sendo dolorosamente desigual. E, embora a tendência para posições e práticas mais igualitárias tem tido um aumento lento, mas constante nas últimas décadas, é especialmente visível no pequeno número de pais que reduzem suas horas de trabalho ou que tiram licenças para cuidar dos filhos (menos de 7%). É por isso que o Dia dos Pais, além da celebração, deveria se transformar em uma data para a reflexão sobre as relações de gênero que os homens estabelecem com as mulheres com quem convivem e o compromisso de mudar para atitudes e práticas mais igualitárias. Ou o que é o mesmo, reivindicar de forma igualitária aquilo que vamos fazer os outros 364 dias.
A mensagem de Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora executiva da ONU Mulheres, por ocasião do Dia Internacional da Mulher, nos lembrava que muitas mulheres e meninas do mundo todo dedicam um número excessivo de horas para as responsabilidades domésticas. Normalmente, dedicam a trabalhos reprodutivos e de cuidados mais que o dobro do tempo que os homens e meninos. Esta divisão desigual do trabalho não remunerado, essencial para que a vida seja possível, está diretamente relacionada com a limitação das possibilidades de empoderamento e emprego de mulheres e meninas.
Aproximadamente 80% dos homens serão pais biológicos em algum momento de suas vidas e quase todos os homens têm alguma interação socializadora com meninas e meninos. Como nos lembra Silvia Nanclares, as opções das pessoas que optarem pelo “extincionismo” são tão legítimas quanto aquelas que decidiram se reproduzir. Mas para que a vida continue, os pais são importantes e impactam. Leitor, leitora, eu os convido a refletir uns segundos sobre nosso pai, devemos pensar e sentir como influenciou o pai que tivemos (ou que se ausentou), o tipo de relacionamento que estabeleceu conosco, no que hoje somos e fazemos. (De passo faço minha pequena homenagem ao meu, um bom homem, um bom pai).
Sejam pais biológicos, padrastos, adotivos, substitutos ou tutores; sejam irmãos, tios, ou avôs; sejam parte de uma relação do mesmo sexo ou do sexo oposto; e vivam ou não com seus filhos, a participação dos homens no cuidado diário de outros tem uma influência duradoura na vida das meninas, meninos, mulheres e homens, assim como um impacto permanente no mundo ao seu redor.
Os pais, por ausência ou presença, fornecem modelos de identidade de referência sobre o que é ser um homem, que vão produzir efeitos profundos e perdurar toda a vida, especialmente na construção das identidades e expectativas de vida, tanto de suas filhas como de seus filhos. A partir desta visão crítica da realidade, cada vez contamos com mais evidências científicas de que o envolvimento dos homens na criação e nos trabalhos reprodutivos é um fator central para a transformação da realidade em termos de paradigmas sociais e de relações mais justas e igualitárias.
A paternidade positiva, que é, por definição, igualitária, presente, comprometida e equitativa, é um poderoso fator de transgressão e transformação dos papéis sociais culturalmente designados aos homens, apresentando vantagens que são comprováveis para as meninas, meninos e os casais que convivem com esses homens.
Quando falamos de paternidade positiva, nos referimos ao processo de transformação da identidade dos pais (homens) como cuidadores, o que significa grandes mudanças no comportamento através da participação ativa na criação, fundamentado nos melhores interesses das crianças. Trata-se de pais que se envolvem ativamente nos cuidados e trabalhos reprodutivos, desempenhando papéis e práticas igualitárias, facilitando e apoiando o empoderamento e desenvolvimento ideal do casal. São práticas de paternidade que desenvolvem e ampliam as capacidades emocionais e pedagógicas daqueles que as exercem. Estamos nos referindo a formas de ser pai baseadas em paradigmas pacíficos e de deslegitimação da violência. São paternidades que oferecem reconhecimento e orientação às crianças, incluindo o estabelecimento de limites.
A mudança dos homens para atitudes mais igualitárias, além de ser uma demanda justa das mulheres, é uma questão política de primeira ordem, aceita pelas instituições europeias, mas que os Estados (como o espanhol) resistem sistematicamente em aplicar e desenvolver. Não devemos esquecer que, no contexto da União Europeia, o Plano de trabalho para a igualdade entre as mulheres e os homens 2006-2010 (mais conhecido como o roteiro para a igualdade) estabelece que “os homens deveriam ser incentivados a assumirem suas responsabilidades familiares, especialmente incentivando-os a desfrutar de licenças de paternidade e compartilhar com as mulheres o direito a essas autorizações”.
Nas conclusões de uma investigação sobre paternidades positivas, Mudanças e desafios no envolvimento dos pais na criação e responsabilidade conjunta, que coordenei no ano de 2016 para o Governo basco, constatamos que o momento da paternidade-maternidade é fundamental para a igualdade no âmbito familiar. O aumento das necessidades de cuidados que ocorrem, gera necessariamente mudanças nas relações, que podem representar uma oportunidade única para estabelecer novos pactos de convivência igualitária e corresponsável no casal e no sistema familiar, ou ao contrário, perpetuar e aguçar os papéis de gênero tradicionais, em detrimento das possibilidades de empoderamento das mulheres.
Outras das conclusões principais da investigação é que ideologicamente tanto os homens como as mulheres valorizam em um alto grau de igualdade em nossas relações, mas que as práticas igualitárias, especialmente a mudança nos homens dependem mais de elementos estruturais como a existência ou de licenças de paternidade e maternidade iguais e intransferíveis ou de que seu parceiro tenha um emprego melhor remunerado e de maior qualificação, que se identifiquem com a igualdade ou o feminismo. O que significa que há mais chances de que um pai seja mais corresponsável na medida em que sua parceira esteja mais empoderada no local de trabalho, ainda que seja mais conservador ideologicamente, que um homem feminista que seja o principal provedor econômico.
O panorama dos pais. Em 2015 foi apresentado em Nova York, na sede da ONU Mulheres, o Panorama do Estado dos pais no mundo (State of the World’s Fathers). Algumas das principais conclusões, apoiadas em investigações contrastadas destacam vários fatos.
A paternidade positiva é um fator de saúde. Contribui para que as filhas e os filhos cresçam mais saudáveis. Existe constatação de que o envolvimento do pai afeta as crianças, tanto quanto a participação da mãe. A intervenção dos pais está relacionada com um aumento do desenvolvimento cognitivo e do rendimento acadêmico, uma melhor saúde mental das crianças, bem como menores taxas de delinquência entre meninos. Estudos realizados em vários países mostraram que a interação dos pais é importante para que seus filhos e filhas adquiram empatia e habilidades sociais.
A paternidade positiva contribui para o empoderamento das mulheres. Facilita que as mulheres e meninas de hoje alcancem seu máximo potencial. Ao ser corresponsável pelos cuidados e tarefas domésticas, os homens apoiam a participação das mulheres na força de trabalho e na igualdade das mulheres em geral. A paternidade equitativa também é transmitida de geração em geração: foi comprovado que contribui para que os meninos aceitem a igualdade de gênero e que as meninas tenham sentido de autonomia e empoderamento.
Incide diretamente na redução da violência contra as mulheres. Foi confirmado mediante estudos que certas formas de violência, em particular a violência perpetrada por homens contra suas parceiras, frequentemente são transmitidas de geração em geração. Os dados obtidos em oito países revelaram que os homens que, em sua infância, viram sua mãe apanhar, de adultos tinham de duas a duas vezes e meia mais probabilidades de usar a violência contra sua parceira. Enquanto que uma divisão mais equitativa dos cuidados está associada a uma redução nos índices de violência contra os meninos e as meninas. Por exemplo, um estudo representativo do país realizado na Noruega descobriu que as taxas de violência perpetrada pelas mães e pais são mais baixas nos lares onde os cuidados proporcionados por ambos eram mais similares.
A paternidade positiva deixa os homens mais felizes e saudáveis. Os pais que se apegam de forma mais positiva aos seus filhos e filhas afirmam que essa relação é uma das razões mais importantes de seu bem-estar e felicidade. Alguns estudos indicam que os pais que possuem uma relação estreita e sem violência com seus filhos e filhas vivem mais, têm menos problemas de saúde mental ou física, têm menos tendência a abusar das drogas, são mais produtivos em seus trabalhos e dizem que se sentem mais felizes que os pais que não dizem ter esse tipo de relacionamento com seus filhos e filhas.
Produz benefícios econômicos. Se as mulheres participassem no mercado de trabalho tanto quanto os homens, estima-se que o produto interno bruto (PIB) aumentaria 5% nos EUA, 9% no Japão, 12% nos Emirados Árabes Unidos e 34% no Egito. Há muitas evidências de que conceder licença familiar com salário é bom para os negócios: melhora a retenção de pessoal e reduz a rotação, aumenta a produtividade e eleva o moral, e até diminui o absentismo e os custos de capacitação.
Meninos e meninas, mulheres e homens se beneficiam quando os pais tiram licença paternidade. A licença paternidade é um passo vital para que se reconheça a importância de compartilhar o cuidado das crianças e constitui um meio importante para promover seu bem-estar e a igualdade de gênero nos lares, no trabalho e na sociedade como um todo.
Definitivamente, a paternidade, para muitos de nós, foi a experiência de vida mais comovedora, profunda e transformadora (mas também perturbadora e incapacitante, e às vezes angustiante) que tivemos a sorte de escolher viver. Como provavelmente teria dito hoje Simone de Beauvoir, “não se nasce pai, torna-se pai”, e o feminismo significa uma oportunidade extraordinária para “se tornar” melhores pais e homens mais justos. E nessa confusão compartilhada, que enfrentamos em equipe, podemos aproveitar para aprender a nos liberarmos juntas, enquanto somos “mães” e “pais”. Feliz dia. Feliz vida.