(O Globo, 11/05/2016) Meu ativismo não é contra as mulheres brancas — nunca seria, nunca será! —, é a favor das mulheres pretas
“Pensando a arte de forma política, trabalhamos com as questões de gênero e raça tendo como missão o fortalecimento, a emancipação e o empoderamento de mulheres, sobretudo Mulheres Negras, por compreendermos as demandas diferenciadas desse grupo e a consequente necessidade de iniciativas que deem a atenção necessária a este segmento da população.”
O texto acima é parte do manifesto do Balé das Yabás, grupo de Mulheres Negras que propõe a reflexão sobre o protagonismo da mulher na sociedade a partir da mitologia dos Orixás. Sinara Rúbia e Ludmilla Almeida guiam, uma vez por mês, uma tarde inteira de discussão sobre o feminino e sobretudo sobre a estética negra feminina.
Aprendi com elas que os mitos, ou itans (como são chamados no candomblé), são narrativas das histórias vividas por nossas ancestrais, que se manifestam nas nossas práticas cotidianas, que se personificam nos nossos fazeres diários, justificando e dando sentido a estes fazeres.
A enxurrada de e-mails e mensagens após a publicação da coluna “Os golpeados” me fez pensar muito nesses fazeres cotidianos, ou melhor, nessas escritas quinzenais. Eu, como boa filha de Oxum, estou por aqui cortando caminho na terra para as águas passarem. E não se engane, as águas sempre encontram um caminho. Mulheres e homens de longe e perto me escreveram para declarar sua “infelicidade” ao terminarem de ler a coluna e sua partilha de sofrimento, seja pela perda de um ente querido, seja pela dor em saber das estatísticas de jovens negros que morrem neste país todos os dias. Ainda assim, mesmo as mensagens que elogiavam a escrita e o conteúdo declararam que o fato de eu ter escrito que “mães não deveriam enterrar seus filhos, menos ainda as mães pretas” os deixou chocados.
“Você acha então que as mães brancas valem menos?”
“Se minha mulher tiver um filho e ele morrer nosso sofrimento será menor?”
“Você está incitando uma guerra racial!”
“Você está praticando racismo reverso!”
Sejamos didáticos: RA-CIS-MO-RE-VER-SO- NÃO-E-XIS-TE. Racismo envolve poder, privilégio, preconceito e, principalmente, estrutura institucional. Por isso, calma!
Dito isto, é também importante deixar claro que há coisas neste mundo que não precisam de divulgação: a heterossexualidade, a branquitude, o homem, o cabelo comprido e liso, o corpo magro. Elas não precisam de divulgação pois são a regra desde que me entendo por gente. É só ligar a TV, ver a capa de uma revista, procurar a imagem dos ícones de beleza, de sucesso.
Meu ativismo não é contra as mulheres brancas — nunca seria, nunca será! —, é a favor das mulheres pretas. O motivo da minha escrita Audre Lorde (mulher preta maravilhosa e ativista dos direitos civis americanos) escureceu antes mesmo de eu nascer:
“Como mulheres, alguns de nossos problemas são comuns, outros não. Vocês, brancas, temem que seus filhos ao crescerem se juntem ao patriarcado e testemunhem contra vocês. Nós, em contrapartida, tememos que tirem os nossos filhos de um carro e disparem contra eles à queima-roupa, no meio da rua.”
Mas falemos de nossa terra, de nossa contemporaneidade. O “Mapa da Violência 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil’’, realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), a pedido da ONU Mulheres, identificou que o Brasil ocupa a 5ª posição no ranking global de homicídios de mulheres, entre 83 países pesquisados. Em 2013, a taxa de mortes mulheres por assassinato para cada cem mil habitantes foi de 4,8 casos. A média mundial foi de dois casos. Foram 4.762 mulheres mortas violentamente no país naquele ano: 13 vítimas fatais por dia.
Mas vamos às pretas: a década 2003-2013 teve aumento de 54,2% no total de assassinatos desse grupo étnico, saltando de 1.864, em 2003, para 2.875, em 2013. Aproximadamente mil mortes a mais em dez anos. Em contraposição, houve recuo de 9,8% nos crimes envolvendo mulheres brancas, que caiu de 1.747 para 1.576 no mesmo período. Outra pesquisa, dessa vez do IBGE, mostrou que entre todos os segmentos da população, a mulher negra é a que se sente mais insegura em todos os ambientes, até mesmo em suas próprias casas.
A taxa de analfabetismo entre mulheres negras é duas vezes maior que entre mulheres brancas, e isso, claro, se reflete nos números do desemprego, que entre as brancas é de 9,2%, enquanto entre as mulheres negras, ultrapassa os 12%. E digamos que ambas estejam empregadas: as mulheres negras recebem, em média, 40% a menos. Talvez por isso 70% das famílias que recebem o Bolsa Família sejam chefiadas por mulheres, mulheres pretas.
Não busco divisões, eu amo todo mundo: branco, loiro, ruivo, oriental, mas quem foi arrastada pelo camburão foi a mulher de pele preta, quem foi espancada até a morte pela polícia na frente do filho foi a mulher preta, quem morre porque faz um aborto é a mulher preta, quem perde a relação com a família porque tem que cuidar da família dos outros é a mulher preta. Então dizer que a intensidade no tom da pele não importa é hipocrisia demais pro meu coração.
Termino essa série esperançosa de que todas as mães tenham tido um feliz Dia das Mães, mas principalmente as mães pretas.
Acesse o PDF: Feminismo didático parte 2 — As mães pretas, por Ana Paula Lisboa (O Globo, 11/05/2016)