Há algum tempo tem ocorrido o fenômeno de criação de coletivos feministas na USP. Atualmente contabilizam 27, distribuídos em diversas unidades. Compostos de gerações de mulheres mais jovens, em sua maioria alunas, os coletivos têm marcado espaço, principalmente contra a violência a que mulheres vêm sendo submetidas.
Porém, um fenômeno também tem acontecido. Ministro na ECA-USP as disciplinas para a graduação Comunicação, Culturas e Diversidades Étnico-sociais e Comunicação, Subjetividade e Representações. As duas abordam a questão das subjetividades e elementos simbólicos, fazendo interseção com as culturas e as comunicações.
(Jornal da USP, 22/03/2017 – acesse no site de origem)
Há alguns semestres tenho sido tomado de sobressaltos ao falar de gênero em minhas aulas, que é um dos conteúdos das duas disciplinas. Ao abordar a temática, algumas alunas indignadas costumam dizer que não posso falar sobre gênero porque estou tirando o protagonismo das mulheres; interromper uma aluna que está se alongando em uma fala ou questioná-la sobre determinado assunto tem sido considerado silenciamento das mulheres.
Preocupado com os diferentes casos que aconteciam em classe, resolvi perguntar aos outros professores homens se estavam tendo experiências semelhantes e descobri que sim. Palavras como silenciamento, provocações acadêmicas e retirada de protagonismo são argumentações frequentes.
Para entender melhor o processo atual, resolvi levar ao Diversidade em Ciência, programa de entrevistas que dirijo e apresento na Rádio USP, voltado para a questão das diversidades e direitos humanos, a temática. Convidei o Coletivo Poligen, da Escola Politécnica da USP, e o Coletivo Feminista Lélia Gonzalez, dos cursos de Ciências Sociais e Filosofia da FFLCH-USP.
A entrevista, que foi ao ar na segunda semana de março, foi elucidativa e pude perceber que os coletivos feministas da USP têm características diferenciadas, indo desde os de tendência radical, passando pela assistencial até a intersecional, e que não há consenso entre eles, mas um certo respeito pelas linhas ideológicas adotadas.
Venho estudando há algum tempo o feminismo, é o intersecional que considero mais interessante e contemporâneo e é sobre ele que falarei neste artigo.
Ao falar em feminismo intersecional alguns nomes são imprescindíveis, como Kimberlé Crenshaw, que cunhou este nome em 1989, Angela Davis e Judith Butler.
O feminismo intersecional é o mais interessante porque ele transforma objetos em sujeitos e as suas idiossincrasias, fazendo a interseção entre classes sociais, etnia, orientações sexuais, transexualidade, dentre outros.
A pesquisadora Kinberlé Crenshaw, que é professora de Direito da Universidade da Califórnia e da Universidade de Columbia, vem desenvolvendo o conceito e constituindo o campo teórico da interseção das desigualdades de raça e de gênero e a teoria legal afro-americana e do feminismo.
Para ela, o feminismo intersecional são “formas de capturar as consequências da interação entre duas ou mais formas de subordinação: sexismo, racismo, patriarcalismo”, conforme aborda em sua obra Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero.
Ao trazer a questão da transversalidade, Crenshaw amplifica o feminismo, movimento que muitas vezes traz mais as demandas das mulheres brancas e burguesas. Ela ressignifica os feminismos e traz para o centro dos debates as diversidades. Ela ainda reconhece que Angela Davis foi importante no processo de elaboração do conceito da intersecionalidade.
A ativista Angela Davis, ao escrever em 1981 o livro Mulheres, raça e classe, já trazia a questão da intersecionalidade, apesar da inexistência do termo. Questões sobre as mulheres negras e as suas classes foram importantes tópicos de sua obra e também o questionamento sobre a opressão da mulher negra pela mulher branca.
A obra de Angela Davis é tão contemporânea que foi relançada em 2016, com o título Angela Davis: mulheres, raça e classe, pela Editora Boitempo. O livro traz questões da história de liberdade da mulher negra, nos Estados Unidos; a campanha pelos direitos civis das mulheres negras, o movimento sufragista; as demandas das mulheres trabalhadoras; as mulheres comunistas; os direitos reprodutivos, como o aborto, dentre outros.
Outra pesquisadora e ativista que vai possibilitar o entendimento da intersecionalidade é a filósofa Judith Butler, da Universidade da Califórnia, em Berkeley, com a Teoria Queer.
A Teoria Queer é apresentada na obra Problemas de gênero, de Butler. Essa teoria vai afirmar que a identidade sexual e a orientação sexual são construções e que não existem papéis sexuais essenciais ou biologicamente inscritos na natureza humana.
Esse pensamento vai confrontar o feminismo radical, que não considera as demandas das pessoas transexuais como sendo feministas. Diferente do feminismo intersecional, que as coloca como uma questão a ser analisada.
O filme Preciosa: uma história de esperança, de Lee Daniels, permite entender melhor a questão da intersecionalidade. No filme, a personagem Claireece “Preciosa” Jones é uma adolescente de 16 anos, negra e obesa. É abusada pela mãe; violentada frequentemente pelo pai, de quem contrai Aids, além de ficar grávida dele, tendo uma criança com síndrome de Down. Com dificuldade de aprendizado e grávida do pai pela segunda vez, é expulsa da escola.
Considero que o filme, baseado na obra da escritora Sapphire, é uma metáfora da intersecionalidade, uma vez que transita em questões como gênero, etnia, sexualidade, estética corporal e tantas outras.
O feminismo intersecional é um dos grandes avanços para a discussão de gênero. Diferente do feminismo radical, ele alarga o debate e impede que se reduza a questão a interesses de mulheres brancas burguesas, que limitam o debate ao silenciamento de tudo que possa ser diferente delas, inclusive as suas empregadas domésticas negras, exploradas por questões de classe e etnia.
Ricardo Alexino Ferreira é professor associado/livre-docente da ECA-USP e membro da Comissão de Direitos Humanos da USP