Judith Butler: “O queer é uma aliança de pessoas em vidas precárias”

14 de setembro, 2015

(Débora Prado/Agência Patrícia Galvão, 14/09/2015) Em sua primeira visita ao Brasil, a filósofa norte-americana Judith Butler participou do I Seminário Queer – Cultura e Subversões das Identidades, organizado pela revista Cult e pelo Sesc, em São Paulo. Ícone da teoria queer e autora de livros que desafiaram e abriram novas questões para o feminismo, Butler falou sobre precariedade, vulnerabilidade e resistência aos participantes, que haviam esgotado as inscrições para o evento em apenas 45 minutos semanas antes.

Judith-Butler_SescVilaMariana_09-09-2015

A autora de “Problemas de Gênero – Feminismo e subversão da identidade” foi recebida com entusiasmo por acadêmicos, pesquisadores e ativistas de movimentos de mulheres, queer e LGBTI. A diversidade do público talvez já fosse um indicativo do que Butler ambiciona para sua obra: que seja construtora de alianças entre aqueles que contestam normas hegemônicas.

“Um aspecto de que gosto muito na minha teoria é que ela tem uma dimensão de alianças. É pensar no queer como uma possibilidade de alianças contra diversas formas de precariedade que afetam as pessoas no mundo contemporâneo”, definiu a filósofa em entrevista coletiva que antecedeu sua participação no seminário.

“O queer é uma aliança de pessoas em vidas precárias, não é uma disputa por quem está mais precário, nem quer dizer que todas as precariedades se equivalem, mas que há alianças possíveis”, comentou a antropóloga e pesquisadora do Departamento de Antropologia Social da USP Beatriz Accioly, que acompanhou a reportagem da Agência Patrícia Galvão no evento.

Para Butler, o queer não é uma identidade, mas uma aliança em uma direção diferente daquela que é esperada. “Pertencer a um movimento queer é contestar as normalizações dominantes, restritivas e excludentes, e o próprio processo de normalização”, frisou.

Essas normas, segundo Butler, são apoiadas por instituições e condições estruturais, e constituem vulnerabilidades sociais para aqueles que não se enquadram nas expectativas criadas socialmente para o masculino e o feminino e na respectiva suposta linearidade entre sexo, gênero e desejo que está associada a essas expectativas.

“Somos afetados e estamos vulneráveis a discursos que nunca escolhemos. Héteros que não querem se casar ou ter filhos ou ser monogâmicos também questionam normas”, exemplificou, mostrando que as normas não restringem as possibilidades apenas de pessoas trans, bis ou homossexuais. E em sua fala Butler fez questão de se referir ao movimento LGBTI, para incluir os intersexuais.

Resistência ao gênero

Judith-Butler03_SescVilaMariana_09-09-2015Para Judith Butler, apesar de presente na vida de todas as pessoas, a categoria de gênero sofre muita resistência entre grupos conservadores porque as pessoas pensam que, com o gênero, o sexo deixaria de existir. “Mas o gênero não é a negação do sexo, ele simplesmente abre questões do tipo: como conhecemos e entendemos o sexo? Como interpretamos os fatores biológicos?”, desconstrói a filósofa.

Butler aponta que é preciso considerar a complexidade do mundo e reconhecer que essa não é uma questão fechada. “Não se trata de ser contra ou a favor do gênero, é algo que se vive o tempo todo. Está presente quando uma pessoa se questiona, por exemplo: “Que tipo de homem quero ser? Quero ser alguém que agride mulheres? Não”. E é bom que ele possa reposicionar o que significa para ele ser homem em um sentido ético”, analisou.

Butler afirmou ainda que não é possível desarticular a teoria queer do feminismo. “Se você é contra o machismo, tem que ser contra a homofobia. Há alianças muito fortes e temos que olhar para elas. Pensar, por exemplo, a violência contra as mulheres junto com a violência contra pessoas trans, já que são violências baseadas no controle do gênero ou da sexualidade de pessoas”, ponderou.

Precariedade

A filósofa destacou ainda que, para além das normas de gênero, é preciso olhar para a questão da precariedade articulada com a desigualdade econômica e privação política que hierarquiza corpos, criando grupos de pessoas ‘merecedoras’ de direitos e outras, “designadas como dispensáveis e indignas de luto”.

Ao se debruçar sobre a precariedade, a filósofa amplia a gama de alianças ao associar questões como a exclusão econômica, o racismo, a homofobia e a misoginia na criação de vulnerabilidades e resistências.

“Nos últimos anos tenho visto que esse movimento funciona melhor quando fazemos alianças com aqueles que lutam contra desigualdades econômicas. E, quando pensamos na precariedade, em pessoas com falta de perspectivas econômicas, sem acesso à educação – as mulheres estarão desproporcionalmente nessas estatísticas”, apontou.

Para exemplificar, Butler lembrou do alto número de assassinatos da juventude negra cometidos pela polícia no Brasil: “vocês vivem com o fato de que milhares de pessoas são mortas anualmente pela polícia e menos de 1% desses assassinatos viram processos penais. Isso nos possibilita observar como o racismo funciona no sentido de permitir que algumas populações sejam livremente assassinadas enquanto outras são intensamente protegidas”, pontuou.

Este “regime de violência legal” afeta também a vida de pessoas trans, queer e mulheres, que estão “vulneráveis a mortes violentas”, aponta Butler. Fazem parte de grupos que são socialmente designados como dispensáveis ou disponíveis para serem assassinados com impunidade. São pessoas que não têm, portanto, as mesmas condições materiais de exercer a liberdade que outros grupos, uma vez que a possibilidade da violência afeta seu direito de ir e vir. “Que corpos podem ser visíveis, podem aparecer sem possibilidade de violência no espaço público?”, indagou.

Proteção paternalista e resistências

Ao ser questionada sobre leis para garantir direitos a grupos vulneráveis, Butler ponderou que a política não pode ser só pela via legal: a resistência é mais efetiva que a proteção paternalista, avaliou. “Por um lado pode ser importante ter uma lei, mas seria ingênuo achar que a lei resolve o problema. As leis podem passar e simplesmente não serem aplicadas, por exemplo. Esse é um paradoxo que não dá para pensar no abstrato, pois depende da melhor estratégia em contextos específicos. A lei pode trazer visibilidade para uma questão, mas não pode ser o centro de uma luta”, refletiu.

Para Butler, vulnerabilidade e resistência estão imbricadas. A filósofa propõe pensar que é justamente ao resistir que se traz visibilidade à vulnerabilidade.

“As pessoas não se autopercebem como vulneráveis; é na resistência que você toma ciência das desigualdades. O sujeito vulnerável não existe previamente, ele é um produto da tomada de consciência da vulnerabilidade”, explica a antropóloga Beatriz Accioly.

Assista aos vídeos de todas as palestras do Seminário Queer

Veja também:

Toda cisgeneridade é a mesma? Subalternidade nas experiências normativas, por Helena Vieira e Sofia Favero (Revista Fórum, 13/09/2015)
Filósofa americana Judith Butler discute violência de gênero e dilemas éticos da política (O Globo, 12/09/2015)
“Temos que pensar o lugar de corpos movendo-se livremente dentro de uma democracia” (Revista Cult nº 205)
Judith Butler: ‘ensino de gênero nas escolas deveria ser obrigatório’ (Opera Mundi, 11/09/2015)

Nossas Pesquisas de Opinião

Nossas Pesquisas de opinião

Ver todas
Veja mais pesquisas