A diretora de cinema Marina Person conta que, na primeira vez que foi contratada para fazer uma propaganda, com menos de 20 anos, o fotógrafo a agarrou logo após a sessão de fotos.
(BBC Brasil, 12/10/2017 – acesse no site de origem)
“Eu fiquei sem entender o que estava acontecendo e não tive coragem de contar para minha mãe, por medo de que ela não me deixasse nunca mais trabalhar com isso”, afirma ela, que começou a carreira como modelo e VJ da MTV.
Conhecendo dezenas de histórias como a dela, Person diz que, infelizmente, não ficou nem pouco chocada ou surpresa ao ler sobre o caso recente do produtor de cinema americano Harvey Weinstein, acusado por mais de vinte atrizes, modelos e assistentes de assédio sexual.
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O jornal The New York Times e a revista New Yorker publicaram neste mês reportagens com relatos e documentos indicando que Weinstein – um dos executivos mais poderosos de Hollywood – havia estuprado três mulheres e praticado assédio sexual repetidamente durante quase 30 anos.
Desde então dezenas estrelas do cinema – incluindo atrizes como Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow – foram a público contar como o produtor havia se aproveitado da sua posição e poder para assediá-las.
Weinstein, que tem negado acusações de estupro, foi demitido de sua companhia, a Weinstein Company, e deixado pela mulher, a estilista Georgina Chapman, com quem era casado havia dez anos.
No Brasil, o debate sobre assédio pegou fogo no início do ano, quando o ator José Mayer foi acusado de assédio pela figurinista Su Tonani, que trabalhava na produção de uma novela da TV Globo na qual ele atuava. O ator inicialmente negou a acusação, mas depois publicou uma carta pedindo desculpas. A emissora emitiu um comunicado dizendo que condenava qualquer atitude do tipo e colocou o ator na geladeira.
Tais polêmicas levantam a questão: o assédio é um problema mais comum na indústria do entretenimento do que em outros setores da economia?
Segredo público
O caso de Harvey Weinstein tem sido apresentado pelas vítimas como um “segredo público”.
“Todo mundo sabia e ninguém fez nada a respeito”, escreveu a atriz francesa Lea Seydoux no jornal britânico The Guardian. Ela relatou que o produtor a agarrou enquanto os dois conversavam durante uma reunião que deveria ser de negócios.
A produtora Malu Andrade, que organiza o grupo Mulheres do Audiovisual – Brasil, conta que recebe diariamente relatos de assédio ocorridos no país tão chocantes quantos os das vítimas do produtor americano.
“É uma situação vivida por todas. Desde estagiárias até mulheres graúdas, que têm cargos de liderança”, diz ela.
No entanto, diz Andrade, todas as vezes em que as colegas incentivam as mulheres a denunciar abertamente, falar sobre o ocorrido com jornalistas, elas preferem ficar em silêncio.
“Elas se sentem muito inseguras. O mercado é pequeno, todo mundo se conhece, existe um medo latente e muito real de não conseguir emprego por vingança dos assediadores ou de ser prejudicada de outras formas.”
Tanto para Malu Andrade e Marina Person quanto para outras diretoras e produtoras do cinema no Brasil ouvidas pela BBC Brasil, entretanto, a sensação de que o assédio é maior na indústria audiovisual é equivocada.
“Não porque o problema seja pequeno no cinema e na TV – é muito grande -, mas porque ele é extremamente grave em todos os setores da sociedade”, afirma Person.
“Há assédio em todos os lugares – no cinema, na propaganda, no mundo corporativo, nas escolas e até nas famílias, mas ninguém quer falar disso”, diz ela, cuja produtora, a Mira Filmes, lançou há algum tempo o filme Precisamos Falar de Assédio.
“Antes de estar no cinema eu trabalhei em várias áreas e passei por situações de assédio em todas”, corrobora Rita Buzzar, roteirista de filmes como Olga e Budapeste.
Sob os holofotes
Segundo profissionais da indústria, casos como o de Harvey Weinstein chamam mais atenção pelo fato de as pessoas envolvidas serem mais famosas, terem mais dinheiro e mais acesso aos meios de comunicação.
“Em quantas empresas isso não acontece, e as mulheres não falam porque têm medo, porque precisam do emprego?”, questiona Buzzar.
“Isso sobressai mais no audiovisual porque os nomes são famosos, as pessoas estão na mídia. E é muito bom que isso aconteça, porque pode ajudar outras mulheres que acham que não podem ter voz, dar coragem para que elas também falem”, afirma a roteirista.
“A gente vê casos em todos os lugares, escritórios de advocacia, empresas de outras áreas. E muitas vezes outros setores conseguem abafar ainda mais”, diz Tatiana Quintella, que produziu filmes como A Mulher Invisível e O Homem do Futuro e foi executiva de multinacionais como a Warner Bros e a Columbia TriStar. Ela diz que também passou por inúmeras situações em que teve que enfrentar assediadores.
“Esse levante feminista recente contra esse tipo de absurdo está colocando o nosso setor sob o holofote, mas infelizmente não é algo da nossa área, é algo que se manifesta em tudo quanto é lugar, ninguém está livre”, diz Vânia Catani, produtora por trás de longas como O Filme da Minha Vida e O Palhaço.
Ela conta que nunca recebeu relatos de problemas em sua produtora – em que grande parte das funcionárias são mulheres -, mas pessoalmente passou por uma situação “absurda”.
“No Rio Content Marketing (feira do setor), fui cumprimentar uma pessoa do governo que conheço há anos e ele chupou minha orelha e deu um tapa na minha bunda, dizendo que eu estava gostosa”, conta. “Eu falei para ele que aquilo era um absurdo e até fiz um post no Facebook. Todo mundo sabe quem ele é”, conta ela, que prefere não revelar o nome do homem envolvido.
Representação
Para a cineasta Tata Amaral, a grande questão envolvendo assédio e audiovisual tem a ver com a forma como as mulheres costumam ser retratadas – apagadas ou objetificadas – em obras de cinema e TV.
“O assédio é apenas um sintoma horroroso da cultura de estupro, e as produções contribuem com isso. Você liga a TV no domingo e vê como as mulheres são objetificadas. A TV mostra uma bunda o dia inteiro. Uma mulher sem rosto, sem cabeça, só a bunda”, afirma.
“A representação das mulheres é quase sempre feita por homens, é um olhar masculino e sexualizado que contribui para essa cultura de estupro”, acrescenta, citando um dado da Ancine que diretoras e roteiristas mulheres são apenas 19% da indústria audiovisual no Brasil.
A procuradora Sofia Vilela de Moraes e Silva, vice-coordenadora do núcleo pela eliminação da discriminação do Ministério Público do Trabalho, acrescenta mais uma camada ao debate. Embora reconheça que o problema realmente existe em todas as áreas, ela afirma que algumas profissionais têm sim uma exposição maior ao assédio.
“Devido ao machismo, há uma fetichização e objetificação de algumas profissões que piora a situação para algumas profissionais”, afirma ela, que cita profissões como secretárias, enfermeiras, aeromoças, garçonetes, além de atrizes e modelos, entre as mais impactadas.
“Profissionais que lidam com o público sofrem violação não só dos empregadores, mas também dos clientes”, diz Vilela.
Dados imprecisos
O caso de José Mayer gerou a campanha #ChegaDeAssédio. Atrizes e funcionárias da Globo chegaram a usar camisetas com os dizerem “Mexeu com uma, Mexeu com todas”.
As mobilizações vão além do segmento audiovisual. Há movimentos, por exemplo, como o “Deixa Ela em Paz”, coletivo feminista de intervenções urbanas que luta contra a discriminação de gênero e pela autonomia das mulheres.
“Quando comecei na carreira, sempre tinham brincadeiras, comentários. Só o fato de você não poder usar a roupa que quer porque os caras não respeitam já é uma agressão”, diz a cinematógrafa Amanda Barroso.
Apesar da comoção, não há dados exatos sobre o quanto o problema é comum no ambiente de trabalho no Brasil.
Circula pela internet um dado atribuído à OIT (Organização Internacional do Trabalho) de que 52% das mulheres teriam sofrido assédio no emprego. No entanto, a entidade informou à BBC Brasil que a informação é falsa, e que não tem nenhuma pesquisa que aponte esse ou outro número sobre assédio sexual no ambiente de trabalho no Brasil.
Segundo a promotora Sofia Vilela de Moraes e Silva, é difícil ter um panorama do problema em números porque, além de não haver pesquisas confiáveis, casos de assédio são muito subnotificados.
“As pessoas têm receio de falar, medo de perder o emprego, de serem alienadas. A gente ouve dezenas de relatos, mas sabe que são raros os casos que chegam a órgãos externos à empresas ou ao Ministério Público Trabalho. O que alcançam a Justiça são menos ainda”, afirma ela.
Além, disso, diz, o crime acaba não sendo tão investigado ou punido internamente pelas empresas como crimes contra seu patrimônio, como um furto ou diferença de caixa.
A violação pode acontecer com ambos os sexos, mas a grande maioria das vítimas são mulheres, segundo o Ministério Público do Trabalho. E os agressores costumam ser reincidentes.
“É muito raro casos em que o homem faz isso só uma mulher específica. Em geral o comportamento se repete”, diz a procuradora.
Segundo ela, os homens têm um papel importante não só em manter a própria conduta correta. “Eles precisam topar ser testemunhas em processos e a têm a responsabilidade de não contribuir para um ambiente hostil”, afirma.
O assédio sexual é crime no Brasil. Ele é definido pelo Código Penal como um ato em que uma pessoa se aproveita de sua condição de superior hierárquico ou de posição de poder inerente ao seu cargo para obter forçosamente uma vantagem sexual.
Quando a vítima não está em uma situação de desvantagem em relação ao abusador, a prática não pode ser considerada crime de assédio, mas isso não significa que a conduta não possa ser punida.
De acordo com o Ministério Público do Trabalho, a empresa pode responder a ações trabalhistas se não tomar uma atitude.
“Ela tem a obrigação de garantir um ambiente seguro e, portanto, responsabilidade por assédios praticados por seus funcionários”, diz a procuradora Sofia Vilela.
Letícia Mori