Mães de vítimas da violência policial do Rio de Janeiro e de São Paulo inspiram o trabalho do rapper, em música que fala sobre saudade e ausência de um ente querido
(Ponte, 01/09/2016 – acesse no site de origem)
“Meu filho Johnathan de Oliveira Lima, 19 anos, saiu no dia 14 de maio de 2014 para levar a namorada em casa. Ele disse: ‘Mãe vou levar a Ingrid’’’. Desde esse diálogo, Ana Paula Gomes, 39 anos, pedagoga, ainda espera pelo julgamento do caso de seu filho, baleado pelas costas por um policial militar em Manguinhos, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Ela e outras quatro mulheres que integram o movimento Mães de Maio participam do novo clipe do rapper Emicida. A música “Chapa” versa sobre saudade e a ausência de um ente querido.
O coletivo Nós, mulheres da periferia foi convidado pelo movimento Mães de Maio para acompanhar a gravação e teve a oportunidade de entrevistar com exclusividade três mulheres que fazem parte de clipe. Antes e durante a filmagem, elas conversaram muito e cuidaram uma da outra, garantindo que todas estivessem à vontade diante das câmeras.
Em entrevista exclusiva à Ponte Jornalismo, Emicida falou que ele também poderia ser um “Chapa” e lembra o caso de Douglas Rodrigues, de 17 anos, baleado por um PM na Zona Norte de São Paulo, Vila Medeiros, em 2013. Depois de ser atingido, o jovem perguntou ao assassino: “por que o senhor atirou em mim?” “Não perguntaram nada pro Douglas. Por que iam perguntar pra mim?”, questionou o cantor.
Johnathan foi um “Chapa”. A persistente reivindicação por justiça de sua mãe Ana Paula significa continuar cuidando do seu filho, como se a sua voz fosse a dele. Lutar é preencher a ausência, que traz consequências emocionais significativas. Ela percebe uma tendência ao esquecimento de algumas coisas e dificuldade de concentração. Vira e mexe se pega com o pensamento longe. “Hoje, eu estou aí, condenada a viver o resto da minha vida com a saudade”. Alessandro Marcelino, o policial acusado de executar Johnathan, ainda está livre.
“Um dia uma amiga disse que o alvo do genocídio, dessa violência policial, é o fruto do útero da mulher negra. Tiram da gente o direito de conviver com os nossos filhos. E isso não é de agora, né? Antigamente, os filhos das mulheres negras eram tirados dos seios das suas mães para que elas amamentassem os filhos dos brancos. E algumas crianças morriam de fome, desnutridas. Isso sempre foi assim. Arrancam nossos filhos do nosso convívio”, diz Ana.
Também moradora de Manguinhos, Fátima dos Santos Pinho Menezes, de 42 anos, contou que seu filho, Paulo Roberto Pinho de Menezes, 18 anos, foi morto em 17 de outubro de 2013. Foi abordado por policiais, espancado e asfixiado. Quando ela foi ao seu encontro, ele suspirou como se a estivesse esperando chegar. Os policiais alegaram que ele teve um mal súbito, que tinha usado loló [entorpecente à base de clorofórmio]. A família pediu laudo cadavérico e constatou que a morte foi provocada por asfixia mecânica. E o laudo toxicológico comprovou que ele não havia usado drogas.
“O caso do meu filho teve quatro audiências desde então. Estamos esperando marcar outra. Vai fazer três anos já, a testemunha se perde no que aconteceu, não lembram mais a feição dos policiais. Eu mesma não lembro. Vi, mas na hora não foquei nos policiais e sim no meu filho. Podem passar do meu lado, falar comigo e eu não sei quem são. Minha mente ficou perdida, eu não gravo mais feição. A gente fica com o psicológico muito mexido”.
Débora Maria da Silva, fundadora do movimento Mães de Maio, narra o início do clipe. Relata que, logo após a morte de seu filho, Edson Rogério Silva dos Santos, de 29 anos, durante os crimes de maio de 2006, em São Paulo, ela não reagia. Isso só mudou quanto o reencontrou de outra forma. “Eu ‘cai’ em uma cama de hospital, mas ele apareceu pra mim no quinto dia e falou: ‘mãe, não adianta a senhora ficar dessa forma, eu não volto mais. Lute pelos que estão vivos’”.
E há dez anos é assim, mulheres de diferentes cidades e bairros estão unidas para denunciar o Estado, defender a desmilitarização da polícia e exigir justiça para os casos que já aconteceram e continuam acontecendo. O trabalho que o grupo desenvolve está em amparar outras mães com a mesma dor, levar informações, apoiar e incentivar essa mulher a entrar na luta. Mas o que de fato querem é que “a polícia pare de matar e deixe a favela viver”.
Também em maio de 2006 a cabeleireira e manicure Vera Lúcia dos Santos, 58 anos, perdeu de uma só vez, três familiares: a filha Ana Paula, 20 anos, grávida de nove meses da menina Bianca, que nasceria no dia seguinte, e o marido Eddie Joey Lavesagi. Os três foram assassinados em uma padaria perto da casa onde moravam, em Santos, litoral de São Paulo. “O crime deles foi o desejo que ela sentiu de tomar uma vitamina”, diz a mãe.
Vera diz que não via tristeza em sua filha. Ana Paula era bailarina, dançava axé, funk e jogava futebol. Era alegre, extrovertida, brincalhona. Tinha uma filha de dois anos, que hoje tem 12, e estava providenciando os últimos itens do enxoval da segunda filha. “Nunca imaginei que pudesse haver um policial monstro que mata uma mulher grávida de 9 meses. Meu imposto foi pago para matar minha própria filha e neta”.
Ciclo de violência, racismo e resistência
Segundo o Mapa da Violência 2016 – Homicídios por arma de fogo no Brasil, de 1980 a 2014, houve um aumento de 699,5% na letalidade com esta característica para jovens de 15 a 29 anos. Entre 2003 e 2014, o número de vítimas negras cresceu em 46,9%, contra uma queda de 26,1% em relação à população branca no mesmo período.
Em coletiva especial para mídias negras brasileiras, em julho, Deborah Small, ativista norte-americana dos direitos humanos e idealizadora da organização Break the Chains, que alerta sobre os impactos da guerra às drogas na população negra, afirmou que transformaram todo um grupo social em suspeitos com base no tráfico de drogas. É uma forma de guerra psicológica, fruto de um sistema de subjulgação herdado da escravidão, no Brasil e nos Estados Unidos. A maioria que recebe as balas são as pessoas negras, que são classificadas como ‘traficantes’.
“O que temos que fazer, coletivamente, é trocar a informação de que nós fomos enganados ao acreditar que essa polícia traria segurança para nós. Na verdade, ela trabalha para deixar nossa vida menos segura e para tirar a vida dos nossos”, contou Deborah.
Ana Paula, mãe de Johnathan, explicou que sabem que seus filhos são alvo da polícia por serem jovens, negros e moradores de favelas. Ela já foi duas vezes à Europa com a Anistia Internacional e sempre aceita os convites que a fazem. “Cumprir esse papel é uma missão. Temos a consciência de que somos as vozes de milhares de outras mães que não têm saúde e nem forças. Não falamos apenas pelos nossos filhos, são milhões de filhos”.
Essas mulheres tiram do luto o impulso para continuar, questionam se existe justiça, mas acreditam na potência de transformação que o grupo tem junto e não curvam a cabeça. “Agora, cada criança que ‘cai’ a gente vê nossos filhos. Pelos nossos a gente não pode mais lutar, mas pelos vivos sim”, concluiu Vera. A saudade é combustível e faz renascer a esperança de um dia sem despedidas marcadas pela dor, para elas e para outras famílias. Assim como Fátima ressaltou: “Luto pelos irmãos dele, por seus amigos, primos e vizinhos”.
Eternizar a resistência dessas mulheres em um vídeo clipe é como um manifesto à vida. Significa denunciar e registrar na história, de forma artística, um ciclo de violência que precisa parar. “Chapa, então fica assim, jura pra mim que foi/ E que agora tudo vai se resolver/ Já serve, e eu volto com o meu peito leve/ Até breve, eu quero ver sua família feliz no rolê”.