Democracia requer equilíbrio entre sistemas de comunicação

29 de maio, 2015

(FNDC, 29/05/2015) Prevista constitucionalmente, a complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão é adotada em vários países. Aqui, ainda espera regulamentação

A complementaridade entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão está prevista no art. 223 da Constituição Federal, que recomenda ao Poder Executivo a observância desse princípio ao outorgar ou renovar concessões, permissões e autorizações de funcionamento a emissoras de rádio e tevê. No entanto, quase 30 anos após promulgada a Carta Magna, a “geografia” do espectro eletromagnético brasileiro, majoritariamente ocupado por emissoras comerciais, segue inalterada. Um dos objetivos do Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática é justamente a regulamentação desse dispositivo constitucional, para que os outros sistemas também tenham espaço garantido.

Além de propor a divisão do espectro em três partes iguais, a proposta também define cada um dos três sistemas. “Procuramos assegurar a pluralidade de vozes a partir da existência de diferentes campos, com funções diferenciadas, mas complementares”, explica Rosane Bertotti, coordenadora-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC).

O projeto define sistema público como aquele formado pelas emissoras de caráter público ou associativo-comunitário, geridas de maneira participativa, a partir da possibilidade de acesso dos cidadãos às suas estruturas dirigentes. Seriam emissoras submetidas a regras democráticas de gestão e cuja finalidade principal não seja a transmissão de atos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (estas, situadas no campo estatal).

Integrariam o sistema público não apenas os canais atualmente geridos pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), mas também os educativos estaduais, os universitários e comunitários. Para o jornalista Jonas Valente, pesquisador sobre o sistema público de comunicação, a Lei da Mídia Democrática é um avanço em relação à legislação atual em vigor. “A lei que criou a EBC trata da radiodifusão pública somente no âmbito do Poder Executivo Federal ou da administração indireta. A Lei da Mídia Democrática avança ao incluir as comunitárias e educativas e ao garantir a participação da sociedade na sua gestão, além de estabelecer fontes de financiamento capazes de garantir o funcionamento dessas emissoras”, aponta.

Valente se refere ao Fundo Nacional da Comunicação Pública, que seria composto por verbas do orçamento público estadual e federal, doações de pessoas físicas e jurídicas, pagamento pelas outorgas por parte das emissoras privadas, recursos advindos da Contribuição e Intervenção no Domínio Econômico (Cide) e por 25% da Contribuição para o Fomento da Radiodifusão Pública, prevista na Lei 11.625/2008, entre outras receitas. Do total do fundo, 25% seriam destinados às emissoras associativas e comunitárias.

José Luiz Sóter, coordenador executivo da Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária (Abraço), afirma que as rádios comunitárias sempre se colocaram como emissoras do campo público. Atualmente, há cinco mil comunitárias autorizadas operando no país – dessas, 4,7 mil com autorização definitiva. Mas ainda há um déficit de pelo menos 25 mil emissoras aguardando autorização. Para Paula Martins, diretora do escritório brasileiro da Artigo 19, entidade internacional que defende a liberdade de expressão, a discrepância de tratamento recebido por esses canais em relação às rádios comerciais é flagrante. “A legislação relativa à radiodifusão no Brasil é desatualizada técnica e tecnologicamente. Isso impede a existência de uma mídia plural e diversa e, por fim, todo o processo da liberdade de expressão”.

Já em relação ao sistema estatal, a Lei da Mídia Democrática o define como aquele formado por emissoras cuja finalidade principal seja a transmissão de atos dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário e aquelas controladas por instituições públicas vinculadas aos poderes do Estado nas três esferas da Federação que não atendam aos requisitos de gestão definidos para o sistema público.

Complementaridade contraria interesses dos magnatas da mídia

Para o professor Laurindo Lalo Leal Filho, da Universidade de São Paulo (USP), a predominância do modelo comercial de radiodifusão no Brasil não é obra do acaso, mas fruto de uma escolha feita ainda nos primórdios da história desse serviço no país. Para os europeus, por exemplo, foi o contrário: até a década de 80, a maioria nunca havia se deparado com uma radiodifusão mantida pela propaganda.

Laurindo Filho acredita que “o bloqueio ao acesso a uma rádio e a uma TV sem publicidade formou gerações alienadas”. Ele lembra que, afora tentativas regionais, como a da criação de uma TV educativa pela então prefeitura do Distrito Federal, no início dos anos 50, o único projeto de caráter nacional existente antes da atual TV Brasil girou em torno da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. “O segundo governo Vargas chegou a outorgar uma concessão para seu funcionamento. No entanto, pressionado pelas mesmas forças conservadoras que o levaram à morte, ele não concretizou a iniciativa”. Sucessor de Vargas, Juscelino Kubitschek chegou a confirmar a outorga do canal 4 do Rio para a Nacional, em 1956, mas foi literalmente ameaçado pelo então coronel da mídia Assis Chateaubriand, poderoso dono do grupo Diários Associados.

Chatô teria ameaçado JK de jogar toda a sua rede de rádio, imprensa e televisão contra o governo se a Nacional recebesse também uma outorga de TV. “JK recuou, o Brasil perdeu a sua TV pública, mas quem ganhou não foi o Chatô. Em 1957, Juscelino passou a concessão para as Organizações Globo, que somente em 1965 colocariam sua emissora no ar”, conta o professor. O monopólio comercial da TV brasileira permaneceu intacto e, com ele, a possibilidade, naquela época, de constituição de um sistema público de radiodifusão que pudesse dar ao cenário midiático o equilíbrio hoje reivindicado.

Elizângela Araújo

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