(Nexo, 12/05/2016) Para especialistas, decreto presidencial busca reforçar conceito de ‘neutralidade da rede’
Enquanto senadores definiam o futuro de Dilma Rousseff, a petista assinou um decreto que regulamentou o Marco Civil da Internet. Aprovado em 2014, o conjunto de leis define direitos dos usuários da web e regras para empresas e governo. Mas tinha pontos em aberto que a presidente procurou esclarecer.
O decreto foi um dos últimos atos de Dilma antes de seu afastamento temporário, determinado pelos senadores para que o processo de impeachment continue – o que pode vir a retirá-la do cargo definitivamente num prazo de até 180 dias.
Na interpretação de especialistas consultados pelo Nexo, a principal mudança diz respeito à prática adotada por empresas de telefonia de tratarem de forma diferenciada o acesso pela internet a alguns sites e serviços específicos. Críticos vinham afirmando que ela fere o Marco Civil.
Atualmente, operadoras de celular cortam a velocidade da internet depois que o usuário ultrapassa o limite de dados contratado, mas criam exceções. Por exemplo: TIM e Claro não contabilizam em alguns planos a internet gasta com o aplicativo Whatsapp, que continua a funcionar mesmo após a rede para outros sites ser cortada. Claro, Oi, TIM e Vivo têm um acordo similar com o site de comércio eletrônico Netshoes.
Publicado em edição extra do “Diário Oficial” nesta quarta-feira (11), o decreto cria obstáculos para essa prática de não contabilizar os gastos de internet de determinado aplicativo ou site, chamada de “zero rating”. Entenda esse e outros pontos.
O que o decreto diz sobre o zero rating?
As empresas defendem o zero rating como um benefício extra a usuários que teriam, de outra forma, cortado completamente o seu acesso à internet. Críticos dizem, no entanto que ele faz com que o internauta fique limitado a sites específicos, prejudicando a livre concorrência.
Eles afirmam também que isso contraria o princípio da neutralidade da rede, presente no Marco Civil, que determina que todos os usuários devem poder acessar quaisquer serviço ou informação com a mesma velocidade quando se paga o mesmo preço.
O argumento das empresas de telefonia é de que o “zero rating” não cria uma velocidade de acesso diferenciada para alguns serviços, apenas parte de acordos comerciais para oferecer internet extra mesmo após o limite contratado ter sido atingido pelo usuário.
Segundo Mariana Valente, diretora do Internet Lab, entidade que debate direito e tecnologia, o decreto traz obstáculos a essa justificativa ao vedar acordos que “priorizem pacotes de dados por conta de acordos comerciais”. Essa é a mesma interpretação de Maria Inês Dolci, presidente da Proteste (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor). O documento também veda que se privilegiem serviços oferecidos pela própria empresa.
Acaba com franquias na internet fixa?
Nos últimos meses, as maiores provedoras de internet do país passaram a adotar para a internet fixa o sistema de franquias, ou seja, um limite mensal de consumo de dados – como já é aplicado para a internet por celular.
Atualmente, o sistema está suspenso pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) até que ela julgue a questão. Na interpretação de Maria Inês, o decreto assinado nesta quarta é “meio caminho andado” para barrar essa prática ao afirmar que “a discriminação ou a degradação de tráfego são medidas excepcionais”. Ainda não está claro, no entanto, qual o entendimento da Anatel sobre o assunto.
Protege os dados dos usuários?
Outro ponto importante da regulamentação diz respeito aos dados dos usuários regulamentando os seguintes pontos:
ACESSO A DADOS POR AUTORIDADES
O Marco Civil da Internet prevê que “autoridades administrativas que detenham competência legal” podem obter dados cadastrais de usuários de internet. Na visão de críticos, essa descrição era muito ampla e dava abertura para que qualquer autoridade se declarasse competente para ter acesso aos dados. O decreto exige que as essas autoridades apresentem a justificativa legal para informações.
TRANSPARÊNCIA
O decreto também prevê que as autoridades prestem contas sobre os dados que requisitaram. A polícia deveria, por exemplo, informar anualmente em seu site quantos pedidos foram feitos e o número de usuários afetados.
TEMPO DE ARQUIVAMENTO DE DADOS
O Marco Civil prevê que os provedores de internet mantenham por seis meses registros sigilosos dos acessos de usuários à internet. Autoridades podem determinar a ampliação desse prazo. Isso permitiria, por exemplo, à polícia requisitar esses dados e descobrir de onde partiu um post racista, ou um ataque hacker. O decreto prevê que, depois do fim do período estipulado, esses registros deverão ser apagados, como forma de evitar um ‘rastro digital eterno’ dos usuários.
Isso tudo já está valendo?
Não. O decreto dá 30 dias para que suas determinações passem a ser aplicadas, e grande parte ainda depende de interpretação das autoridades envolvidas no tema do decreto.
Para entidades de defesa do consumidor, o “zero rating” está vedado, por exemplo. Mas a interpretação da Anatel pode ser diferente. Também é possível que as empresas de telecomunicação surjam com novos argumentos para manterem a prática.
André Cabette Fábio
Acesse no site de origem: Dilma regulamentou o Marco Civil antes de sair. O que muda na internet (Nexo, 12/05/2016)