Depois de “A Força do Querer” tratar da transexualidade, a nova novela das nove da Globo, “O Outro Lado do Paraíso”, deu largada esta semana já com assuntos muitas vezes tratados como tabu: relacionamentos abusivos e estupro marital.
(UOL, 26/10/2017 – acesse no site de origem)
Na cena do segundo capítulo, exibida nesta terça-feira (24), a mocinha Clara (Bianca Bin) se casa com o galã Gael (Sérgio Guizé) e depois os dois seguem de barco para uma casa à beira do rio onde passarão a noite de núpcias. Eles chegam felizes com o casamento, trocam carícias e abrem uma champanhe para comemorar o momento. Tudo vai bem até que, depois de alguns goles, o comportamento de Gael muda completamente.
Bêbado e fora de controle, ele pega a mulher pelos braços, a joga na cama com força, rasga o vestido e a manda calar a boca. Aos gritos, Clara pede para que ele pare, mas seu pedido é ignorado e Gael a força a fazer sexo. “Ai, Gael, você está me machucando. Eu estou ficando com medo”, diz a moça. “Cala a boca”, responde ele, agressivo. “Para, para, para”, grita Clara, sem sucesso.
A cena teve muita repercussão nas redes sociais, e boa parte dos leitores do UOL que comentaram a notícia comemoraram o fato de a novela mostrar algo que é uma realidade de muitas mulheres. Quem também acredita que há motivos para comemorar é a promotora Silvia Chakian, do Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Ministério Público de São Paulo (GEVID).
“Quando bem trabalhado, esse veículo se torna um instrumento poderosíssimo para proporcionar o debate sobre um tema que ainda é tabu na nossa sociedade, que é a violência sexual que se pratica dentro de casa”, acredita ela. “Mostrar que isso acontece e que esses atos sexuais não consentidos são violência é um grande avanço”.
Já para a antropóloga Heloísa Buarque de Almeida, professora da USP que tem como um de seus temas de pesquisa a relação entre a mídia e a violência contra a mulher, é preciso ter um pouco de cautela. “A novela pode fazer a sociedade pensar e é bom que temas tabus sejam tratados, do ponto de vista feminista, mas a gente nunca sabe como a novela vai tratar”, acredita.
“Eu reconheço que tem uma sensibilidade social que está mudando em relação a essas coisas. Toda novela tem que ter um pouco de novidade. Esses temas [a transexualidade e o estupro marital etc.] entram como um tema novo, mas a condução vai depender sempre de como o público reage. Se o personagem [do agressor] é um galã e as pessoas gostarem dele mesmo assim, pode ser que a trama acabe reabilitando ele. Se, por outro lado, ele fizer bem o papel de vilão, podem levar para um lado mais estereotipado de personagem mau”.
Ela pontua também que a forma de se consumir novelas e outros produtos televisivos vem mudando muito desde o surgimento de novas tecnologias, e que isso também muda a maneira de olhar para essas questões levantadas pelas tramas. “A gente ainda não sabe muito bem como medir a transformação social que vem a partir daí”, explica.
Estupros invisíveis
No entanto, para a promotora Silvia Chakian, ainda assim o fato de “O Outro Lado do Paraíso” abordar a violência doméstica e o estupro dentro de relacionamentos pode pelo menos ajudar mulheres que passam por algo parecido a entenderem o que estão vivendo. E elas são muitas. Segundo balanço de 2016 do Ligue 180 (linha para denúncias de violência contra mulher), 65,91% dos casos de violência contra a mulher foram cometidos por homens com quem a vítima tem ou teve algum vínculo afetivo. De acordo com o relatório “Estupro no Brasil, Uma Radiografia Segundo Dados da Saúde”, divulgado pelo Ipea em 2014, 9,3% dos abusos sexuais sofridos por mulheres adultas são praticados pelo cônjuge e 1,6% pelo namorado.
E esses números ainda podem estar bem abaixo da realidade. Chakian conta que as mulheres que atende em um grupo de apoio no Fórum Criminal da Barra Funda, em São Paulo, quase nunca identificam como estupro um ato praticado por um companheiro ou ex-companheiro, o que faz com que esse tipo de violência raramente chegue ao conhecimento da Justiça. “Existe ainda aquela ideia muito antiga, equivocada e inaceitável de que a mulher deve servir sexualmente o marido ou companheiro, que isso faria parte do seu ‘dever de esposa’”, explica.
“Mas quando essas mulheres entendem que violência sexual significa o constrangimento à prática de qualquer ato sexual sem o consentimento, muitas fazem o retrospecto de suas vidas identificando situações onde de fato tiveram que se submeter a atos sexuais não consentidos”, explica.
Relacionamento abusivo
Chakian, que está acompanhando “O Outro Lado do Paraíso” justamente por conta do tema, aponta também o acerto da novela na maneira de construir um relacionamento abusivo entre os protagonistas Clara e Gael.
“Achei muito interessante nos primeiros capítulos que o relacionamento vai sendo construído já com sinais muito claros de que tende a se tornar abusivo e violento”, acredita a promotora. “Isso é muito importante para conscientizar a população, porque existe um mito de que esses relacionamentos já começam violentos, já numa agressão física extrema. E a verdade é que quando está começando, são apenas sinais, que principalmente entre as meninas muito novas são entendidos como um excesso de zelo ou de ciúmes, mas na verdade configuram atos de manifestação de poder, de controle do masculino sobre o feminino”.
Outro acerto da novela, para ela, foi em mostrar que o agressor não é uma pessoa violenta o tempo todo –Gael mesmo se desculpa com Clara após a noite de núpcias, todo arrependido, mesmo que agora o espectador já saiba que esta não deve ser sua última violência. “Esse relacionamento tem fases ‘boas’, tranquilas, em que esse sujeito é carinhoso, bacana, um bom companheiro. Mas em determinados momentos ele exterioriza essas manifestações de controle, de poder, que muitas vezes são romantizadas”, acredita.
Natalia Engler