Do reality à ficção, a televisão abordou temas complexos e gerou debate.
(HuffPost Brasil, 28/12/2017 – acesse no site de origem)
20 de outubro de 2017. 21h16. Milhões de televisores ligados. Gente dispensou o bar, saiu correndo do trabalho, pegou rota alternativa pelo Waze, jantou mais cedo. Sintonizou a TV um pouco antes do horário marcado, viu os créditos finais do Jornal Nacional e sentiu o coração palpitar de ansiedade, repassou mentalmente suas últimas apostas, era agora: ia ao ar, pela última vez, um capítulo da novela A Força do Querer.
Seu último capítulo marcou 50 pontos de audiência no Ibope na Grande São Paulo. Cada ponto no Ibope equivale a 688 mil telespectadores.
Em 2017, o brasileiro voltou a acreditar nas telenovelas. A Força do Querer recuperou a audiência do horário nobre e sua sucessora, O Outro Lado do Paraíso, vem batendo recordes positivos. Nos últimos anos, todas as produções da faixa das 21h sofreram rejeição e marcaram médias de 35 pontos de audiência.
Mais do que assistir às tramas, discutimos à exaustão seus temas. Sentados à mesa de casa, discutimos se Bibi deveria ou não perdoar o Rubinho. No trabalho, entramos em conflitos com colegas ao falarmos sobre a transição da Ivana para o Ivan, exaltamos a independência da Jeiza enquanto alguns preferiam que ela fosse domada por Zeca.
Quando a novela acabou, ficamos desolados. A melhor produção desde a icônica Avenida Brasil, que explorou temas e personagens fortes, registrou a primeira transição de gênero televisionada. Pensamos que não seria possível superá-la. Mas Walcyr Carrasco expôs com responsabilidade um relacionamento abusivo em pleno horário nobre. Vimos, com clareza, que pode haver estupro em um casamento e assistimos à importância da Lei Maria da Penha.
Em 2017, a TV nos provou que é muito mais do que o simples entretenimento e que pode, sim, gerar debates tão profundos quanto outras produções audiovisuais.
Primeiro, o reality
Muito antes de conhecermos a Ivana ou a Clara e o Gael, a televisão aberta enfrentou sua primeira polêmica. Era abril, e a casa do Big Brother Brasil tinha pouquíssimos participantes. Metade dos espectadores odiava a Emilly. Outra metade a venerava. O todo, no entanto, ficou estarrecido com as situações de violência vividas por ela.
A participante Emilly Araújo, de 20 anos, teve um relacionamento com o médico Marcos Harter, de 37. Durante o programa, Marcos praticou violência psicológica contra a companheira. Até que chegou ao embate físico: puxões, empurrões e beliscões. Foi expulso do programa em 10 de abril.
Aqui, não houve roteiro para nos fazer pensar. Foi a realidade de milhares de mulheres, no Brasil e fora dele, se revelando nacionalmente.
Mas, infelizmente, aprendemos uma lição a partir da tristeza. Houve a presença de uma delegada da Divisão de Polícia de Atendimento à Mulher do Rio, abertura de inquérito pela Polícia Civil, realização de exame médico e avaliação psicológica e muito cuidado com a vítima. Houve, também, uma hashtag e centenas de histórias compartilhadas.
A partir da hashtag #EuViviUmRelacionamentoAbusivo, as mulheres derramaram na internet seus corações e suas angústias, compartilharam momentos delicados e tristes de suas vidas e, nesse exorcismo coletivo de fantasmas interiores, ajudaram a promover um debate imprescindível.
O Brasil descobriu, tristemente, todos os estágios da violência psicológica e quão devastadora ela pode ser em um relacionamento. “O reality show tem grande abrangência, entra todos os dias nas casas das pessoas. Então quando aborda temas como esse, eles não ficam mais restritos à fala de um grupo ou a uma rede social, e não são apenas as pessoas interessadas que o discutem. Ele passa a circular nacionalmente entre pessoas que não pararam para pensar ou que não tinham interesse anteriormente”, explica Daniela Afonso Ortega, pesquisadora do Centro de Estudos em Telenovelas, da USP (Universidade de São Paulo).
A pesquisadora ressalta ao HuffPost Brasil o poder de identificação que a TV aberta ainda possui sobre grande parte da população brasileira. “Muita gente que não enxerga uma relação abusiva, ou que está em uma e não sabe como pedir ajuda, a partir do momento que enxerga no outro, vê um reflexo de si mesmo e passa a questionar sua própria condição.”
Depois, o furacão
Muito antes da trans, houve a inter. Buba, interpretada por Maria Luísa Mendonça, era uma hermafrodita na novela Renascer (1993). Ela havia nascido com dois órgãos sexuais: masculino e feminino. Foi criada como homem até que teve sua primeira menstruação. E então passou a se identificar como mulher. Na novela, viveu dois relacionamentos, com Zé Venâncio (Taumaturgo Ferreira) e Zé Augusto (Marco Ricca). Sofreu preconceito durante a trama mas reverteu tudo com a doçura que a atriz imprimiu na personagem. Buba foi a primeira intersexual em uma novela.
Agora, em 2017, diferentes manifestações de gênero e sexualidade voltam a ser trabalhadas pela teledramaturgia. A estreante Carol Duarte interpretou lindamente as angústias da Ivana, seu incômodo com seu corpo, a descoberta como transgênero, a transição, a cirurgia de remoção dos seios e o nascimento do Ivan. A rejeição da família, o desencaixe social e, por fim, a aceitação que veio com muito custo e sofrimento.
Assistimos a um pedacinho do que é a vida de transgêneros e transexuais, embora o final não seja tão feliz para a maioria deles no Brasil. Somos o país que mais mata pessoas trans no mundo. Por isso, esse personagem foi tão importante para nós.
“Ecoa na novela algo que é da contemporaneidade. Mas quando a novela, que é esse produto popular, que tem esse alcance gigantesco até hoje, traz esse tema para que ele seja discutido pelos telespectadores, é fantástico”, explica o pesquisador Lucas Martins Neia, também do Centro de Estudos em Telenovelas da USP.
Para muitos, a transição de gênero e de sexo é algo pouco familiar e, muitas vezes, de difícil assimilação. Mesmo diante disso, Ivana e Ivan foram acolhidos e aceitos pelo público. Para o pesquisador, o mérito é da construção da narrativa.
“A autora primeiro apresentou uma personagem mulher que se olhava e se questionava sobre o que via. E soube trabalhar essas questões que perpassam todos os seres humanos, porque estamos falando de autoaceitação, e mostrou esse processo quase que didaticamente. Muito se questiona sobre o didatismo em roteiros para televisão, mas é de suma importância quando se fala com o grande público.”
Além de falar da questão trans, a produção contou com uma atriz trans interpretando o papel de uma mulher cis.
Enfim, o inferno
Clara (Bianca Bin) e Gael (Sérgio Guizé) eram um casal apaixonado no início de O Outro Lado do Paraíso. Depois do casamento, veio o inferno. A novela ousou ao mostrar o estupro marital e, logo, a violência física e doentia contra a mulher.
E os telespectadores se chocaram. Se angustiaram. Alguns não conseguiram assistir à cena completa, outros foram tomados pela raiva. Para Daniela Ortega, da USP, é preciso saber como abordar um estupro na ficção para que o debate certo seja gerado. E O Outro Lado do Paraíso conseguiu fazê-lo: “A novela falou de estupro mostrando tudo que tem por trás, de errado e de perigoso. Revelou de uma forma forte como isso pode acontecer. Sem amenizar. Mostrou a face de insatisfação dela, o medo dela nessa relação. Deixou as pessoas desconfortáveis”.
Os pesquisadores defendem que a telenovela brasileira sempre teve uma característica social. “É isso que vai nos diferenciar do modelo mexicano”, esclarece Martins Néia. Mas não, as telenovelas não têm obrigação de defender uma causa social. Assim como qualquer outro produto cultural, podem servir apenas para divertir e tocar seu público. “Mas a novela é enriquecida quando olha para essas causas. E, assim, gera identificação e ajuda a mudar a sociedade”, defende Ortega.
Para a pesquisadora, é importante que um produto tão popular, de certa forma, eduque as pessoas. “Quando uma sociedade inteira percebe que aquilo [violência doméstica e estupro] é errado, que você não é a causadora, mas sim a vítima, e esse comportamento passa a ser visto por todos como errado, te dá forças pra sair daquela condição.”
Em 2017, assistimos a retrocessos no Brasil e no mundo. Por um lado, supremacistas brancos estão marchando nos Estados Unidos contra negros, imigrantes, gays e judeus. Por outro lado, deputados homens estão deliberando sobre o corpo das mulheres, para restringir aborto até em caso de estupro.
Em O Outro Lado do Paraíso, há algumas personagens que encarnam esse retrocesso social. “Vemos pessoas sendo claramente racistas e machistas para mostrar justamente como esse comportamento está equivocado. Os abusos, a trama mais forte da novela, mostra o avanço do movimento feminista. Como as mulheres precisam perder o medo e denunciar a violência que sofreram. E as mulheres dessa história, por mais que tenham passado por essas situações, não foram passivas diante disso”, finaliza Ortega.