(O Globo, 04/08/2015) De bebida com rótulo feminista a documentário, projetos questionam imagem da mulher divulgada pelas marcas
Tente lembrar de um comercial de cerveja. É bem possível que ele contenha uma mulher de corpo escultural desfilando na frente de um grupo de homens que, enquanto isso, babam ou fazem piadas. Mas algumas iniciativas estão a fim de mudar esse cenário. As três publicitárias criadoras da Cerveja Feminista, cujo primeiro lote de mil garrafas foi lançado no mês passado, querem colocar a discussão na mesa. Maria Guimarães, Thais Sabres e Larissa Vaz ultimamente já vinham debatendo sobre o machismo na publicidade de cerveja, e tinham a vontade de tomar alguma atitude para combater essa lógica.
— As mulheres são boa parte do mercado consumidor, mas só aparecem nas propagandas exibindo o corpo, servindo os homens, para vender cerveja para eles — argumenta Maria, de 28 anos, explicando que as garrafas criadas pelo trio trazem a definição de feminismo no rótulo. — Queremos incentivar as pessoas a discutirem sobre igualdade de gênero na mesa do bar, no happy hour e no almoço de domingo. Por isso criamos uma cerveja que é um “puxador de assunto”.
A bebida é uma red ale com 6% de teor alcoólico, o que combate a ideia de que mulher gosta de “cerveja fraca”. O produto é produzido pela Cervejaria Dortmund, no interior de São Paulo, e pode ser comprado pelo site do projeto, por R$ 14 a garrafa de 600ml.
Para as publicitárias, o machismo nas propagandas de cerveja é sintomático. Um levantamento conduzido pelas três averiguou que apenas 10% dos cargos na área de criação nas agências brasileiras de publicidade são ocupados por mulheres. Já uma pesquisa realizada pelo Data Popular e pelo Instituto Patrícia Galvão, em 2013, mostrou que 84% dos entrevistados, homens e mulheres, concordam que o corpo da mulher é usado para promover a venda de produtos nas propagandas na TV; e 58% avaliam que as propagandas mostram a mulher como objeto sexual.
A revolta das moças gerou a fundação da empresa 6510 (lê-se “meia cinco dez”), que visa modificar a forma como a mulher brasileira é retratada, prestando consultorias a agências e companhias que têm o mesmo desejo. Assim como a Feminista, a 803, uma black rye ipa da cervejaria Perro Libre, de Porto Alegre, homenageia o Dia Internacional da Mulher, comemorado em 8 de março. “Não acreditamos em um tipo de cerveja para homem ou para mulher (…) Acreditamos na cerveja que você gosta”, diz o manifesto da marca, que prega uma “cerveja sem rótulo”.
O aplicativo Cervejaria Feminina é outra ação que visa integrar as mulheres ao universo da cerveja. O serviço, lançado até agora só para o sistema Android, traz um catálogo de cervejas criado por mulheres. Um grupo de cervejeiras testa bebidas vindas do mundo inteiro (já são mais de 120 avaliadas) e fazem comentários sobre cor, aroma, estilo e a histórias dos produtos. “Em um universo onde a maioria dos apreciadores são homens que tal ser guiado por uma mulher?”, sugere a descrição do app. As criadoras da ferramenta, Sendy Lago e Rebeca Caldas, já passaram por Argentina, Uruguai e Chile em busca de rótulos novos.
— Eu já apreciava cervejas importadas e artesanais há algum tempo, mas, nos grupos do Facebook, só via homens comentando — observa Rebeca, que é diretora de projetos e tem 25 anos. — Então, além de compartilhar nosso conhecimento sobre cervejas, nós também queremos mostrar que há uma aceitação feminina muito grande nesse mercado que, em geral, só produz rótulos e propagandas voltadas para os homens.
Também com a intenção de fomentar uma discussão sobre essa indústria, os produtores do documentário “Mulher, cerveja e machismo” pretendem entrevistar cerca de 200 pessoas sobre o tema. A vontade de discutir o assunto surgiu na cabeça do diretor Alex Caíres no início do ano, quando ele viu na internet uma campanha da marca Itaipava que coloca uma atriz para personificar a figura do “Verão”. Na série de comerciais “O Verão é nosso”, Aline Riscado, ex-dançarina do “Domingão do Faustão”, aparece com uma saia curtíssima e um top, como dona de um bar à beira da praia. Em um dos vídeos hospedados no YouTube, que traz dicas de como ser “malandro” durante a estação do ano, um banhista tem uma ereção ao ver a bailarina na água.
— Isso me deixou chocado. Como deixaram uma propaganda tão degradante para as mulheres ser aprovada? — questiona Caíres, que é formado em jornalismo. — Quero ouvir o que as mulheres têm a dizer sobre isso, saber como esse tipo de imagem impacta a vida delas. E quero chamar os homens para fazerem essa reflexão.
Além de entrevistas com consumidoras, a produção do documentário irá atrás de acadêmicos, cervejeiros e agências de publicidade, para que elas possam defender seu ponto de vista. Caíres também pretende rodar um comercial de um minuto para provar que é possível vender álcool sem expor o corpo feminino.
— Retratar a mulher como objeto passa ideia de que ela pode ser comprada junto com a cerveja — aponta o diretor de 26 anos. — Elas precisam ser vistas como consumidoras, não como enfeite.
A Skol foi responsável por outro comercial que chocou as consumidoras este ano. Em fevereiro, a marca foi acusada de estimular o estupro ao estampar em mobiliários urbanos de São Paulo uma peça com a frase “Esqueci o ‘não’ em casa”, em sua campanha de carnaval. Depois das manifestações em redes sociais, a Ambev, proprietária da marca, retirou a ação das ruas e a relançou, incentivando o respeito na paquera. “Quando um não quer, o outro vai dançar” e “Não deu jogo? Tire o time de campo”, disseram as novas peças.
Os homens ainda bebem mais do que as mulheres no Brasil — eles consomem cinco vezes mais cerveja e bebidas destiladas do que as mulheres, segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), feita em 2008 e 2009. No entanto, as jovens de até 35 anos bebem tanto quanto os homens mais velhos, de mais de 35, de acordo com outro levantamento, de 2011, feito pelo Painel Nacional de Domicílios da Kantar Worldpanel, que visitou 8.200 lares brasileiros. Para uma professora do curso de Publicidade e Propaganda da ESPM Rio, as agências, além de cederem ao sexismo, estão perdendo a oportunidade de conquistar um público enorme.
— Ao não usarem as mulheres como protagonistas da ação nos comerciais, as empresas ignoram que 50% delas consomem cerveja no Brasil — observa Karine Karam. — Ainda estamos muito longe de vermos um anúncio que mostra uma mulher chegando em casa do trabalho e abrindo uma cerveja para relaxar.
A professora acredita que as agências têm medo de “mexer em time que está ganhando”, já que os produtos vendem bem, mesmo com campanhas voltadas 100% ao público masculino. Para Karine, a falta de ousadia não combina com a publicidade brasileira, que é considerada uma das mais inovadoras do mundo e, só este ano, ganhou 108 leões no festival de Cannes.
Marina Cohen
Acesse o PDF: Iniciativas independentes combatem o machismo nas propagandas de cerveja (O Globo, 04/08/2015)