22/01/2012 – ‘Acesso à informação não é favor, é direito’, diz especialista da Unesco

22 de janeiro, 2012

(O Estado de S. Paulo) Para especialista da Unesco, lei que abre dados do governo reduzirá necessidade de lobistas e consultores

A desigualdade informacional é tão grave para o desenvolvimento humano quanto a desigualdade de renda

Em um cenário em que inexistem leis e políticas de acesso a informações públicas, diz o assessor de Comunicação e Informação da Unesco para o Mercosul e Chile, Guilherme Canela, empresas que precisam de dados do Estado os “compram no mercado de consultorias” ou “contratam um lobista para obtê-los”.

Canela espera que esse modus operandi, familiar na cena política brasileira, se torne menos frequente com a entrada em vigor, daqui a quatro meses, da Lei de Acesso à Informação, sancionada em dezembro pela presidente Dilma Rousseff.

Nesta entrevista, concedida por telefone, de seu escritório, no Uruguai, ele sustenta também que “a desigualdade informacional é tão grave para o desenvolvimento humano quanto a desigualdade de renda”.

Qual a importância da Lei de Acesso à Informação?

Vou dizer quais os principais impactos positivos esperados da aprovação da lei e de uma implantação eficaz e eficiente. Em linhas gerais, espera-se melhora na boa governança do Estado, diminuição da corrupção, melhora na proteção dos outros direitos. Além disso, a cultura do acesso é sempre boa pra uma relação mais aberta Estado-sociedade. E há o direito à memória e à verdade. Leis e políticas de acesso devem ser sobre políticas de ontem, hoje e amanhã.

A lei modifica a relação de forças entre Estado e sociedade?

A informação é um elemento cada vez mais central na relação Estado-sociedade. Não à toa ela é protegida, para o bem e para o mal, desde que o Estado nacional começa a se colocar na história da humanidade. Não só a lei, mas uma política eficiente de acesso à informação pode modificar essa relação Estado-sociedade de maneira bastante significativa.

De que forma?

Num status quo em que a cultura do segredo impera, em que o Estado não entende que o cidadão é titular da informação, o acesso a uma informação produzida pelo Estado é entendido, quando muito, como um favor que determinado agente publico faz àquele cidadão. Quando o cidadão compreende que a informação deixa de ser um favor e passa a ser um direito, você transforma a relação em casos em que a informação é o fiel da balança entre você conseguir resolver ou não uma demanda.

O sr. pode dar um exemplo?

Um tema relativamente comum em algumas cidades brasileiras, o orçamento participativo. Tenho o poder de decidir sobre ao menos uma parcela do orçamento. Se vão construir uma quadra de escola ou um posto de saúde. O uso deste poder está intrinsecamente ligado a se o cidadão tem acesso à informação. Você precisa de informações pra tomar essa decisão. A tomada de decisão é fundamentalmente guiada pelo nível de informação que temos.

O que ocorre quando há pouca informação disponível?

Num cenário sem lei nem políticas de acesso à informação, essa tomada de decisão é feita com base em diferentes estratégias individuais para ter acesso à informação. Para tomar suas decisões a partir de informações que precisam ter do Estado, se essas informações não estão disponíveis, algumas empresas, por exemplo, compram essas informações no mercado de consultorias. Ou contratam um consultor, um lobista para obter essas informações. Ou estabelecem boas relações, e aí não estou fazendo nenhum juízo de valor, com agentes públicos que tenham essas informações. Mas se você tem uma legislação ou uma política que regulamenta isso, essa empresa não precisaria fazer nada disso.

A Lei de Acesso pode se tornar perigosa num cenário de fragilidade dos Estados nacionais?

Uma má lei e uma má política podem ter dois tipos de consequência. Um é que ela pode não resolver os problemas. A desigualdade informacional é tão grave para o desenvolvimento humano quanto a desigualdade de renda. Algumas pessoas defendem até que é causa. Se a lei for mal feita ou a política for mal implementada, a primeira consequência é que não se mude o status quo. A outra consequência é que, se naqueles elementos onde é legítima a proteção e o segredo, inclusive estão normalmente estabelecidos na lei – questões de segurança nacional, relações internacionais -, se essas questões não forem bem equacionado, é evidente que você pode ter problemas. Agora, a impressão que eu tenho é que isso poderia acontecer com ou sem uma lei de acesso a informações.

Como evitar problemas nesse sentido?

Para que as exceções sejam protegidas, e a minha impressão é que tem se discutido pouco isso, não só no Brasil, é preciso ter uma política eficiente do que se chama em inglês de records management, de gestão documental. Sem ela, é muito pouco provável que a política de acesso seja eficiente. Além disso, há o risco de você ter problemas do ponto de vista dos documentos que precisam ser protegidos.

Por falar nisso, o foco da lei é muito mais a liberação da informação e muito menos a produção e o armazenamento da informação. Como o sr. analisa isso? Como é que o país pode ter uma boa gestão documental?

Não é muito meu papel comentar questões especificas dos Estados membros da Unesco. Em linhas gerais, a lei brasileira tem algumas inovações importantes, até porque foi aprovada tardiamente, em linha com as discussões internacionais de gestão de informação, solicitando, por exemplo, que na medida do possível as informações sejam produzidas em dados abertos. Faz muita menção à divulgação proativa, que, claro, está relacionada à produção. Há avanços que precisam ser reconhecidos. Outro elemento é que o Arquivo Nacional tem sido um ator, participando dessas discussões com alguma regularidade. Em vários países ele é um ator-chave para uma boa gestão da informação.

O que ocorre quando não há essa boa gestão?

A tendência é que o êxito seja menor. Por uma razão bastante óbvia: você não pode oferecer ao cidadão uma informação que não tem, cuja produção não foi efetivamente gerenciada. Se você tem uma reunião sobre a privatização do sistema Telebrás, por exemplo. Existe uma informação sobre como e o que foi decidido. Agora, depende de uma boa política de “records management” a gestão adequada, no sentido de estar processada, arquivada e possa ser passada adiante. Ela pode estar na memória das pessoas que participaram da reunião, o que não é eficiente, porque as pessoas podem não estar disponíveis, não estar mais vivas, etc.

É possível perceber alguma mudança cultural nos países que têm uma política efetiva de acesso à informação?

Os relatos que a gente tem é que, onde a mudança cultural não foi pensada, que o próprio Estado não reconheceu que era preciso haver uma mudança cultural dos dois lados – o funcionalismo público e o cidadão -, em geral a lei não funciona. Esse componente não só precisa acontecer por consequência da implementação da lei. Ele precisa ser estimulado. A mudança cultural é fundamental pra que a própria lei funcione.

Tem algum exemplo que o sr. considere relevante?

O caso indiano. A sociedade civil participou fortemente desse processo. Se você procurar por “India Rights to Information Act” no YouTube, você vai ver coisas incríveis, de tribos do interior do país que criaram jingles nas línguas locais pra promover o que a lei permite de direitos aos cidadãos. No ano passado houve 8 milhões de pedidos de acesso na Índia. São sinais claros de que há mudanças acontecendo, de que as pessoas estão fazendo uso disso, mesmo com todas as dificuldades. Nos Estados Unidos, a lei era basicamente usada por jornalistas, no início. Mas hoje é largamente usada pelo setor privado como elemento de consulta de informações sobre o Estado.

Acesse em pdf: ‘Acesso à informação não é favor, é direito’ (O Estado de S. Paulo – 22/01/2012)


(O Estado de S. Paulo) Estudiosa da Unesp diz que ponto vulnerável da lei brasileira é submeter o processo a um órgão do Executivo, a CGU

Controle pelo governo ameaça cidadania, diz professora

Há dez anos, o México implantou a sua lei de acesso à informação, tida por muitos como a melhor do continente. Só nos últimos cinco anos, os mexicanos a usaram para 50 milhões de consultas – mais de 27 mil por dia. Mas uma das grandes razões desse sucesso é a existência, por lá, de algo que falta na recém-criada lei brasileira: uma entidade externa, autônoma, capaz de montar uma máquina, dar agilidade e estar livre de pressões para defender os interesses do cidadão.

“Esse é o ponto vulnerável da Lei de Acesso à Informação do Brasil”, adverte Rita de Cassia Biason, professora da Unesp, que coordena o Grupo de Estudos sobre Corrupção da universidade. “Aqui o funcionamento dessa máquina, ainda a ser regulamentada, caberá a um órgão do Executivo, a Controladoria-Geral da União (CGU). Parece que os cuidados são para proteger o Estado, não a cidadania.”

Os mexicanos foram competentes, ressalta. Um ano antes de aprovar a lei já estava criado o Instituto Federal de Accesso à Informação (Ifai), órgão inteiramente independente. Adotando esse modelo, o Chile implantou seu Conselho de Transparência. Nos dois, quando a lei chegou, a base estava montada e a máquina pronta para entrar em ação. “Aqui não há pessoal preparado, em nível nacional, e se sabe que dificilmente as coisas ficarão prontas nos quatro meses que faltam.”

Os pressupostos lá e cá são inteiramente diferentes. Rita de Cássia acha significativo que o texto mexicano ressalte o compromisso com a democracia e no brasileiro essa ideia não seja nem sequer mencionada.

A lei brasileira se dedica ao modus operandi. Estabelece prazos, exigências, fala em mandatos. Mas permite que alguém escolhido para classificar informações seja reconduzido seguidamente. E não explica – essa é uma questão vital – como serão escolhidas as pessoas que definirão o que é uma informação secreta, ou ultrassecreta. “Mas qual o critério para credenciar essas pessoas? Se for gente de fora, terá de ficar subordinada à CGU? E quem controla a CGU?”

Mensalão. Rita de Cassia chega a imaginar uma hipótese: se a lei, como está escrita, existisse em 2005, talvez o mensalão não viesse a público – pois seu texto determina que podem ser secretas informações envolvendo presidente, vice, ministros, autoridades militares e diplomáticas”. A denúncia de Roberto Jefferson morreria à míngua.

Outra estudiosa do assunto, Paula Martins, coordenadora da ONG Artigo 19, olha com entusiasmo os avanços trazidos pela lei, mas põe o dedo em outra ferida: a questão dos recursos. Se um cidadão pede uma informação e ela é negada, ele entra com recurso a ser avaliado pelo mesmo órgão que já o negou. “Esse é um ponto mal resolvido”, adverte. “Em outros países, isso é feito por uma entidade completamente externa ao governo.”

Mas ela comemora um avanço: a lei vai obrigar a autoridade a explicar por que esta ou aquela informação está sendo negada. “O prejudicado pode fazer barulho na mídia, pode recorrer ao Judiciário.”

A coordenadora da Artigo 19 – que se dedica a direitos humanos e considera o acesso à informação um dos mais importantes desses direitos – chama a atenção, também, para o desafio de se criar uma mentalidade e preparar o País para a lei. “Sabemos que a CGU já está se mexendo, adiantando algumas coisas. Mas e as outras instâncias? Estados, municípios, o Legislativo, o Judiciário?”

Tanto Rita de Cássia como Paula acham improvável que se possa dar conta da tarefa nos quatro meses que faltam. E imaginam que o cidadão dificilmente entenderá a lei, nos termos em que foi aprovada, sem uma boa cartilha simplificando e explicando seus direitos.

Acesse em pdf: Controle pelo governo ameaça cidadania, diz professora (O Estado de S. Paulo – 22/01/2012)

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