(O Estado de S. Paulo, 17/05/2016) Executivas do setor acham difícil de acreditar o quanto essa atividade em particular continua sendo território de homem branco
Susan Credle começou cobrindo as recepcionistas da agência de publicidade BBDO em 1985 quando elas deixavam suas mesas para ir ao banheiro. Mais tarde aprendeu a digitar com precisão e rapidez, e foi promovida a secretária. Nas décadas posteriores, tornou-se uma das mulheres de maior sucesso no setor, assumindo cargos executivos elevados de algumas das agências mais respeitadas. Susan é a responsável por campanhas memoráveis, incluindo os personagens do M&M’s que parecem gente e os anúncios sobre desastres da seguradora Allstate.
Entretanto, ainda hoje existem diretores do mundo publicitário que não lhe dão o devido valor. Nas festas do setor, as pessoas acham que deveriam conversar com o seu marido, que é arquiteto. Susan tenta não mostrar as emoções no trabalho porque quando isso acontece, “sou logo vista como uma mulher louca”.
“Mesmo hoje em dia, quando sinto o sangue ferver e quero explodir, controlo uns 90 por cento porque sou mulher”, conta ela.
As mulheres agora representam cerca de 50% da mão de obra no setor publicitário, incluindo um número relativamente pequeno, como Susan, em cargos elevados. Contudo quando uma funcionária da J. Walter Thompson entrou com uma ação, em março, acusando o diretor executivo da empresa de comportamento racista e sexista, a denúncia trouxe à tona o que as mulheres no segmento têm falado há anos: mais de 50 anos depois da era retratada no seriado “Mad Men”, o preconceito de gênero, ainda que geralmente implícito e não admitido, continua a afetar como elas são tratadas no trabalho, com quem interagem e quais são os cargos que ocupam.
A publicidade não é o único setor que luta com questões de comportamento sexista e preconceito de gênero ao longo dos anos, mas em entrevistas com mais de uma dúzia de mulheres, principalmente executivas do setor, muitas disseram que acham difícil de acreditar o quanto essa atividade em particular continua sendo território de homem branco.
Embora algumas mulheres digam que nunca vivenciaram pessoalmente discriminação de gênero e tenham se referido a ele como coisa do passado, muitas afirmaram que se sentiram ignoradas ou rejeitadas repetidas vezes pelos colegas homens e excluídas socialmente. Elas se lembram de momentos em que eram as únicas mulheres em reuniões com colegas e clientes. Algumas citaram os anúncios em si como exemplos de como o sexismo do segmento se manifesta além dos escritórios.
“Sim, existe a conversa de estupro e passadas de mão, mas as coisas sutis é que são crônicas e podem ser mais nocivas”, diz Jean Batthany, diretora de criação da DDB Chicago.
Nancy Hill, executiva veterana que agora é presidente e diretora executiva da 4A, entidade que representa o setor publicitário, afirma que os homens a chamavam de “mocinha” o tempo todo, embora ela trabalhe no ramo há décadas.
“Eles não consideram isso degradante”, declara.
Megan Pagliuca, chefe mundial da agência Accuen, do grupo Omnicom, diz que o sexismo se revela no fato de a grande maioria de eventos sociais em campos de golfe e happy hours serem utilizados com propósitos comerciais, sentimento ecoado por várias das mulheres entrevistadas. Segundo ela, as mulheres são pressionadas a aprender a jogar golfe ou, em geral, agir como os colegas homens para não correrem o risco de perder a chance de estabelecer relações importantes.
“Você tenta se adequar e ser como eles em vez de ser você mesma ou se mantém forte sendo a pessoa que é, sabendo ser a melhor? Para as mulheres, essa escolha é um desafio”, afirma Megan.
Algumas mulheres contaram que a discriminação de gênero aparece quando veem os anúncios que as agências produzem. Muitos retratam papéis estereotipados, com, por exemplo, mães na cozinha e homens dirigindo carros. Várias mulheres observaram que somente 11 por cento dos diretores de criação são mulheres, estatística fornecida pela 3 Percent Conference, que apoia a chefia criativa feminina nas agências.
“Se toda a publicidade for criada através dessa visão masculina dominante e você analisar o resultado, existe parcialidade nisso e essa é somente uma perspectiva”, diz Jean, da DDB.
Também existem expressões mais agressivas e flagrantes do sexismo. Várias mulheres descreveram comentários frequentes sobre sua aparência.
Vinte e cinco por cento das mulheres na publicidade afirmam ter experimentado pessoalmente discriminação de gênero, segundo pesquisa da 3 Percent Conference. Vinte e três por cento contam que vivenciaram pessoalmente ou testemunharam assédio sexual.
No processo aberto em março contra Gustavo Martinez, diretor executivo da J.Walter Thompson, a diretora de comunicação da agência, Erin Johnson, o acusou de submeter os empregados a “um fluxo sem-fim de comentários racistas e sexistas, além de fazer toques indesejados e outras condutas ilegais”. Ela também afirmou que Martinez, que se demitiu na sequência dos fatos, fez “diversos comentários sobre estupro” e, em diversas ocasiões, “agarrou Erin pelo pescoço e pela nuca”. Martinez negou as acusações contra ele.
“Existe muito sexo, drogas e rock ‘n’ roll no setor – e certamente havia naquela época”, diz Rosemarie Ryan, ex-presidente da J.Walter Thompson para a América do Norte e que agora dirige a agência Co:Collective, em relação ao começo de sua carreira nas décadas de 1980 e 1990. “Ainda deve haver resquícios disso.”
Durante anos, os executivos falam em melhorar a diversidade e se livrar da discriminação de gênero na publicidade, mas muitos dizem que o progresso tem sido lento.
“Acho que todos pensam que esse é um problema dos outros”, declara Bill Koenigsberg, fundador e diretor executivo da Horizon Media.
Segundo executivos, um motivo é que existem outras prioridades na publicidade, em função dos desafios prementes surgidos por conta de uma ampla mudança na forma pela qual as pessoas consomem mídia. Outros acreditam que as mulheres podem relutar em denunciar o comportamento sexista.
Várias mulheres disseram que os executivos ficam visivelmente incomodados e terminam a conversa quando a questão de gênero e diversidade racial é levantada.
Na conferência anual publicitária, realizada em março, Maurice Lévy, diretor executivo do gigante do setor, Publicis, assegurou que as acusações no processo contra a J.Walter Thompson eram “um erro individual” e não representam “o que está acontecendo em nosso setor”. No dia seguinte, porém, Martin Sorrell, diretor executivo da WPP, dona da J.Walter Thompson, disse que “existe um problema” e que “Maurice tem o hábito de ignorar os fatos”. Lévy tentou esclarecer seus comentários na semana seguinte num memorando interno, qualificando as alegações no processo de “impressionantes”, acrescentando que “nessa extensão, a meu ver, elas somente podem representar o erro imperdoável de um homem, não o mal de todo um setor econômico”.
Até mesmo algumas mulheres admitem que é difícil abordar a discriminação de gênero na publicidade. Algumas das entrevistadas se recusaram a fornecer dados específicos de exemplos de discriminação de gênero que viram ou experimentam porque queriam proteger relações na área.
Wendy Clark, diretora executiva da DDB da América do Norte, afirma que sentiu uma discriminação mais sutil, mas admite que, para subir na carreira, teve de bloquear a maior parte dela.
“Na verdade, quem sobe na carreira, se torna de certa forma impermeável a tudo isso.”
Acesse o PDF: Para mulheres, publicidade continua sendo o mundo de ‘Mad Men’ (O Estado de S. Paulo, 17/05/2016)