01/04/2012 – Para essa mulher, a vida só começa agora, aos 68

01 de abril, 2012

(Mariana Versolato, da Folha de S.Paulo) Transexual paulistana é a mais velha a fazer a cirurgia de redesignação sexual e diz que a vida está começando agora

A cabeleireira aposentada Andréia Ferraresi, 68, de São Paulo, é a transexual mais velha do país a fazer uma cirurgia para troca de sexo. Registrada ao nascer como Orlando, ela esperava pela operação desde 1979, quando recebeu o diagnóstico de transexualidade. Sem dinheiro para pagar pelo procedimento, teve que aguardar até que a cirurgia fosse feita no SUS. Foi operada no dia 27 de fevereiro, no HC.

andreiaferraresi_marisacauduro_folhapress260Sofri muito na vida por um conflito de identidade e esperei por essa cirurgia desde 1979, quando procurei o HC e recebi o diagnóstico de transexualidade.

Na época, o SUS não fazia a cirurgia. Quem fazia eram os médicos particulares. Fui a dois e me cobraram um preço exorbitante. Minha mãe disse que não tinha dinheiro e eu entendi. Ela já sofria, se sentia culpada por mim.

Sou a caçula de 11 irmãos e todos eram “normais”. Os irmãos que nasceram pouco antes de mim eram homens e minha mãe queria que a última fosse menina. E nasceu uma menina, mas com os órgãos que os outros tinham.

O sofrimento sobrou para mim, com “bullying” na escola e aquele conflito de você sentir uma coisa e não ser o que você sente.

Na infância, só brincava com as meninas. Um dia, no colégio, ganhei uma boneca na rifa e os meninos falaram: “Mariquinha, mariquinha!”. Eles pensavam que estavam me ofendendo, mas quanto mais falavam mais orgulho eu sentia da boneca.

Com 14 anos, peguei o vestido da minha irmã. O povo dizia que tinha caído certinho em mim. Minhas vizinhas me deram saias e comecei a usar roupa de mulher.

Quem aceitou mais foi minha mãe. Ela sempre quis me proteger. Mas meu pai e um irmão me perseguiram até eu fazer os exames que provaram que eu era transexual.

Quando saiu o diagnóstico me pediram até perdão. É muito ruim você se sentir reprimida pela própria família.

Ainda teve o regime militar. Os transexuais sofreram demais com perseguições policiais. Cheguei a ficar um mês na prisão, mas o juiz me soltou. Viram que eu não tinha perigo nenhum, nunca fui criatura de beber, de vida fácil. Sempre tive meu trabalho de cabeleireira.

O tempo foi passando até que encontrei o CRT [Ambulatório para Saúde Integral de Travestis e Transexuais do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids], em 2009. Quando cheguei, estava numa depressão fora do comum, um trapo.

Comecei o tratamento com o psiquiatra, tomei remédios por um ano e fui encaminhada para a operação. Sou a primeira do ambulatório a fazer a cirurgia e vou abrir a porta para muitas que precisam.

IDADE

O povo dizia: “Mas não é um pouco tarde para você fazer a cirurgia?”. E eu respondia: “Não, eu ainda preciso viver, não vivi minha vida! Estou começando só agora”.

Eu tenho idade de vovó, mas me sinto forte e feliz. A velhice está na cabeça das pessoas. Os homens, quando passam por mim na rua, falam: “Quanta saúde!”.

Se eu puder pegar um forrozinho, eu vou, faço dança do ventre. Um médico me disse: “Do jeito que está indo, a senhora vai viver uns 95”. E eu disse: “Quero viver ainda mais, doutor!”.

A cirurgia mudou tudo. Esqueci aquele passado de sofrimento. O que interessa agora é daqui pra frente.

Fiquei muito satisfeita com o resultado. Não tem uma cicatriz. Parece que eu nasci assim. Estou até me sentindo mais bonita.

Já uso o nome Andréia Ferraresi porque um juiz me deu autorização, mas agora está correndo o processo de mudança de sexo também no registro. Quero que aconteça rápido porque preciso casar, preciso de um amor.

Estou solteira, mas a minha felicidade é tanta que namorar é coisa secundária. Quero um amorzinho, mas com o pé no chão. Ficar na vida promíscua eu não quero, porque hoje em dia a doença venérea está demais.

Eu transava bastante quando era mais nova e não tinha Aids. Era um tempo bom. Pena que não vivi integralmente com essa periquita (risos).

Hoje me valorizo mais. A vida não se resume em sexo. Não é porque fiz a cirurgia que vou ficar no oba-oba. Eu fiz para mim, para a minha identidade, para me olhar no espelho e ver que sou mulher, não ver aquela coisa estranha que não estava combinando.

A cabeça da gente muda quando sai da mesa de operação. Ela elimina o que você tem de transtorno na sua cabeça. Fui solta de uma gaiola que me aprisionou por todos esses anos.

Hoje, a passarinha está voando, solta, feliz da vida. Os problemas parecem não ter o tamanho que tinham. Antes pensava que se não consegui um emprego era por causa de preconceito. Hoje dou uma banana pro preconceito. Só importa que estou feliz da vida, mostrando que idade não tem nada a ver

Assista ao vídeo da reportagem Paulista de 68 anos faz cirurgia de mudança de sexo pelo SUS (TV Folha – 01/04/2012)

Maioria faz ‘troca de sexo’ aos 20 ou 30 anos

Desde 2008, quando a cirurgia de redesignação sexual passou a ser feita no SUS, 116 pessoas se submeteram à operação -isso até dezembro do ano passado.

Até 1997, havia um empecilho a mais: a operação era ilegal. Só naquele ano o Conselho Federal de Medicina autorizou a cirurgia, de forma experimental. Em 2002, o conselho aprovou de vez a retirada do pênis e constituição de uma vagina.

Em 2010, os transexuais masculinos também receberam autorização para retirar útero, ovários e mamas, mas ainda se considera experimental a cirurgia chamada neofaloplastia, que cria um pênis a partir de pele de outras partes do corpo.

Uma cirurgia de “troca de sexo” aos 50 ou 60 anos não é comum, dizem os especialistas. “Aos 68, é extraordinário”, diz Francisco Tibor Dénnes, urologista e chefe do setor de Identidade de Gênero – Transexualismo do Hospital das Clínicas.

“Essa população transexual de 60, 70 anos esteve exposta ao vírus da Aids e diminuiu muito. É um grupo muito mais sofrido”, afirma Alexandre Saadeh, do Instituto de Psiquiatria do HC.

O mais comum, segundo o psiquiatra, é a cirurgia ocorrer na faixa de 20 a 30 anos.

Denés diz que, na paciente idosa, só é preciso ter mais cuidado na cirurgia por causa do risco cardíaco.

O interessado em se submeter à operação deve ser maior de 21 anos e ter sido diagnosticado como transexual por uma equipe de psicólogos e psiquiatras.

A cirurgia é feita pelo SUS em quatro centros no Brasil: no HC, em São Paulo; no Hospital de Clínicas da UFRGS, em Porto Alegre; no Hospital Universitário Pedro Ernesto, no Rio, e na Universidade Federal de Goiânia.

Acesse em pdf: Mulher aos 68 (Folha de S.Paulo – 01/04/2012)
Maioria faz ‘troca de sexo’ aos 20 ou 30 anos (Folha de S.Paulo – 01/04/2012)

Leia também: Transexuais reivindicam atendimento mais qualificado (Conselho Nacional de Saúde – 29/03/2012)

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