(O Estado de S. Paulo) Quando em 2001 o primeiro curso de formação de doulas teve lugar no Brasil, por iniciativa de um médico obstetra, ninguém poderia imaginar a importância que essas profissionais teriam num futuro tão próximo. Naquela época raras pessoas sabiam o que era uma doula e sua função. Apesar de ainda hoje se fazer muita confusão, muita gente já conhece as funções a elas atribuídas, sua importância e seu papel no cenário da assistência ao parto.
Doulas são mulheres treinadas para dar suporte durante o parto. Embora elas não possam executar a parte técnica da assistência, têm papel importante durante o processo, o que faz a maior diferença nos resultados. Em outras palavras, pensando num mesmo público, mesma maternidade, mesma equipe de médicos e enfermeiras, são as mulheres acompanhadas por doulas as que serão mais beneficiadas. Os estudos mostram redução de 20% nas taxas de cesariana e de 30% nos nascimentos de bebê com baixa nota nos primeiros minutos de vida, para citar alguns parâmetros, tudo isso sem nenhum efeito deletério.
Os dois modelos de atuação são as doulas do setor privado, remuneradas por seu trabalho de atendimento a clientes que as contratam, e as doulas voluntárias, que trabalham no sistema público sem conhecer anteriormente as gestantes que vão atender. Nos países do primeiro mundo, como Estados Unidos por exemplo, as doulas já estão ativas na assistência há mais de 30 anos.
No Brasil existem entre 2 mil e 4 mil doulas atuantes entre os dois setores, embora não haja um número oficial ou um cadastro único. Neste 31 de janeiro, o Ministério do Trabalho lançou a nova versão da Classificação Brasileira de Ocupações onde figura, pela primeira vez, a ocupação de doula. Não existe uma profissionalização oficial, tal qual ocorre em outras ocupações em que não há execução de procedimentos de risco para a população. Tal qual fotógrafos e cinegrafistas que adentram o recinto do parto, as doulas não executam procedimentos médicos ou de enfermagem, não oferecendo, portanto, riscos à população. As funções básicas da doula são: acompanhar, acalmar, oferecer suporte emocional e físico, realizar massagem localizada, sugerir movimentos, respirações, atitudes, enfim, uma miríade de ferramentas que ajudam a mulher a atravessar o intenso processo que é dar à luz um bebê.
Uma grande polêmica ocorreu essa semana quando dois grandes hospitais privados da capital paulista proibiram a presença de doulas nos partos, alegando risco de infecção, e recuaram após imensa repercussão na mídia e nas redes sociais. A questão, no entanto, passa longe dos alegados riscos.
Estamos falando de relações de poder, de interesses econômicos, de falta de gerenciamento do setor privado.
Uma boa parte dos hospitais privados do Brasil apresenta taxas de cesarianas superiores a 90%. As cesarianas marcadas são o pilar de sustentação financeira das maternidades privadas. Partos normais, apesar de mais seguros, causam prejuízo, ocupam imprevisivelmente o leito por muito tempo, dão trabalho à enfermagem, não têm hora para ocorrer e não podem ser controlados. Doulas, acompanhando mulheres em trabalho de parto que querem muito um parto natural, perturbam a ordem natural de um centro cirúrgico estruturado para cesarianas pré-agendadas. Doulas pedem água, alimentos e explicações. Mulheres acompanhadas de doulas desobedecem às regras da instituição, questionam, desafiam. Pais acompanhados de doulas são mais protetores e questionadores. Doulas incomodam, partos normais incomodam.
Enquanto todos os setores do nosso país não assumirem que as mulheres estão sendo roubadas em seus partos, tanto no setor privado, com suas cesarianas agendadas, quanto no setor público, com seus partos altamente medicalizados e violentos, não poderemos avançar de fato nas crises profissionais. O problema não são as doulas e sua regulamentação. O problema não são as alegadas infecções provocadas pela presença de mais um acompanhante. Estamos falando de um processo de violência coletiva que vem se perpetuando há décadas em nosso país, sob os olhos semicerrados do governo, da Agência Nacional de Saúde Suplementar, do Ministério da Saúde, das secretarias.
Se nem a Lei do Acompanhante é obedecida em mais da metade das instituições paulistas, o que se dirá de uma iniciativa que deve ser tomada de livre e espontânea vontade pelas instituições para melhorar a assistência às mulheres que desejam um parto suave, prazeroso, positivo, acolhedor? Ainda temos um longo caminho a percorrer, e as doulas continuarão a ter um papel fundamental nesse processo.
Ana Cristina DUarte – Obstetriz pela USP , coordenadora do grupo de apoio à maternidade ativa (GAMA)
Acesse em pdf: Doula a quem doer, por Ana Cristina Duarte (O Estado de S. Paulo – 02/02/2013)