(O Estado de S. Paulo) O deputado petista Luiz Alberto, da Bahia, é o idealizador da PEC (Proposta de Emenda à Constituição) que reserva vagas para candidatos de origem negra na Câmara e nas assembleias legislativas dos Estados. Se aprovada, ela terá validade por 20 anos, podendo ser prorrogada se os objetivos propostos não forem alcançados.
Negro e ocupante de uma cadeira na Câmara desde 1997, o deputado diz na entrevista abaixo que chegou lá quase por milagre, uma vez que as regras dos processos político, partidário e eleitoral no Brasil não favorecem os negros, os pobres, os excluídos. Segundo sua avaliação, elas são feitas para favorecer quem detém o poder econômico.
O deputado também afirma que o País vive a ilusão de uma democracia racial. “O modelo brasileiro é mais perverso, pior do que o modelo segregacionista, do ponto de vista da exclusão”, diz ele. “Na África do Sul existiam universidades para negros quando vigorava o apartheid. Nos Estados Unidos também. No Brasil, não. Na nossa suposta democracia racial, os negros poderiam frequentar qualquer universidade. Mas eram só os brancos que frequentavam. Sempre.”
A PEC do deputado baiano passou na semana passada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. Para ir a votação em plenário, ela precisa antes ser analisada por uma comissão especial, dedicada exclusivamente à sua discussão. No plenário, com 513 parlamentares, ela será aprovada se tiver o apoio de pelo menos 308.
O que motivou o senhor a apresentar a proposta?
A constatação da baixíssima representação de parlamentares negros no parlamento, tanto no plano federal quanto nas assembleias legislativas. Pesquisei a situação de vários países do mundo e vi que ainda estamos muito atrasados. Na Europa os migrantes estão ganhando espaço. A Colômbia tem um sistema de cotas para negros. A Bolívia criou mecanismos de participação para a população indígena. Acho que podemos avançar no Brasil. Na Câmara, com 513 deputados, nós temos menos de 5% de representantes. No Senado temos 2 senadores de um total de 82.
O senhor tem um levantamento das assembleias estaduais?
Não. Eu me pautei pelo que conheço da Bahia. Embora seja um Estado de maioria expressiva negra, a Assembleia conta com apenas 2 deputados negros, de um total de 63. Por outro lado, entre os 39 deputados federais baianos na Câmara, só temos 4.
A aprovação da PEC poderia abrir caminho para outros grupos também reivindicarem cotas, como as mulheres e as pessoas com deficiência física. Isso não seria ruim para o Congresso? Não poria em segundo plano a representação de grupos ideologicamente diferentes?
Todos os grupos que você citou têm legitimidade para reivindicar mecanismos de representação no parlamento. Eu estou falando, evidentemente, de um segmento que é expressiva maioria da população. De acordo com o IBGE, a população negra autodeclarada no Brasil chega a 50,7% do conjunto dos brasileiros.
Ações afirmativas como a que propõe sempre foram mais identificadas com países em que a segregação racial teve impacto na população. Elas seriam adequadas ao Brasil, onde houve integração entre diferentes grupos étnicos? Há quem afirme que esse tipo de proposta favoreça o racismo, em vez de combatê-lo.
É um argumento falacioso. O que estimula o racismo é a crescente desigualdade que ele produz no Brasil. Se você pegar todos os indicadores negativos registrados no País, verá que a presença de negros é sempre significativamente maior. Veja o caso da violência que atinge jovens de 17 a 24 anos: a imensa maioria das vítimas é constituída por jovens negros. O mesmo ocorre com o analfabetismo, o desemprego, a baixa representatividade no Parlamento. Também diziam que a política de cotas que aprovamos e que está vigorando nas universidades do País iria estimular as situações de conflito. Mas isso não se confirmou. Na verdade as universidades ficaram mais ricas com a maior diversidade étnica e racial.
Acha que as cotas no Legislativo serão tratadas pelos deputados como as cotas universitárias?
Não. A polêmica agora será maior, porque se trata de uma tentativa de ampliar a participação de setores mais populares num ambiente de disputa real de poder. É ali que são decididos os rumos do Brasil. A resistência será maior.
Ouvindo o senhor, a impressão é de que as cotas parlamentares irão abrir as portas para parlamentares comprometidos com os interesses populares. Mas os negros, assim como os brancos, poderão ir para o Congresso representar interesses pessoais e de grupos econômicos, os lobbies de construtoras, de ruralistas, de setores industriais.
Eles são cidadãos semelhantes aos outros, com suas diferentes visões ideológicas e políticas. De acordo com a minha proposta, todos os partidos poderão disputar essas vagas reservadas para a população negra. Um partido de direita vai recrutar negros de direita, o de esquerda vai buscar gente de esquerda. Serão parlamentares com as mais diferentes visões ideológicas. Não estou dizendo que, pelo fato de ser negro, ele vai defender causas populares. O que noto, no entanto, é que a maioria dos parlamentares negros ou mulheres estão mais presentes em partidos de esquerda.
Por que acha que os candidatos negros, nas condições atuais, não têm as mesmas chances que os brancos de serem eleitos?
A seleção no sistema eleitoral brasileiro se faz a partir do critério econômico. O poder econômico define a composição do parlamento brasileiro. Por outro lado, os partidos ainda são pouco democráticos nas relações internas de poder. Há poucos negros e mulheres no comando desses partidos.
Se o processo fosse mais democrático, como o senhor diz, teríamos mais possibilidades de um presidente negro?
Se o processo eleitoral fosse mais democrático, aconteceria aqui o que vimos nos Estados Unidos, que elegeu um presidente negro. Nas últimas eleições para o parlamento alemão, um negro foi eleito, pela primeira vez na história daquele país. O parlamento da Polônia tem quatro negros. No Brasil é gritante essa baixa representação da população negra. O modelo brasileiro é mais perverso do que o modelo segregacionista, do ponto de vista da exclusão.
Poderia explicar melhor?
É pior porque trabalhamos com uma ideia ilusória de democracia racial. Nos Estados Unidos e na África do Sul, apesar do apartheid, os negros tinham direitos reconhecidos, embora com qualidade diferenciada. Na África do Sul existiam universidades para negros. Nos Estados Unidos também. No Brasil, não. Na nossa suposta democracia racial, os negros poderiam frequentar qualquer universidade. Mas eram só os brancos que frequentavam. Sempre. Isso mudou muito recentemente, com a instituição de cotas nas universidades. No fundo, o modelo que criou essa tal democracia racial serviu para excluir brutalmente a população negra da sociedade.
O senhor é negro e chegou ao parlamento.
Foi quase um milagre. Foi com muita batalha. Se olhar o histórico das eleições de que participei, verá que sempre sou o último da lista. Cheguei à Câmara em 1997 após ter sido eleito como suplente. O segundo mandato também foi como suplente. E foi só a partir daí, com muita luta, que passei a me eleger diretamente. Parte disso se deve ao fato de pertencer a uma categoria que se mobiliza muito, a dos sindicalistas do setor petroleiro, e à minha militância no movimento negro.
Outra crítica que se faz à proposta do senhor é que, ao reservar vagas, pelo sistema de cotas, abre caminho para a entrada de candidatos com votação inexpressiva e pouca representação.
Não acredito nisso. Os partidos vão apostar para ganhar o máximo possível dessas cadeiras reservadas. Vão criar condições para o seu candidato se eleger com o maior volume de votos possível.
Acesse o PDF: “Ilusão da democracia racial é pior do que segregacionismo”, diz deputado (O Estado de S. Paulo – 05/11/2013)