10/03/2013 – ‘Governos devem assumir responsabilidades e liderar mudanças para garantir os direitos das mulheres’, diz canadense

10 de março, 2013

(O Estado de S. Paulo) Para autora, mulheres conquistaram mais espaço na sociedade e na política, mas devem continuar alertas ao que está em jogo

Um, não. Mais de 100 corpos femininos estirados no chão, esquecidos à própria sorte nos confins da Índia oriental. Eram mulheres deixadas inconscientes num terreno após a esterilização sob condições desumanas. A cena, relatada no início de fevereiro, faz questionar a efeméride de março: o que há, de fato, para celebrar no Dia Internacional da Mulher?

Na sexta-feira, enquanto manifestações coloridas e protestos independentes se espalharam por diversos países para lembrar o histórico 8 de março (pró-Pussy Riot em Moscou, por liberdade com o Femen em Kiev, por justiça a Jyoti Singh Pandey em Nova Délhi, por direitos iguais nas Filipinas e na Indonésia, e a lista continua…), a canadense Françoise Girard estava no QG das Nações Unidas, em Nova York. Ali se reuniu com políticos e milhares de ativistas na Comission on the Status of Women (CSW) para discutir o presente e o futuro para a questão da violência contra a mulher no mundo, com especial atenção para os direitos sexuais e reprodutivos da mulher.

Presidente da International Women’s Health Coalition (IWHC) desde fevereiro de 2012, Françoise é mestre em ciência política pela Universidade McGill e bacharel em direito pela Universidade de Montreal. De Manhattan, ela conversou com o Aliás. A seguir, trechos da entrevista.

Um alvo preferencial

“É preciso considerar que as questões relacionadas ao corpo e à sexualidade feminina ainda são assuntos muito delicados na política das relações internacionais. Por quê? Ora, porque a desigualdade de gêneros persiste. O corpo e a sexualidade feminina são sempre alvo de controvérsias, pois são os principais campos de batalha para conservadores e progressistas no mundo inteiro. A proximidade da Cairo+20 (em 2014) e da revisão do Millennium Project, das Nações Unidas (em 2015) podem mobilizar governos para intensificar a garantia dos direitos sexuais e reprodutivos para a mulher. Esse é um bom momento para definir uma nova agenda feminista, mas com uma perspectiva mais global. E, nesse novo framework, queremos uma compreensão multissetorial, mesclando diferentes questões: mulheres, desenvolvimento, ambientalismo. Garantir os direitos das mulheres e a igualdade de gêneros é uma dimensão essencial para se atingir um desenvolvimento sustentável. Uma agenda feminista atual deve se articular diretamente com essas questões.

Bigger Picture

“As questões femininas contemporâneas devem ser consideradas nessa perspectiva global, apesar das singularidades de determinados países. A experiência mais impactante que tive trabalhando na questão da violência contra a mulher foi numa viagem ao Congo oriental, em 2008, após a assinatura do acordo de paz. Lá encontrei muitos movimentos, conversei com mulheres que passaram por abusos horríveis, em lugares onde o estupro é usado como estratégia de guerra. Primeiro, pensei: elas não vão querer falar sobre algo tão terrível. Mas, para minha surpresa, elas queriam falar, sim. Queriam contar suas histórias e compartilhar como estavam tentando reconstruir suas vidas. Outra singularidade encontramos no sul e no leste da África, onde há países com altos índices de aids entre mulheres, especialmente entre mulheres jovens. Ali há uma forte relação entre o HIV e a violência íntima, em relações abusivas por namorados e maridos. Esses países enfrentam uma epidemia dupla: o HIV e a violência contra a mulher.

No front, mas com pequenos avanços

“Outro exemplo é a paradoxal condição feminina no mundo árabe. Por um lado, as mulheres estiveram no front da Primavera Árabe, lutando por democracia, lado a lado com os homens. Por outro, ainda precisam batalhar para defender seus direitos mais básicos nesses países. Há ainda os últimos acontecimentos na Índia, país que já visitei diversas vezes, onde abusos como os estupros coletivos e as esterilizações forçadas acontecem há tempos, mas que agora estão ganhando atenção internacional inédita. O movimento feminista indiano está incrivelmente ativo e inteligente para garantir que, desta vez, o governo tome atitudes para defender as mulheres – como o Justice Verma Committe, que fez um relatório de 600 páginas, destacando a responsabilidade do Judiciário para tratar desses estupros.

Quero dizer que nesses exemplos dispersos, de realidades e culturas diferentes, a violência contra a mulher segue a mesma lógica. É uma arma para controlar o corpo feminino – e a presença sociopolítica feminina. Por que, em vários lugares do mundo, ainda dizem para as mulheres: ‘não fique na rua à noite’, ‘não ande sozinha’, ‘não faça isso’? As mulheres são livres e vão aonde quiserem. Esse cerceamento acontece no universal e no singular, no público e no privado, no internacional e no nacional. Então, precisamos reconhecer as semelhanças desses processos. É uma oportunidade para firmar um sentimento de solidariedade, que é muito importante para se ter a articulação de um movimento mundial.

Cães de guarda

“Nos últimos tempos, certamente testemunhamos muitas mudanças e progressos. As mulheres conquistaram mais espaço na sociedade e na política. Mas precisamos continuar vigilantes. Precisamos garantir que o movimento feminista tenha habilidade e recursos para continuar atuando como ‘cães de guarda’ atrás dos governos, não importa quem estiver no poder. Não podemos supor que as coisas simplesmente caminhem para frente, pois também podemos caminhar para trás. Aí você me pergunta: o que deve ser feito? E o que realmente pode ser feito? Primeiro, os governos devem assumir responsabilidades e liderar mudanças para garantir os direitos das mulheres. Precisamos de uma educação que vise à igualdade de gêneros, que impeça a permanência de estereótipos entre meninos e meninas. Mas, paralelamente, precisamos dos movimentos, os tais ‘cães de guarda’. Pois os homens não darão poder às mulheres, assim, simplesmente de graça. Precisamos disputá-lo sempre. Isso é essencial para continuar caminhando para frente.”

Por Juliana Sayuri

FRANÇOISE GIRARD. PRESIDENTE DA INTERNATIONAL WOMEN’S HEALTH COALITION, EM NOVA YORK

Acesse em pdf: ‘Não ande sozinha?’ (O Estado de S. Paulo – 10/03/2013)

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