Vitória, insegurança jurídica e omissões na Emenda constitucional nº 72/13
(Jornal do Brasil) Aprovada em junho de 2011, na cidade de Genebra, na Suíça, durante a 100ª Conferência Anual da Organização Internacional do Trabalho, a Convenção OIT nº 189 veio conferir aos empregados domésticos diversos direitos de que usufruem os profissionais de outros segmentos, a exemplo da limitação à jornada de trabalho, estabelecendo parâmetros para a segurança social e promovendo a discussão sobre os direitos trabalhistas básicos de qualquer empregado.
Em 2 de abril deste ano, foi aprovada a Emenda constitucional nº 72/13, surgida pela conhecida Proposta de Emenda constitucional conhecida como “PEC das Domésticas”. Inicialmente, a PEC reparou equívoco pontuado no artigo 7º da Carta Cidadã, sendo de suma importância para o nosso sistema jurídico. Diga-se, de passagem, que a omissão que existia na Carta Maior decorria exclusivamente da prática escravocrata existente no Brasil em momento pretérito próximo.
Não há dúvidas de que houve uma vitória dos domésticos — uma das profissões historicamente mais negligenciadas — com a nova regra constitucional, a qual representa inegável passo à frente na trajetória de direitos destes trabalhadores. Nada obstante, a aprovação da PEC e a alteração do parágrafo único do artigo 7º da Carta Maior, na forma da redação como se apresenta na Emenda constitucional nº 72/13, gerou diversas inseguranças jurídicas, que deveriam ser remediadas.
Dentre os vários pontos controversos, merece destaque a jornada de trabalho. Tudo em decorrência de esse empregado doméstico alcançar sua jornada de trabalho equiparada aos demais empregados celetistas, ou seja, no período máximo de oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, sob pena de o empregador adimplir com horas extras.
Nessa esteira, é possível vislumbrar a deficiência quanto à fiscalização do horário de trabalho do empregado doméstico, haja vista a forma de como deve ser realizado o controle da jornada de trabalho pelo empregador.
Sabido que o trabalho doméstico não gera lucros ao empregador, sendo confiado ao primeiro, dentro do seio da família. Nesta forma, a fiscalização pelos órgãos competentes não pode e não deve estender seus limites às residências, ou seja, não vai ocorrer qualquer tipo de fiscalização, o que se reverterá em inúmeras ações judiciais trabalhistas. Com isso, cumpre questionar se os familiares do empregador podem testemunhar em juízo, visando fazer prova, e como serão produzidas as provas nestas ações. A resposta à primeira pergunta obviamente é não. Já a segunda dependerá de cada caso em particular.
Assim, mesmo concordando que a limitação da jornada do trabalho doméstico é justa e deve ser respeitada, necessitamos urgentemente de legislação que regulamente a forma de fiscalizar esta jornada, pois o novo marco regulatório foi omisso nesse ponto.
No rol de benefícios estendidos aos empregados domésticos, a despedida sem justa causa também veio pontuada pela Emenda constitucional nº 72/13, visando proteger a classe contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, na forma da lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos.
Ponto revestido de omissão, em relação à retroatividade da lei, trata-se justo da garantia do doméstico ao benefício do fundo de garantia. Ocorre que a disposição é insegura quanto ao direito retroativo ou não do trabalhador doméstico. Tal situação pode parecer exagerada, mas argumento semelhante surgiu na ocasião em que fora aprovada lei que modificou a disciplina do aviso-prévio (de trinta para noventa dias), aplicando aos empregadores os pagamentos retroativos, sendo pacificada a divergência com a Súmula nº 441, do Tribunal Superior do Trabalho. Importante destacar que a Corte trabalhista não possui competência para legislar, sendo a súmula jurisprudencial sem força de lei, mesmo sabendo que é utilizada muitas vezes como se lei o fosse.
Assim, diante do que dispõe a EC nº 72/13 quanto ao depósito de FGTS, indaga-se: a regra vai retroagir ou não? Entendemos que a lei não pode retroagir. Antecipando-se ao surgimento de dúvidas como esta, o legislador deveria ter se preocupado com a redação aprovada da PEC.
Outro ponto não reconhecido pela nova Emenda constitucional refere-se à redução dos riscos do trabalho. Caso o trabalho doméstico apresente algum risco, poderá ser considerado insalubre ou perigoso? Poderá ser acrescido o salário do doméstico de adicional de insalubridade ou periculosidade? A norma pecou nesse sentido, visto que não menciona as atividades que o doméstico pode ou não realizar, não se vislumbrando norma regulamentadora nesse sentido.
Por mais que a equiparação do direito dos domésticos ao dos demais empregados rurais e urbanos tenha trazido regras válidas, suscita uma série de dúvidas que devem originar inúmeras ações judiciais na Justiça do Trabalho.
Importante registrar que os novos direitos de imediata aplicação são os pontuados nos incisos X, XIII, XVI, XXII e XXVI do artigo 7º da Constituição federal; e os que dependem de regulamentação, aqueles inseridos nos incisos I, II, III, IX, XII, XXV e XVIII, do dispositivo constitucional.
Sem embargo, a Emenda constitucional nº 72/13 reflete a modernização dos direitos dos domésticos, chegando em momento certo para afastar quaisquer resíduos herdados da época escravocrata que ainda persistiam nas relações de trabalho. Nessa esteira, será preciso uma grande cooperação entre órgãos fiscalizadores, sociedade, empregados e empregadores, para que as vitórias consignadas no texto constitucional sejam efetivadas e respeitadas.
André Marques, advogado e escritor, colunista.
Acesse em pdf: Os novos empregados domésticos, por André Marques (Jornal do Brasil – 09/05/2013)