(Folha de S.Paulo) Há alguns anos fui assistir no festival de cinema do Rio o documentário “Mulheres Sem Piedade”, do diretor alemão Lukas Roegler, que conta a história de nigerianas forçadas a se prostituir na Europa.
De distintivo, há a constatação de que a rede mafiosa é chefiada por mulheres e a forma de coerção: um pacto de sangue feito ainda na Nigéria entre as mulheres traficadas e um mestre de vodu.
O filme foi bom ao mostrar como uma crença pode moldar as atitudes humanas e que é possível romper com isso. Mas o melhor veio no debate após a sessão.
Após a exposição do diretor, foi a vez de Gabriela Leite, puta e ativista política, que destacou a dificuldade de compreensão acerca da prostituição, expressa, por exemplo, no combate ao turismo sexual, dizendo algo como: “Se hotel ganha dinheiro com turismo, botequim, garçom e tanto mais gente ganham dinheiro com o turismo, por que puta não pode fazer o mesmo?”.
Da plateia, houve a fala de um antropólogo –holandês, creio–, destacando que entre as pessoas que conhece e com quem faz sua pesquisa sobre prostituição em Copacabana, seria possível encontrar cinco que foram vítimas de tráfico humano para fazer um filme parecido com o que tinha sido apresentado pouco antes.
Entretanto, por mais terrível que isso seja, não discute o mais importante: a prostituição é predominantemente uma atividade livre e feita por pessoas adultas.
Não tenho restrição moral contra a prostituição, pois adultos devem poder decidir livremente em que condições querem fazer sexo. Mas a situação de pobreza que força mulheres a se prostituírem me fazia vê-las apenas como vítimas. Esse debate mudou minha opinião: é preciso regulamentar o exercício da profissão.
Afinal, ela é um jeito legítimo de buscar uma atividade mais rentável e autônoma. Mas mantê-la no gueto, submetida à violência da polícia –no Brasil, prostituição não é crime, mas é possível enquadrá-la como ato obsceno ou atentado ao pudor– ou de seus “protetores”, prejudica demais a vida desses profissionais.
O regramento, como usual quando o Estado intervém nas vidas privadas, deve ser parcimonioso: é razoável, por exemplo, exigir exames médicos regulares e definir espaços nas ruas para a prática do “trottoir”.
Claro, a prostituição infantil e o tráfico humano devem continuar sendo um crime grave. Porém, é preciso legalizar o agenciamento e os bordéis. Não há razão para proibir práticas comuns de mercado, como a intermediação comercial e a provisão de infraestrutura para um serviço, se elas são feitas livremente.
Não é fácil garantir uma liberdade individual se a maioria é contra, em especial quando há grupos politicamente ativos, como os religiosos. Esse é um conflito intrínseco à democracia, mas é preciso achar um jeito de priorizar os direitos civis.
Nesse sentido, foi alvissareiro ver o médico infectologista Dirceu Greco, ex-diretor do departamento de DST do Ministério da Saúde, no programa “Entre Aspas”, da Globonews.
Greco foi sereno ao dizer que é uma vitória ter trazido a discussão à tona, mesmo isso tendo levado à sua demissão. Além disso, se contrapôs ao conservadorismo, que não se limita aos grupos religiosos, mas em alguma medida também existe em parte do movimento feminista.
Presente no mesmo programa, a socióloga e especialista em gênero Rosana Schwartz mostrou certo desconforto com a frase da campanha que detonou a polêmica –“eu sou feliz sendo prostituta”–, alegando que suas pesquisas apontam que apenas 5% ou 6% delas seriam felizes com sua profissão.
Rosana prefere que tivesse sido usada outra frase, que enfatizasse a necessidade de se proteger.
Greco lembrou que as frases da campanha são de prostitutas e que havia mais de uma sobre a proteção, como: “Eu não posso ficar sem a camisinha, meu amor”.
Ele também destacou que a felicidade não está (necessariamente, acrescento eu) na profissão em si, mas em poder ser feliz, mesmo ganhando a vida de um jeito difícil, como em muitas outras profissões.
Ninguém precisa gostar da prostituição, mas o mundo fica melhor se tentamos entender as razões alheias. Nesse sentido, sugiro a leitura do livro de Gabriela Leite “Filha, Mãe, Avó e Puta”.
*Marcelo Miterhof, 38, é economista do BNDES. O artigo não reflete necessariamente a opinião do banco.
Acesse em pdf: Prostituição legal (Folha de S.Paulo – 13/06/2013)