(Portal Geledés) A Globo se preocupa até com a vida online de seus personagens, um brinco! No tempos de Fina Estampa, Griselda tinha um hotsite para sua empresa. Com Amor à Vida é possível conhecer online o Hospital San Magno. Ali estão os médicos mais importantes da trama, seis personagens brancos, entre eles a mocinha. É nesse ambiente que será inserida Verônica, interpretada por Ana Carnatti, após a constatação de que não havia negros na trama.
Mas escalar uma única atriz negra evidenciou o que todos sabemos. A empresa segue declarando que “não divide o elenco pela cor da pele, mas pela compatibilidade artística com os personagens oferecidos e a história” . Só que 97% das mulheres em Amor à Vida não são negras. E pasmem, se não fizermos diferenciação entre os dois gêneros representados, temos basicamente a mesma proporção. Ah sim, outro detalhezinho é que não existem personagens transexuais.
Em outras palavras, enquanto algumas personagens tem até vida online, negros e transexuais são carta fora do baralho. No máximo experimentações, marginais à construção da identidade e coesão nacionais por meio de imagens estrangeiras à nossa realidade. Na era da informação, o racismo à brasileira (e o cissexismo, preconceito contra pessoas trans*) parecem se alimentar sem reservas da exclusão e do confinamento midiáticos.
OS ESPAÇOS QUE NÃO PODEMOS OCUPAR
Nos resta perguntar porque profissionais negros são preteridos quando o assunto é o horário nobre das novelas. O departamento de telejornalismo, outro espaço onde somos parcamente representados, oferece pistas. A profissão de jornalista está entre aquelas que menos tem negros, com apenas 15% segundo Censo de 2000. Número que mostra, sem máscaras, que somos uma sociedade estruturalmente afeita ao racismo e ao encobrimento desavergonhado das desigualdades.
Notem, quase a mesma proporção que vemos nas novelas.
Jornalistas não são diferentes de médicos que se negam a atender indigentes, de professores de escolas públicas que proíbem a entrada de alunos sem uniforme, de empregadores que pagam menores salários a mulheres, ou de qualquer outra pessoa que segura sua bolsa ao avistar um negro vindo em sua direção em uma rua escura”, afirma o Coletivo Intervozes. Assim como nossos folhetins, o jornalismo não está imune ao preconceito que por vezes se apresenta como ficção ou inocente opinião.
Enquanto os autores falam da “compatibilidade artística”, o jornalismo fundamenta sua exclusão por meio de uma suposta imparcialidade. Os primeiros justificando tramas com 90% de atores brancos como Sangue Bom, Flor do Caribe ou Avenida Brasil. O segundo para estampar jovens negros como suspeitos em potencial, para esconder as desigualdades que justificam ações afirmativas ou criar a ilusão de que a pauta pela equidade racial é sinônimo de ódio racial.
GUETOS MIDIÁTICOS
A representação do negro se restringe a guetos midiáticos apesar de exemplos como a vindoura médica Verônica em Amor à Vida, o protagonismo de Camila Pitanga e Lázaro Ramos em Lado a Lado. Ou ainda de Alexandre Henderson no Globo Ciência. Nesse caso as ausências devem ser lembradas. Gabriela nunca foi mostrada em sua negritude, apesar de atrizes como Cris Vianna ou Adriana Alves serem escolhas muito prováveis (e viáveis) em termos de “compatibilidade artística”.
Via de regra, não representamos. Somos frequentemente retratados a partir de retratos 3×4 estrategicamente pensados. É o caso de Suburbia que em quase nada superou Escrava Isaura. Em ambos os casos havia uma heroína ingênua, infantilizada e subserviente em sua sexualidade e modos. O único aspecto positivo da minissérie, além do apuro técnico, foi a escalação de Erika Januza, Rosa Maria Colin, Haroldo Costa, Fabrício Oliveira e Dani Ornellas. No mais, tristeza e ranger de dentes.
Do mesmo mal padece o Esquenta de Regina Casé que representa a insistência da emissora em estereótipos da negritude como temos em episódios Bahia e Funk Carioca do extinto Programa Legal dos anos 90. A antiga parceria da atriz com Guel Arraes não se envergonhava em exibir grotescas blackfaces e estereótipos. A diferença é que hoje a construção de alegorias preconceituosas acontece por meio da seleção repetitiva de personagens e espaços.
Essa é a arte que estão nos servindo. Coisa requentada. Complicada de engolir.
DIVERSIDADE DE VERDADE
Antes que me perguntem, não vejo problemas em mostrar a laje, o blondor e o funk. O problema é negligenciar aspectos a oferta desigual dos serviços públicos, desconsiderar a possibilidade de representações afirmativas da mulher negra. É a favela de Salve Jorge. Os descréditos pela vanguarda cultural como na alusão ao hit Ah, Lelek Lek Lek Lek Lek mostrado recentemente em Malhação. Se continuar como está, logo esquecerão que é som de preto, é som de favelado.
Ou pior. Que é só isso.
Agora vocês, bons de matemática, calculem por favor a probabilidade de Verônica ser negra e transexual. E médica, anotem. Na minha época de escola, zero multiplicado por quase nada sempre foi uma impossibilidade, mas não custa nada perguntar. Também é preciso aparecer em boas cenas. Dessas que são divertidas, emocionantes e tem final feliz para mostrar para a garotada que a gente também pode. Acho que não é pedir muito.
Acesse em pdf: Quantos negros para cada dez personagens? (Portal Geledés – 20/06/2013)