(Correio Braziliense) Essa pergunta não é minha, mas da mãe de uma estudante do curso de agronomia da Universidade de Brasília. Como outras vítimas da violência homofóbica, a estudante se mantém anônima. Conhecemos parte de seu sofrimento descrito pelo boletim de ocorrência policial: o braço foi imobilizado e as pernas estão escoriadas. A mulher anônima foi agredida por um homem que a resumia à “lésbica nojenta” enquanto a chutava caída no chão. A surra foi o instrumento disciplinador encontrado para extravasar sua repugnância por quem desafia a norma heterossexual. Não bastava surrá-la, era preciso nomeá-la como um ser abjeto — “lésbica nojenta”.
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Não me importa conhecer as razões desse sujeito homofóbico. A verdade é que só há desrazões em jogo quando a repulsa homófoba se crê legítima para torturar os corpos fora da norma heterossexual. A estudante anônima, protegida pela voz de sua mãe, experimentou a rejeição pelo corpo que a apresenta ao mundo. A surra disciplinadora buscava impedir um dos direitos mais fundamentais dessa jovem mulher: o de mover-se livremente, o de ir e vir sem medo que seu corpo novamente a exponha à fúria de quem a rejeita como igual. E isso em um dos espaços mais livres de discriminação como deveria ser o câmpus de uma universidade pública.
Mas a verdade é que não há espaço livre da homofobia. A homofobia nos acompanha — seja na injúria agressiva dos banheiros ou nos cartazes que inquietam quem passeia pelos corredores da UnB por inquirir a nós, mulheres, se gostamos de apanhar. Pintar os banheiros com flores ou arrancar os cartazes são medidas de higiene pública, mas não enfrentam a origem da homofobia. Apenas temporariamente silenciam a voz soberana do poder. Sim, esse é um jogo em que as jovens mulheres lésbicas já iniciam a vida adulta perdendo: vivemos em uma ordem sexual que as ignoram, as reprimem e, quando possível, disciplinam seus corpos sob a força da tortura. Se não for em casa, será na rua onde aprenderão que sua sexualidade é abjeta.
Imagino que “lésbica nojenta” ecoe na alma dessa solitária vítima da homofobia. Queria poder compartilhar com ela sua dor, mas não posso. O corpo que sente raiva ou vergonha é o dela, não o meu. Minha indignação tampouco é suficiente para devolver-lhe a dignidade ferida pela surra. A partir de agora ela se descreverá como uma mulher sobrevivente da violência homofóbica. Outras mulheres lésbicas poderão se aproximar da sobrevivente e oferecer-lhe a tranquilidade do grupo, mas nem elas serão capazes de acalmar a dor de sentir-se “nojenta” aos olhos de um desconhecido. Juntas, precisamos repetir: você não é nojenta. Mas isso não será suficiente para acalmá-la ou silenciar a homofobia que a amedronta.
Há 20 anos, quando era estudante da UnB, não via minhas colegas lésbicas de mãos dadas. Elas se escondiam no segredo do próprio corpo. Imagino a solidão em que viviam: um segredo que as impediam de se anunciar a partir de algo tão essencial à existência como é a sexualidade. Mas algo mudou: hoje, minhas alunas se anunciam, se mostram como desejam ser para quem as admira ou rejeita. Mas a mudança não foi ainda suficiente. Minhas estudantes temem essa liberdade conquistada — assim como a estudante anônima, elas experimentam injúrias, constrangimentos e pequenas violências cotidianas sobre quem se anunciam ser no campo sexual.
Minha indignação ao caso não se resume à minha existência feminina ou às minhas convicções feministas sobre a igualdade sexual. É mais do que isso. Como professora da UnB, acredito na potência do pensamento, na força do exemplo e, o mais importante, na capacidade humana de mudar seus conceitos e limites morais. Espero que esse homem homófobo, desconhecido e protegido pela covardia da violência, seja um de nossos estudantes. Convido-o a apresentar-se, anunciar-se em suas desrazões, submeter-se ao escrutínio público. Diferente de seus modos, o submeteremos às regras da legalidade, mas fundamentalmente às regras pedagógicas de uma universidade: convido-o a ser meu estudante. Apresente-se. Quero mirá-lo como enfrenta um ser desconhecido a ser disciplinado pela igualdade.
Débora Diniz – Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis)
Acesse em pdf: A que ponto chega a homofobia?, por Débora Diniz (Correio Braziliense – 25/02/2013)