25/07/2013 – Luta contra o racismo, por Flávia Piovesan

25 de julho, 2013

(O Globo) Sob o argumento de que teria atirado em legítima defesa, um ex-vigia branco foi absolvido do assassinato do jovem negro Trayvon Martin. Desarmado, o jovem apenas portava uma embalagem de balas e um refrigerante. Manifestações em repúdio à absolvição foram organizadas em mais de 100 cidades dos EUA. “Poderia ter sido meu filho ou eu há 35 anos”, declarou o presidente Obama, reconhecendo que “a comunidade afro-americana está olhando esta questão pela ótica de suas experiências e de uma história (de racismo) que não acabou”.

É neste contexto que há de ser compreendida a Convenção Interamericana contra o Racismo e a discriminação Racial, adotada pela OEA, em 5 de junho. Por iniciativa do Brasil, a proposta era elaborar um instrumento capaz de enfrentar as formas contemporâneas de racismo e de refletir as peculiaridades da região.

Dentre as tantas inovações da Convenção, a primeira atém-se à ampliação da definição de discriminação racial, que passa a compreender qualquer distinção, exclusão ou restrição baseada em raça que tenha o propósito ou o efeito de restringir o exercício de direitos, nas esferas pública e privada. Consequentemente, os Estados têm o dever de prevenir, proibir e punir a discriminação racial nos domínios público e privado.

Uma segunda inovação consiste no reconhecimento da discriminação indireta, como aquela medida que – embora não pareça discriminatória – tem um efeito discriminatório quando implementada. A discriminação indireta se verifica quando são tratadas de forma igual pessoas em situação diversa e de forma diversa pessoas em igual situação.

Uma terceira inovação é o especial destaque às formas múltiplas e agravadas de discriminação, a combinar os critérios de raça, gênero e outros. Por exemplo, a discriminação racial afeta homens e mulheres diversamente.

Outra inovação refere-se ao enfrentamento das formas contemporâneas de discriminação racial, enunciando o dever dos Estados de prevenir, eliminar e punir o racismo na internet, a discriminação baseada em informações genéticas, dentre outras manifestações de racismo no século XXI.

O dever dos Estados de adotar ações afirmativas traduz a quinta inovação da Convenção, ao enfatizar a necessidade de medidas especiais e temporárias voltadas a acelerar o processo de construção da igualdade. Aqui a Convenção incorpora a jurisprudência internacional que sustenta serem as ações afirmativas não apenas legítimas, mas necessárias à realização do direito à igualdade. Tais ações permitiriam reduzir e eliminar fatores que perpetuam a discriminação, devendo ser adotadas de forma razoável e proporcional, visando à igualdade substantiva. Devem ser concebidas não apenas sob o prisma retrospectivo – como uma compensação em face de um passado discriminatório -, mas também sob o prisma prospectivo, como um instrumento voltado à transformação social.

Uma sexta inovação concerne ao dever dos Estados de que seus sistemas jurídicos e políticos possam refletir a diversidade social. Constituições latino-americanas explicitamente protegem o valor da diversidade étnico-racial como um valor fundamental de nações pluriétnicas e multirraciais, como é o caso das Constituições de Bolívia, Colômbia, Peru, Venezuela e Equador.

Há aproximadamente 190 milhões de afro-descedentes nas Américas, o que corresponde a 22% da população. Estima-se que há entre 30 e 40 milhões de indígenas na região, o que aponta a 8% da população. Em todos os países, afro-descendentes e povos indígenas estão desproporcionalmente representados e vivem na pobreza e na pobreza extrema. Conclui-se que cerca de 30% da população nas Américas sofre de exclusão social e de um grave padrão discriminatório. A título ilustrativo, no Brasil, os afro-descendentes representam 51% da população, sendo 64% dos pobres e 71% dos que vivem na pobreza extrema; na Bolívia os povos indígenas são 62% da população, sendo que 74% deles vivem na pobreza; na Colômbia, os afro-descendentes são 26% da população, sendo que 76% deles vivem na pobreza extrema; no Peru, os povos indígenas são 45% da população, vivendo nas áreas mais pobres, sem acesso a serviços públicos básicos.

Se a América Latina é caracterizada por sociedades multiétnicas e multirraciais, faz-se imperativo combater a discriminação racial e promover a igualdade, conferindo especial proteção aos povos afro-descendentes e indígenas, como condição essencial à justiça social, ao desenvolvimento sustentável e à própria democracia na região.

Acesse o PDF: Luta contra o racismo (O Globo, 25/07/2013)

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