29/11/2013 – Adequação da linguagem pela igualdade de gênero, por Antonio Oneildo Ferreira

29 de novembro, 2013

(OAB/SP) A gramática, segundo os dicionaristas, é o “estudo ou tratado dos fatos da linguagem, falada e escrita, e das leis naturais que a regulam” (Aurélio. p.862). E o dicionário, também segundo o mesmo, é o “conjunto de vocábulos de uma língua ou termos próprios de uma ciência ou arte, dispostos, em geral, alfabeticamente, e com o respectivo significado, ou a sua versão em outra língua” (Aurélio, p.587).

Neste sentido é que diariamente ouvimos as expressões: “procura no dicionário/gramática”; “ver como é no dicionário/gramática”. E nós, de forma constante, somos obrigados a procurar o dicionário/gramática para vermos “como é o certo”. É, portanto, o dicionário/gramática algo que define como é, como deve ser ou não ser, em termos de vocabulário.

Constitui-se, tal instrumento — o dicionário/gramática — como o definidor do significado das palavras, de forma pretensamente neutra. Como se o dicionário/gramática se encontrasse acima das contradições que regem essa nossa “moderna” sociedade. Sendo que, por ser apresentado desta forma e por ocupar tal lugar, o dicionário/gramática funciona como um estabilizador da linguagem, como algo que estabiliza o instável. Contribuindo, desta forma, para manter o “estabelecido”, e assim, de acordo com Paulo Freire, obscurecendo novas concepções ou possibilidades e realidades.

Tem certas regras contidas no dicionário/gramática que são determinantes para a construção/preparação de uma sociedade machista. Vejamos. Desde cedo somos instruídos, e instruímos, nas escolas algumas regras determinantes desse quadro.

Ensina-se, prega-se, cumpre-se a regra da superioridade do masculino perante o feminino sem nenhum questionamento ou ponderação de qual é o impacto desse ensinamento, nas salas de aulas do pré-escolar até o ensino médio, sobre o caráter/personalidade dos adultos em construção. Qual é a percepção de um adolescente, sentado ao lado das colegas, que passou dez anos ouvindo e ‘aprendendo’ que o masculino prevalece sobre o feminino; que o masculino absorve o feminino; que o masculino precede ao feminino?

O ensino dessas ‘regras’, transmitidas de forma neutra, isenta, supostamente desprovidas de qualquer valoração, influencia em que e sustenta o que nas relações de gênero dentro de nossa sociedade? Essa construção pedagógica é determinante na formação de imaginários masculinos autoritários e femininos submissos.

Resgato aqui um fato histórico emblemático, ocorrido em 1930: em entrevista a jornalista e escritora Regina Echeverria, o político José Sarney explica o motivo do bordão brasileiras e brasileiros. Diz o ex-presidente da república que cunhou a frase “inspirado no veto à primeira mulher que tentou entrar para a Academia Brasileira de Letras” (ECHEVERRIA, Regina. SARNEY. A Biografia. Leya. 2011. P. 403).

Tratava-se da escritora Amélia Carolina de Freitas Beviláqua, esposa de Clóvis Beviláqua, que teve sua candidatura a imortal vetada pela ABL sob o argumento de que o “brasileiros” contido no estatuto e no Código Civil de 1916 era um “substantivo masculino”.

Não basta a Constituição da República abrir seu Título II “dos direitos e garantias fundamentais” com a afirmação da igualdade entre homens e mulheres. É necessária a sua concretização. A começar pela linguagem — censor e condutor de todo porvir. Lembre-se o ensinamento bíblico de que “a perdição do homem não está no que entra, mas no que sai de sua boca”.

A edição da Lei de 12.605/12 significa um avanço extraordinário na concretização da igualdade de gênero no Brasil. Festejada Lei “Determina o emprego obrigatório da flexão de gênero para nomear profissão ou grau em diplomas”. Determinando em seu artigo 1° que “as instituições de ensino públicas e privadas expedirão diplomas e certificados com a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada, ao designar a profissão e o grau obtido”.

Assim, a graduação em direito deve ser nomeada bacharel ou bacharela, com o desdobramento lógico jurídico imperativo na designação da profissão: advogado e advogada — com a obrigatória flexão de gênero refletida na nominação da Entidade de Classe, que tem por finalidade representar a advocacia brasileira, a OAB (artigo 44, da lei de 8.906/94). Neste sentido a OAB deve designar, segundo as regras da boa educação, Ordem das Advogadas e Advogados do Brasil. A sigla permanece a mesma.

Cabe registrar que hoje temos um número de advogadas quase igual ao de advogados, com uma previsão de superação pelas advogadas no ano de 2020, mantida a atual taxa de crescimento, fato que já aconteceu em relação ao quadro de estagiárias e estagiários, conforme quadros demonstrativos:

quadrooabsp-29112013

Temos, sem os(as) aprovados(as) no último exame de ordem, 364.140 (45,83%) de advogadas, e 430.570 (54,17%) de advogados. E dentre os(as) estagiários(as) temos 23.433 (52,31%) de estagiárias, e 21.361(47,69%) de estagiários, numa clara projeção do cenário futuro da advocacia brasileira.

Esse aumento do contingente feminino nos quadros da advocacia é bem visível nos números do Exame de Ordem no X Exame foi divulgado o seguinte quadro.

tabelaoabsp29112013

É um cenário consolidado, com uma diferença percentual sedimentada, conforme se espelha no gráfico contendo a taxa anual de crescimento da advocacia.

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Com base nesses dados, podemos fazer uma projeção de dados e data em que o contingente feminino na advocacia será majoritário.

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Observa-se que quase a metade das pessoas que compõem o sistema OAB, a parte que paga quase a metade das contas do sistema não está nominada/identificada na entrada da entidade, pois que abrangida e absorvida pela regra gramatical. Regras construídas e originadas em atávicas relações de poder.

Não é só na entrada da OAB que as mulheres estão ausentes. Também essa metade que paga a conta não senta nas mesas de direção e comando do sistema OAB.

Vejamos. Na atual Diretoria do Conselho Federal da OAB: cinco homens. Membros Honorários Vitalícios – ex-presidentes do CFOAB – MHV: todos homens. Conselho Federal: 77 Conselheiros e quatro Conselheiras. E assim nas Seccionais e demais instâncias deliberativas do sistema. Algo precisa mudar. Esse quadro não pode continuar.

Imaginemos o que as nossas colegas, companheiras, esposas, mães, avós, tias, irmãs, enteadas, sobrinhas, filhas e netas contribuiriam com o sistema OAB, o que diluiriam de nossos (pré)conceitos. O que mudariam. O que subsistiria.

No contexto deste cenário, haverá a insurgência de vários colegas, na defesa de ser mantido tudo como está, sob o argumento de que o exposto não passa de excesso de zelo ou sensibilidade; que as advogadas não ocupam espaço por falta de interesse; e, que a atual estrutura da OAB é um patrimônio histórico da advocacia brasileira.

Em diálogo e debate com advogadas, percebemos o mesmo interesse e disposição em participar e contribuir tanto quanto os Advogados. O patrimônio histórico da Ordem dos Advogados do Brasil é sua incansável luta pela democracia, liberdade, direitos humanos, dignidade humana e igualdade. Não há nenhum compromisso com estruturas arcaicas, excludentes e desiguais.

Esse contraponto refratário é uma atitude que tem como pano de fundo a negação ou dissimulação de dados e fatos visíveis e inegáveis no bojo da advocacia brasileira. Realidade que não oferece legitimidade a uma assembléia ou coletivo só de homens para enfrentá-la e superá-la de forma republicana.

Se o assunto é de interesse e relativo a todas e a todos, somente um debate com as partes e o todo é possível se formatar um quadro inclusivo, com a necessária e intransponível igualdade de gênero, já de muito contemplada no texto constitucional.

Igualdade que, além de assegurada na Carta Constitucional da república, deve ser materializada, concretizada e vivenciada no cotidiano profissional das advogadas e advogados, que compõem a casa da cidadania.

De se lembrar que o sistema OAB defende e apóia uma extensa pauta afirmativa construída e defendida pela sociedade civil organizada, dentre elas a prática da igualdade de gênero. É um inaceitável paradoxo para a advocacia brasileira a defesa de uma bandeira para a sociedade e a não internalização e prática desses valores no âmbito da classe e de sua entidade.

Destaco, por pertinente, dois pensamentos de nosso patrono Rui Barbosa.

“A mulher envolve e domina a esfera humana, como a safira diáfana do firmamento envolve e domina a esfera terrestre.” (Migalhas de Rui Barbosa. ed. Migalhas.v. I, 76).

“Se a ditadura é um mal, a ditadura de uma assembléia é um mal ainda mais grave” (ibidem, 284).

Conclamo meus colegas à reflexão. Conclamo-os à mudança. A Ordem dos Advogados do Brasil sempre foi vanguarda histórica na República e para a República. Sejamos, pois, vanguarda em nossa essência. Com a necessária adequação nominal de seu todo.

Finalizo com o poeta e advogado Gregório de Matos Guerra, conhecido como o “Boca do Inferno”, em razão de seu espírito crítico e de vanguarda.

“O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo.”

Sejamos todas e todos.

Por Antonio Oneildo Ferreira, diretor tesoureiro do Conselho Federal da OAB

Acesse o PDF: Adequação da linguagem pela igualdade de gênero (OAB/SP, 29/11/2013)

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