(Nexo, 07/06/2016) Mães e pais estão dando bonecas para seus filhos e carrinhos para suas filhas. É uma tentativa de romper as pré-definições que vêm atreladas aos produtos destinados a crianças. A discussão em torno de brinquedos e gênero é tão importante que até o governo americano tem se posicionado sobre o tema. Para especialistas, a rotulação reforça preconceitos e limita as escolhas profissionais do futuro.
As discussões relacionadas a gênero estão em evidência em vários segmentos da sociedade hoje: no mundo da moda, no mercado de trabalho, na política. E ganham relevância também quando o assunto são as crianças e suas brincadeiras. Como se trata de seres humanos em formação, das raízes de comportamentos futuros, os temas adquirem aqui uma dimensão complexa e sensível. Para quem se debruça sobre o assunto, rotular brinquedos ou brincadeiras para “meninos” ou “meninas” tem reflexos em diversos aspectos que vão da perpetuação de preconceitos à limitação de opções de carreira profissional.
Preocupações como essas fazem parte da pauta de uma conferência promovida pelo governo americano em abril sobre a quebra de estereótipos na mídia e em brinquedos para que “nossas crianças possam explorar, aprender e sonhar sem limitações”. O comunicado da Casa Branca ressalta o impacto na economia da estereotipagem ao lembrar que mulheres ocupam apenas 29% dos trabalhos em profissões ligadas a ciências, tecnologia, engenharia e matemática. A iniciativa conta com apoio de empresas como Netflix, Discovery e a associação dos fabricantes de brinquedos dos EUA.
A campanha britânica Let Toys Be Toys (“deixe os brinquedos serem brinquedos”) explica em seu site que os brinquedos de tipos diferentes ajudam no desenvolvimento de capacidades específicas. “Brinquedos de ação e construção treinam habilidades espaciais, resolução de problemas e encorajam crianças a serem ativas. Brinquedos que focam no desempenho de papéis e em teatro de pequena escala permitem a prática de habilidades sociais”. Para a campanha, excluir crianças de certos tipos de brinquedo ou brincadeira faz com que elas percam experiências de formação importantes. “Queremos ver as crianças livres dos sinais e rótulos que determinam no que elas deveriam ter interesse”, afirmou ao Nexo Tessa Trabue, uma das fundadoras da campanha.
O avô da boneca
“Tem uma história da escola da minha filha. A professora tinha uma boneca de pano que emprestava pras crianças levar pra casa e passar um dia com ela. Ela tinha nome, musiquinha… primeiro levaram as meninas e na reunião de pais algumas mães e pais acharam bem estranho os meninos terem levado a boneca. A professora explicou que os pais também cuidam dos bebês e no final da conversa todos parece que se convenceram. Achei bem legal a atitude da professora e do efeito nos pais. Uma mãe contou que o filho cuidou da boneca como uma filha e que o pai, a princípio totalmente contra, depois entrou na brincadeira dizendo que era avô da boneca.”
Estrela Tavares, psicóloga
Em geral, os estudos de gênero, que constituem um ramo da antropologia, defendem que as características associadas aos gêneros são construções culturais e sociais. Em outras palavras, sexo é biológico, mas gênero é cultural. A obra “Sexo e Temperamento”, escrita em 1935 pela antropóloga americana Margaret Mead é um dos livros clássicos da área. Ao observar a criação infantil em três sociedades diferentes na Nova Guiné, Mead testemunhou homens e mulheres em papéis variados: em uma das sociedades, homens eram mais afetivos em relação aos filhos; em outra, não se envolviam, delegando a criação às mulheres. Em cada sociedade, uma construção social distinta, com atribuições de gênero distintas.
Na visão de muitos especialistas, tudo que contribui para estreitar a lista de “pode” e “não pode” afeta as potencialidades do indivíduo e tem impacto na sociedade como um todo. Em “Diferentes, Não Desiguais”, os antropólogos Beatriz Accioly Lins, Bernardo Fonseca Machado e Michele Escoura oferecem um exemplo de quão danoso pode ser o estereótipo de gênero. Citando pesquisa de Marília Pinto de Carvalho, professora da Faculdade de Educação da USP, o livro relata que há grupos, especialmente entre a população mais pobre, onde ir mal na escola é visto como sinal de “virilidade”. Segundo essa visão, homem que é homem não gosta de estudar. “Hoje, os meninos, principalmente negros e moradores das periferias das grandes cidades, formam o maior contingente de estudantes que desistem dos estudos… de modo geral a escola é pensada como um espaço privilegiado para o que se entende por feminilidade”, diz o livro.
Galinha, não reconhecerás
“Eu vejo na escola dos meus filhos tem certas coisas que não podem abrir que os pais reclamam. Uma vez iam fazer uma apresentação dos Saltimbancos e cada série ia fazer um animal e o filho não podia fazer o papel da galinha ou da gata. São animais! Só o fato de ser a galinha e não o galo criou uma polêmica enorme!.”
Débora Diniz, professora e doula
Nichos de mercado
“Existe brinquedo de menina ou menino? Eu te diria que não”, diz Lais Fontenelle, mestre em psicologia clínica e ativista pelos direitos da infância que até recentemente trabalhava para o Instituto Alana. “Você vai dizer que meninas tendem a gostar mais disso, mas isso é muito mais cultural do que vocacional. E essa marca cultural foi sendo abocanhada cada vez mais pelo mercado para vender e dividir em nichos.”
Qualquer site de loja de brinquedos, e muitas lojas, apresentam seus produtos em divisões de menina e menino. Na prática, as placas indicativas nem seriam necessárias. O lugar onde estão as embalagens e brinquedos em tonalidades de rosa é certamente a seção das meninas. Em boa parte das caixas, as crianças retratadas seguem padrões tradicionais: uma caixa de “pequeno químico” traz um menino segurando um tubo de ensaio; brinquedos relacionados à cozinha ou a tarefas domésticas (como um aspirador de pó ou um fogão) vêm acompanhados quase sempre de fotos de meninas.
“Antes, a divisão começava a ser imposta a partir dos três ou quatro anos de idade. Agora começa na barriga”, acredita Débora Diniz, doula, professora e integrante do Movimento Infância Livre de Consumo. “Você começa a limitar, começa a dizer para os meninos ‘você só pode experimentar essas possibilidades’ e para as meninas idem”.
Para Diniz, os pais que querem fugir à estereotipagem nos brinquedos têm dificuldades diante das opções existentes nas lojas. Ela cita como exemplo os brinquedos de cozinha, onde predomina o cor de rosa, uma cor que muitos meninos rejeitam por já associar com as meninas. “Por que quase não há geladeiras de brinquedo brancas?”, questiona a professora. A saída mais simples para o pai ou mãe acaba sendo comprar outro tipo de brinquedo.
Sentido contrário
Sempre me incomodou bastante o fato do Jun, meu filho, menino, sempre ganhar carrinhos, carrões, caminhões, motos e coisas do tipo como presente. Cansada desse massacre com rodas, resolvi comprar uma boneca pra ele. Uma dessas que se parecem com bebezões. A caixa, obviamente, rosa e com uma menina. Mandei uma mensagem no grupo de WhatsApp da família com uma foto do Jun dando comidinha para a tal bebezona, todo feliz. Foi então que o meu pai me manda uma mensagem de volta dizendo: ‘Que merda é essa, Camila? Você tá querendo que meu neto seja gay?’. Minha vontade era a de partir para a ignorância, mas limitei-me a dizer: ‘Quero apenas que meu filho seja um bom pai no futuro’.
Camila Conti, designer gráfica e ativista
A era da segmentação
Embora vista como “tradicional”, muito da segmentação por gênero em brinquedos é um fenômeno recente. Muitos especialistas e sites de educação infantil apontam que a sofisticação do mercado infantil se acentuou de fato nas últimas décadas, sendo pioneiros os Estados Unidos nos anos 80, mercado onde a disseminação da TV a cabo, com canais exclusivamente infantis, e a desregulamentação da publicidade para crianças, contribuiu para a proliferação de produtos segmentados.
Um exemplo frequentemente citado do avanço da segmentação envolve a fabricante dinamarquesa Lego. Em 2012, a empresa se viu envolvida em controvérsia por causa de uma linha chamada Lego Friends, que incluía bonecas femininas em papéis considerados fúteis e estereotipados: num salão de beleza, no veterinário, na piscina e num carro conversível. Cresceram as críticas ao direcionamento dos produtos da empresa, inclusive pelo público-alvo. Viralizou no Facebook a carta de uma menina americana de sete anos reclamando que as meninas de Lego “não faziam mais que sentar em casa, ir à praia, fazer compras, e elas não tinham empregos mas os meninos saíam em aventuras, trabalhavam, salvavam pessoas, tinham empregos e nadavam com tubarões’. Em meio à discussão,reapareceu um anúncio da Lego de 1981, em que uma menina de macacão brinca com blocos de encaixar de cores diversas, descrito no texto como “conjunto de montar universal”. A única demarcação de gênero na peça é o fato do personagem do anúncio ser uma menina.
A Lego deu ouvidos à polêmica. Em 2014, lançou uma linha de bonecas femininas cientistas, com uma paleontóloga, uma astrônoma e uma química.
No exterior e no Brasil, cresce o número de fabricantes que estão prestando atenção às discussões e às demandas de muitos pais. “Tem um grito de basta contra as caixinhas. Vejo muito mais famílias indo contra isso, dando carrinhos pra meninas”, ressalta Fontenelle.
Aventuras no guarda-roupa
“O meu filho, que faz 8 anos agora em junho, sempre gostou de colocar minhas bijuterias, meus saltos, sutiã… Assim como coloca os tênis do pai, camisetas, jaquetas etc. Quando pedia para passar batom por exemplo, eu fazia palhacinho nele ou passava um gloss incolor. Ele brinca de fazer minhas unhas… de um tempo pra cá está mais resistente ao rosa, por conta da influência dos amigos da escola, ele tem uma malha listrada e uma das listras é roxa e ele pediu para dobrar para não aparecer. Mas sempre que aparece com algum acessório ou roupa minha, brincamos, fazemos graça, sempre muito natural.”
Eve Kurose, consultora
Sem gênero
Nos EUA, em agosto do ano passado, a rede varejista Target anunciou o fim da separação por gênero nas seções de brinquedos de suas lojas. No site da rede, porém, segue a possibilidade de filtrar a busca por brinquedos de meninos, meninas ou “neutro”. Outros varejistas, como Amazon e Disney Store, anunciaram pequenos passos em seus sites na direção de eliminar a rotulagem. A primeira deixou de oferecer o filtro para “meninos e “meninas” na busca e a segunda eliminou as etiquetas de sexo em suas roupas para o Halloween de 2015.
No Reino Unido, a campanha Let Toys Be Toys influenciou redes varejistas a redefinirem a organização das prateleiras de suas seções infantis. Saíram as divisões para “meninos” e “meninas” e entraram as com categorias de brinquedos como “bonecas”, “aventura” e “ciência”. “Em nosso primeiro ano, conseguimos que 14 varejistas importantes, incluindo a Toys R Us, mudassem sua sinalização”, disse ao Nexo Tessa Trabue. “Também conseguimos que 10 editoras britânicas parassem de rotular livros para ‘meninas’ ou para ‘meninos’”.
A tendência ganha corpo no Brasil também e se fez notar na última Abrin, a maior feira do setor de brinquedos no país, realizada em São Paulo em abril. Segundo a entidade organizadora, “muitas empresas têm dado maior atenção para essa ‘neutralidade’ do brinquedo”. A assessoria do evento informou que neste ano pode-se perceber “desde kits de cozinha na cor azul até figuras de ação de personagens femininas”.
Nada de fogão
“Quando o aniversário de 2 anos do meu filho estava se aproximando, meus pais me perguntaram o que eles poderiam comprar de presente para o neto. Fiquei entusiasmado com a possibilidade de presenteá-lo com um fogãozinho de brinquedo. Sugeri que fosse esse o presente deles. Foi quando me responderam que não iriam dar fogão para um menino e que isto é coisa de menina. Fiquei com pena deles e acho que entendi porque até hoje meu pai não sabe cozinhar.”
Victor Farat, ilustrador
A empresa de brinquedos gaúcha Xalingo é um exemplo de fabricante que vem apostando em cores menos identificadas com um gênero específico. Através da assessoria, a empresa afirmou que “a cor pode inibir a compra de um produto em função somente do gênero da criança”. Seu brinquedo de blocos “Pequeno Engenheiro” traz um menino e uma menina usando capacete de obras na capa. Sua cozinha “para meninos e meninas” teve um retorno “muito positivo” por parte do consumidor, declarou o fabricante.
Marcas menores se especializam na criação de brinquedos “sem gênero”. “Existe um modelo comercial apelativo que vende para meninos e para meninas, eu decidi comunicar e vender para pessoas”, declara Camila Bianchi, arquiteta e fundadora da Maria Joaquina. “Tomo cuidado ao usar cores únicas. E com a infinidade de cores que existem no mundo não consigo me limitar ao branco, azul ou rosa”.
A psicóloga Elena Valdivia também sublinha o fato de sua marca de produtos infantis, Arara Tarará, terem o gênero neutro. “É necessário assumir uma posição crítica perante os brinquedos que nossos filhos consomem. A influência deles no seu desenvolvimento é crucial”. Para Valdivia, tem crescido “consideravelmente” o interesse de pais por produtos com a mesma proposta dos seus.
A Barbie da discórdia
“Meu primo sempre gostou de bonecas e pegava as bonecas da minha prima para brincar. Óbvio que sempre acabava em briga e ele chorando pelos cantos da casa. Minha mãe ficava com pena dele e um Natal resolveu dar uma Barbie para ele quando ele tinha cinco anos. Comprou a com o cabelo mais longo e com o vestido mais brilhante de todas. Ele amou quando abriu o presente, mas meus tios ficaram irados e cortaram relações com minha mãe por anos.”
Tamy Punder, produtora de eventos
Experiência que deu certo
Quando criaram o desenho animado “O Show da Luna”, os animadores Celia Catunda e Kiko Mistrorigo tinham como intenção apresentar uma protagonista feminina que fugisse de estereótipos comuns nos desenhos animados. Na animação, a menina Luna é curiosa e realiza experiências científicas para descobrir coisas. “Quisemos fugir do que se vê muito por aí, que são personagens femininas mais fúteis”, afirma Catunda. “Mesmo no Dexter, ele é um gênio e a irmã é uma cabeça-oca que fica atrapalhando, sem falar nas tradicionais Barbies e princesas”.
O desenho foi um sucesso instantâneo entre crianças brasileiras com o canal do YouTube do personagem atingindo recentemente a marca das 140 milhões de visualizações. O êxito é também internacional: “O Show da Luna” já foi vendido para 80 países. Segundo Catunda, muitos canais no exterior procuravam um personagem com esse perfil. No Canadá, a produção foi elogiada pelo governo do país, que tocava um programa para o incentivo de mulheres na ciência.
Os criadores recebem elogios de pais não apenas pelo personagem principal, mas também por seus pais, que aparecem desempenhando funções não “tradicionais”, como o pai fazendo o almoço e a mãe no computador. Ainda assim, na hora de licenciar o produto para fabricantes de brinquedos, algumas concessões tiveram que ser feitas. “Tivemos que ceder um pouco nas cores. Não queria isso pois muitos meninos gostam da Luna, mas ouvimos de todos que se não fizéssemos rosa, iríamos vender menos”, explica.
Colaboraram: Simon Ducroquet, Guilherme Prado e Ibrahim Cesar
Acesse no site de origem: Nem de menino, nem de menina Apenas brinquedos, por Camilo Rocha (Nexo, 07/06/2016)