(Nexo, 06/03/2016) Os grupos feministas têm muitas divergências, mas é possível falar em uma presença maior do feminismo na arena pública nacional nos últimos anos
Marcha das Vadias. Chega de fiu-fiu. Meu primeiro assédio. Fora Cunha. Estamos vendo no meio jovem uma “nova onda” do feminismo, dizem algumas vozes. Trabalhando na universidade com estudos de gênero, posso afirmar que há grupos e redes feministas cada vez mais visíveis na universidade, na mídia e nas ruas. Utilizando-se de meios tradicionais e de novas ferramentas de comunicação como a internet, as imagens e algumas pautas do movimento feminista tomam certo espaço até na mídia comercial.
Que feminismo? São diversas correntes não homogêneas que em linhas gerais defendem os direitos das mulheres, clamando por igualdade nas mais diversas esferas da vida. Os grupos feministas têm muitas divergências, alguns são mais de esquerda e anticapitalistas do que outros, alguns são mais inclusivos em termos da presença de mulheres lésbicas, negras e trans, e alguns são vistos como mais identitários, como grupos de mulheres negras. Mas há pautas genéricas comuns que os unificam e me permitem falar em uma presença maior do feminismo na arena pública nacional nos últimos anos.
Isso não é exatamente inédito no Brasil. Na segunda metade da década de 1970, e inclusive apoiado por campanhas internacionais – como “Ano Internacional da Mulher” em 1975, promovido pela ONU – o feminismo floresceu no país. A maior parte dos grupos feministas foi formada por pessoas de classe média escolarizada, e com ideias e práticas feministas trazidas pelas mulheres retornadas do exílio. No final dos anos 1970 e na década seguinte, o feminismo foi aliado da luta pelo fim do regime militar, articulado com a demanda pela anistia, restabelecimento dos direitos humanos e democráticos. Um dos aliados foi a ala à esquerda da Igreja Católica, que incorporava a pauta dos direitos humanos.
Esse movimento destacou o combate à violência diante dos assassinatos de mulheres cujos agressores eram defendidos sob a ideia de “legítima defesa da honra” (sic). O caso de Angela Diniz e Doca Street foi representativo, e o comportamento moral da vítima foi posto em cheque no judiciário para justificar seu assassinato. Para se ter ideia de como a temática adentrou a vida pública, para além de grupos restritos, a Rede Globo produziu algumas séries – como Malu Mulher – e minisséries – Quem Ama Não Mata – colocando em destaque o tema da violência. O slogan feminista “o pessoal é político” trazia a percepção de que a desigualdade estava dentro de casa, na família e poderia se expressar pela via da violência. Era preciso superar o ditado “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Os homicídios e a violência doméstica mais banal tornaram-se uma das pautas centrais, que nos anos 1980 levaram a políticas como a criação das pioneiras Delegacias de Defesa da Mulher, política iniciada no estado de São Paulo. A violência doméstica precisou ser encarada como um problema político e público, e para isso era preciso superar um senso comum que considerava as brigas como algo “normal” num casal.
Nos últimos 15 anos, cada vez mais atentas ao fato de que somos mulheres em condições diversas, ainda hoje é preciso problematizar e criar formas de combater a violência contra mulheres (no plural). Violência doméstica e assassinatos ganharam inclusive leis específicas (Maria da Penha e a do Feminicídio) mas é preciso, além de leis, mudar as mentalidades e comportamentos naturalizados. A nova onda do feminismo jovem retoma algumas dessas pautas, e traz novos slogans. O foco agora tem se voltado para o corpo e aponta para desigualdades consideradas corriqueiras, como a demanda por liberdade de andar nas ruas. Com campanhas muitas vezes iniciadas e impulsionadas na internet e novos meios de comunicação, os grupos jovens afirmam “chega de fiu-fiu”, e falam em assédio, ao invés de naturalizar o comportamento masculino como se fosse apenas uma cantada.
Cada vez mais se problematiza a violência sexual de modo específico, como se pode notar nas denúncias sobre estupros entre colegas nas universidades, ou os relatos de assédio e abusos de crianças e adolescentes na campanha “meu primeiro assédio”.
Os dados de violência sexual reiteram a centralidade do tema: a pesquisa do IPEA estima que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil e que, destes casos, apenas 10% chegam ao conhecimento da polícia. Em geral, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima. Destes casos atendidos no SUS, 88,5% das vítimas eram do sexo feminino.
Na Marcha das Vadias, o slogan e apelo ao uso de termo vadia, advindo da “slut walk” canadense, traz a demanda das mulheres de poderem andar nas ruas com liberdade, vestindo o que quiserem, sem correr o risco de serem atacadas ou abordadas, e com direito a uma vida sexual ativa e prazerosa, seja ela heterossexual, lésbica ou bissexual. Retoma-se assim, com outros motes, pautas como o direto ao prazer e a autonomia do corpo.
É em torno do corpo inclusive que se retoma uma pauta que ficou secundarizada nos anos 1970, a demanda pela legalização do aborto. No Brasil não se consegue argumentar a favor do aborto em torno da ideia do direito feminino ao próprio corpo. A tragédia de saúde pública que o aborto inseguro representa tem sido um argumento mais palatável para visibilidade na imprensa. Defender a legalização do aborto hoje significa preocupar-se em preservar a vida de mulheres de camadas populares, já que o aborto é seguro e acessível para aquelas de camadas média e alta. Ainda assim, entre blogs e mídias alternativas feministas tal defesa tem sido veiculada como direto à escolha, e a urgente reflexão de que a maternidade não deve ser obrigatória (na mídia comercial, a maternidade continua sendo promovida e idealizada).
Há outros itens da pauta feminista que permanecem no debate público: desigualdades salariais; falta de representação política formal das mulheres na política; divisão do trabalho doméstico e de cuidado; saúde reprodutiva e sexual, entre outras. Mas a questão da violência e do corpo é aquela retomada de modo mais forte nos movimentos jovens. Mais uma vez, é preciso desnaturalizar o que era naturalizado, como o desejo e o impulso sexual masculino. Agora elas afirmam que querem poder andar nas ruas, como quiserem: não é a minissaia, é o agressor que é responsável pelo estupro.
Muito falta pra termos igualdade. A rua ainda é perigosa para as mulheres. O feminismo é urgente e necessário, está trazendo linguagens e slogans novos para pautas que ainda permanecem, e retomando temas ainda pouco debatidos no país.
Heloisa Buarque de Almeida é professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP)
Acesse no site de origem: Novos feminismos e a luta pelos direitos das mulheres, por Heloisa Buarque de Almeida (Nexo, 06/03/2016)