O gênero pode ser o primeiro tema na lista de discussão quando alguém percebe que você está grávida, mas a igualdade de gênero ainda está longe de ser a preocupação da pessoa.
(HuffPost Brasil, 02/11/2016 – acesse no site de origem)
Devem ter me perguntado “vai ser menino ou menina?” pelo menos uma vez por dia desde que minha barriga começou a aparecer, algo que para mim é a pergunta mais ridícula e pouco interessante que se poderia fazer sobre uma gravidez ou sobre bebês.
Mas, por algum motivo, nossa sociedade ainda considera esse assunto tão importante que sempre tem que ser a primeira pergunta que é feita a qualquer pessoa grávida.
Fiquei chocada ao descobrir como a gravidez destacou para mim a preocupação profunda que as pessoas têm com o gênero. Mas a gravidez também deixou mais clara toda uma gama de desigualdades arraigadas, de gênero, raça ou deficiência, que são perpetuadas em nossa sociedade, passando de geração em geração.
Veja algumas das coisas que ando observando:
Os bebês são estereotipados antes mesmo de nascer.
Falo para as pessoas que não sei qual é o sexo de meu bebê, mas mesmo assim isso é visto como simples gatilho para comentar as diferenças entre meninos e meninas. Seguem alguns dos comentários que venho tendo que aturar, vindos de várias pessoas aparentemente inteligentes:
“Oh, você não vai querer um menino. Os meninos cansam a gente demais, obrigam a gente a ficar correndo de um lado para outro.”
“Se você tiver uma menina, ela será muito linda.”
“Garotinhos são tão engraçados.”
“Não é fácil encontrar bons nomes para meninos, porque vão ter que soar bem numa sala do conselho de direção.”
Mas os estereótipos não se limitam ao gênero. Quando falei a amigos e colegas que minha cunhada estava grávida de gêmeos, e meninos gêmeos, se você faz questão de saber, houve comentários do tipo “Eles vão dar muito trabalho”.
Se é esse o tipo de comentário que os bebês ouvem a seu respeito antes mesmo de nascerem, só posso imaginar o que eles não poderão ouvir e internalizar quando já estiverem presentes aqui, nem como isso pode impactar seu comportamento.
Não existem recém-nascidos negros ou de origem asiática, ao que parece.
Quando comecei a fazer aulas de pré-natal, percebi de repente que a enfermeira falava muito sobre o tônus da pele dos recém-nascidos. Percebi que tudo o que ela dizia era relacionado a bebês de pele clara e que as fotos que ela distribuía sempre eram de bebezinhos brancos.
Resolvi lhe dar o benefício da dúvida e supor que, pelo fato de todos os casais na aula serem brancos (mais um exemplo de desigualdade), talvez ela tivesse escolhido aquelas fotos de propósito. Mas depois me dei conta de que sempre que olho para meu aplicativo Baby Centre ou procuro alguma coisa no Google sobre parto ou recém-nascidos, 99% do tempo as imagens são de mães e nenês brancos.
É claro que as pessoas com outras cores de pele também se reproduzem. Então por que ainda achamos normal ver apenas fotos de nenês brancos?
As pessoas talvez ofereçam seu assento no ônibus a uma gestante, mas a um idoso ou deficiente físico? Nem pensar.
Hoje em dia, agora que minha barriga está com o tamanho de uma bola de boliche, geralmente me oferecem um assento no metrô ou no trem. Se bem que há uma coisa estranha: geralmente são mulheres ou homens jovens que fazem isso. Os homens de meia-idade e de terno geralmente estão ocupados demais escondendo-se atrás de um jornal para tomar nota de quem está em volta.
Mas houve várias ocasiões em que eu acabei oferecendo meu lugar a alguém que precisa dele, antes de alguém no metrô lotado ter notado a outra pessoa. Outro dia um cego subiu no trem; as pessoas olharam para ele, mas viraram a cara.
Tive que me levantar de meu lugar e atravessar metade do vagão para lhe oferecer meu assento. É claro que isso levou meia dúzia de homens a ficarem com sentimento de culpa e me oferecerem o lugar deles.
A mesma coisa aconteceu com uma idosa muçulmana que evidentemente estava tendo que se agarrar ao marido para se manter em pé. Ofereci meu lugar a ela, e, quando ela me disse que não ficaria à vontade em tirar o lugar de uma gestante, o sujeito sentado à minha frente ofereceu o lugar dele, meio a contragosto.
Mas a oferta não se dirigiu a ela, e sim a mim, já que eu insistia em abrir mão de meu lugar para entregá-lo a uma pessoa que ele evidentemente achava que não o merecia.
Meu parceiro estava comigo no metrô um dia quando um homem que andava com bengala percorreu metade do vagão sem que ninguém lhe oferecesse um assento. Meu parceiro se levantou e andou várias fileiras para oferecer seu lugar ao homem.
Parece que todos os bebês são filhos de casais heterossexuais – que provavelmente são casados de papel passado.
Gostei de ver que a maioria das fontes respeitadas de informações sobre bebês e como cuidar deles modernizou seu texto para falar de “parceiro”, em lugar de “marido”.
Mas me pergunto como se sentem as mães solteiras quando leem referências a parceiros em todos os textos e materiais sobre gravidez e como cuidar de bebês. E as famílias formadas por um casal homossexual, em que os filhos podem ter nascido de uma barriga de aluguel?
Acho também que, embora a mídia e os provedores de conteúdo estejam tomando mais cuidado no modo como descrevem pais, o grande público ainda não absorveu essa novidade.
Quando conheço pessoas novas em um evento ou no trabalho, sempre que meu parceiro não está comigo, muitas pessoas perguntam sobre meu “marido”. Para começar, já imaginam que eu seja casada.
Em segundo lugar, por que será que presumem que eu esteja tendo um filho de um relacionamento heterossexual?
O mundo ainda supõe que meu parceiro vai voltar ao trabalho 15 dias depois de o bebê nascer.
Apesar da introdução da licença conjunta para mães e pais, quase dois anos atrás, me surpreendo ao ver que as pessoas imediatamente imaginam que eu vou ficar afastada do trabalho por pelo menos seis a 12 meses e que é meu parceiro quem vai voltar ao trabalho logo para sustentar nossa família. Elas nem perguntam nada sobre nossa situação antes de fazer essa suposição.
Quando possível, meu parceiro e eu procuramos falar explicitamente às pessoas sobre nossa situação, porque se as pessoas não ouvirem exemplos de pais que dividem os cuidados dos filhos ou famílias em que o pai é quem cuida do filho a maior parte do tempo, enquanto a mãe trabalha, a sociedade nunca vai mudar.
E, quando falamos nisso, embora a maioria das pessoas tenda a manifestar apoio, houve algumas pessoas que fizeram julgamentos e aparentemente não conseguiram entender um conceito tão bizarro. Diante da ideia de que meu parceiro vai cuidar de nosso filho parte do tempo, alguém reagiu dizendo “mas ele não vai ficar entediado?”.
Chocante, mas não tão ruim quanto o comentário que uma mulher ouviu de alguém dizendo que seu parceiro se sentiria castrado.
A sociedade ainda acredita que as mães são mais carinhosas e atentas “por natureza”.
Parte da razão pela qual as pessoas presumem que serei eu quem vai ficar em casa cuidando de nosso bebê é que a sociedade ainda acha que as mulheres são “por natureza” mais carinhosas ou amorosas.
E não são apenas meus avós que pensam assim – são pessoas na casa dos 20 anos, como meu parceiro e eu, são outros pais e outras mães, e em muitos casos são profissionais médicos que também falam da habilidade inata da mãe em cuidar dos filhos e da aparente falta de habilidade do pai.
Ainda bem que meu parceiro e eu somos pessoas igualmente carinhosas e amorosas, igualmente capazes de alimentar nosso bebê e trocar suas fraldas. As pessoas criam seus filhos há milhões de anos, e só porque meu parceiro pode ter hormônios um pouco diferentes dos meus, isso não significa que ele será menos pai de nosso filho.
É triste e assustador pensar que meu filho vai nascer em um mundo em que ele ou ela vai enfrentar estereótipos e desigualdade absurdos todos os dias. Mas fico feliz porque ele ou ela vai ter pais que poderão lhe ensinar que, independentemente da idade, da raça ou do gênero de uma pessoa, ela merece respeito igual e oportunidades iguais de ser quem ela quiser.