O diretor executivo da Anistia Internacional Brasil, Atila Roque, afirma que já passou da hora de buscar um pacto contra a violência e alerta para o retrocesso na conquista dos direitos
(Época, 19/09/2016 – acesse no site de origem)
Ao falar sobre direitos humanos, uma das pedras fundamentais da Anistia Internacional, Atila Roque relembra o comentário do jurista Oscar Vilhena Vieira. “Nós estamos vivendo no Brasil recente uma revolução tocquevilleana, que é a revolução da igualdade”, diz. A expressão vem do autor francês Alexis de Tocqueville, cujo livro “A Democracia na América” apontava a “onda irresistível da igualdade” vivida pelos Estados Unidos no século XIX, que iria mudar radicalmente o cenário da sociedade americana. Roque, que é diretor executivo da Anistia no Brasil, enxerga os mesmos paralelos. “Uma vez que você cria o desejo de ter direitos, você pode até retirar esses direitos, mas não vai retirar o desejo. A ideia da igualdade está dada”.
Aos 56 anos (ele completa 57 em novembro), Atila Roque tem sido uma das principais vozes no combate à violência, no abuso contra os direitos humanos. O envolvimento em causas sociais vem de longa data, desde o primeiro emprego no Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), que abraçou a causa da reforma agrária, passando pelo ActionAid International USA em Washington e pelo Social Watch, até seu próximo desafio. A partir de 9 de janeiro de 2017, Atila Roque será o diretor da Fundação Ford no Brasil, que combate a desigualdade econômica, política e social.
À frente da Anistia Internacional Brasil, Atila chamou atenção na semana passada para a “oportunidade perdida” nos Jogos Olímpicos Rio 2016. Um documento da organização apontou o aumento no número de homicídios antes da Olimpíada, um cenário muito semelhante ao ocorrido antes da Copa do Mundo em 2014. “Grandes eventos como Olimpíada e Copa seriam grandes oportunidades para aproveitar toda a mobilização de energia, recursos, vontade e fazer as reformas importantes nas áreas críticas”, defende. Segundo ele, a chamada área de segurança do Rio é um local de “promoção de desigualdade e violação de direitos”. No documento apresentado a cidade como candidata a sede dos Jogos, havia a citação ao legado de uma segurança cidadã – voltada para a promoção da paz. “O que nós vimos foi quase uma declaração de guerra às favelas, vimos isso acontecer na Copa e voltamos a ver acontecer na Olimpíada, e resultou num verdadeiro banho de sangue em muitas regiões da cidade. Só que isso ficou mascarado pela força tremenda da propaganda, que só queria apresentar a cidade olímpica como um evento de beleza, enquanto que por detrás nós vimos um aumento significativo no número de pessoas mortas pela polícia”.
Essa divisão no país entre aqueles que têm algo e os que têm muito pouco também se traduz em direitos. Mas é possível que uma onda jovem possa mudar o país e seu abismo de desigualdades. Para Atila Roque, a chegada dos movimentos jovens é vista com otimismo para que o país não passe por um retrocesso. “O risco de se perder algumas das conquistas está sempre presente porque como tudo na sociedade, ele mexe com privilégios”, diz.
O Brasil está pronto para combater a violação aos direitos humanos? O que nos falta?
Eu acredito que as sociedades humanas estão sempre prontas para abraçar valores de defesa à vida e garantia à segurança dos direitos de todas as pessoas. É um princípio fundamental do próprio ideário dos direitos humanos: todos somos iguais. Agora, quando você aterrissa na vida real, tem que reconhecer que cada sociedade traz em sua formação fatores que favorecem ou dificultam a agenda dos direitos humanos. No Brasil, tivemos historicamente duas situações que marcaram profundamente o desenho institucional, econômico, político e social do país. Estou falando da escravidão e da concentração de terra na mão de poucos. Quando veio a liberação dos escravos, com a abolição em 1888, isso aconteceu sem a distribuição de terra e de riqueza. A nossa sociedade ficou profundamente marcada pela desigualdade.
Os escravos ganharam a liberdade, mas não as condições para que estivessem em um patamar semelhante aos outros.
Exato. A desigualdade é parte constituinte do DNA nacional. A fundação do Brasil como Estado-nação está ancorada na desigualdade, na violência (porque para instaurar essa desigualdade o Estado teve que fazer uso cotidiano da violência) e na discriminação, em particular do racismo contra os negros. E esses fatores não são periféricos, são estruturantes.
Mas isso não quer dizer que porque eles estão na raiz da formação histórica do país que nós não possamos mudar isso, correto?
Quando você olha para o Brasil, nós partimos de um patamar difícil, há um déficit histórico estrutural de direitos, uma vez que o nosso ponto inicial é a desigualdade, a violência e o racismo. É com esses princípios que a gente tem de lidar para não achar que vai resolver tudo como um passe de mágica. Para te responder eu diria a você: nós somos, sim, vocacionados, nós temos todas as chances como país, temos todos os talentos e o conhecimento para superar essa situação de déficit estrutural de direitos. Esse é meu lado otimista. Pensando nos últimos 40, 50 anos, nós demos passos importantes na direção da superação desses problemas. Passamos pela ditadura, tivemos o processo de transição da ditadura à democracia. E ainda que no campo da segurança pública e da violência não há muito a celebrar, em outras áreas a gente pode dizer que hoje o Brasil está muito melhor equipado para afirmar os direitos do que estava há quatro décadas. A própria Constituição brasileira de 1988 foi capaz e incorporar o marco dos direitos humanos na sua amplitude dos direitos econômicos, sociais, políticos, culturais, ambientais. Então, nessa transição difícil que vivemos como uma sociedade democrática, há algumas conquistas que vale celebrar. Dito isso, não significa que elas estão consolidadas para sempre. Sempre há o risco do retrocesso. O risco de se perder algumas das conquistas está sempre presente porque, como tudo na sociedade, ele mexe com privilégios.
De que maneira?
Para você fazer avançar a agenda dos direitos significa que alguns têm que ganhar direitos e outros têm que perder privilégios. Porque a desigualdade se sustenta na ideia de que uns merecem mais do que outros. É a cultura da desigualdade, que atribui direitos e deveres diferenciados.
E aí entramos na questão de que uns são mais ‘diferenciados’ do que outros…
Isso, entramos na questão da Revolução dos Bichos, do George Orwell, em que somos iguais, só que alguns são mais iguais do que outros. E é contra essa cultura que nós estamos nos insurgindo. Quando eu digo nós, eu falo de todos que têm o compromisso de defender os direitos humanos. E, nesse sentido, os últimos anos foram bem interessantes para o Brasil. Ainda que de maneira precária e muito preliminar, houve um avanço na agenda distributiva, ao levar adiante a ideia de que todos têm que ter acesso a uma renda mínima, um patamar mínimo de vida, ter acesso à universidade. Com isso você criou uma expectativa em parcelas enormes da sociedade que antes estavam excluídas de tudo, até do desejo de ter. Essas pessoas hoje têm a expectativa e a ideia de igualdade dentro delas. É dizer “Eu tenho direito a ter direito”. Isso é muito importante e é muito difícil retroceder a partir daí. Uma vez que você cria o desejo de ter direitos, você pode até retirar esses direitos, mas não vai retirar o desejo. O desejo está constituído, a ideia da igualdade está dada. Nós criamos o desejo e a expectativa da igualdade numa sociedade profundamente desigual, numa sociedade em que ainda vale o “Sabe com quem está falando?”, “Eu sou melhor do que você”, em que um entra pela porta de serviço, outro pela porta social. E aí quando você olha para as diferentes áreas das políticas públicas, isso aparece claramente. É o acesso à escola, a discussão sobre renda e tributação, em que as pessoas mais pobres acabam pagando mais imposto. É nessa sociedade que a agenda dos direitos humanos, a agenda por igualdade, está lutando para ampliar o seu espaço.
A Receita Federal liberou há alguns anos dados que apontavam essa discrepância de que o brasileiro que ganha menos, paga mais imposto.
Pensa o que é que é o sistema tributário brasileiro senão a reafirmação da desigualdade? Quanto mais pobre, mais proporcionalmente você paga de imposto. Quanto mais rico, quanto mais riqueza você tem, menos você paga. Inclusive em relação a transferência dessa riqueza. A taxação sobre herança é muito baixa. Esse é um tema central sobre reforma tributária que a gente não consegue sequer começar a discutir. Virou natural que os pobres paguem mais impostos. Boa parte do Estado é financiada pelos mais pobres, não é pelos mais ricos.
Só que nas discussões em vários grupos e nas redes sociais, o que se diz é o contrário. Já ouvi muita gente dizer “Estou pagando para as pessoas terem filhos”. É possível começar a mudar essa percepção?
Existe uma disponibilidade para mudar, ainda que se manifeste de forma desigual e distorcida. Apesar de o Brasil ser tão desigual, violento e discriminador, ao mesmo tempo você tem um país com muita condição de construção de laços de solidariedade, de compaixão e de empatia. O caminho está por um lado no campo da imaginação, da cultura e da educação, é você reforçar esses valores, reforçar a ideia de que todos somos iguais. Todos deveríamos ter acesso aos bens que garantam uma vida de qualidade. Isso é um lado. O outro é fortalecer a ideia do protagonismo, de que as pessoas sejam cada vez mais agentes ativos da construção de suas vidas. E aí me traz muita esperança olhar a vontade de participação das populações de periferia, da juventude das favelas, que têm chamado cada vez mais para si o direito de levar suas lutas e exigir seus direitos. A mesma coisa eu poderia dizer em relação à renovação do movimento de mulheres, com a incorporação de toda uma geração de meninas que ressignificaram a própria ideia do feminismo. Elas fizeram isso de uma maneira fantástica ao renovar sua mensagem, a capacidade de diálogo com setores mais amplos da sociedade, sem jogar fora o aprendizado e a experiência de suas mães e avós, as lutas históricas do feminismo. Essa movimentação incorpora as agendas recentes das mulheres negras, das mulheres trans, das prostitutas, com discussões que antes não apareciam com força no feminismo histórico. Acho que isso ajuda a trazer esperança de que, sim é possível avançar essa agenda da igualdade, o sentimento mais ou menos adormecido de solidariedade, a consciência de o meu direito nunca vai estar plenamente contemplado enquanto tiver uma pessoa ao meu lado, uma pessoa no mundo em que eu vivo, com seu direito violado. E no nosso país, ainda temos um déficit gigantesco quando se fala em direitos. Quando você olha para a agenda da violência, da segurança pública, dos homicídios, são áreas em que a distância a percorrer ainda é muito grande. São áreas muito duras, a resistência é muito maior e toca em preconceitos muito arraigados.
Olhando as pesquisas eleitorais, a questão da segurança sempre aparece no topo das aspirações dos eleitores. Tenho a impressão que existe um abismo enorme em relação ao que a população enxerga como segurança e o que os candidatos entendem e como pensam em cuidar dessa questão, se forem eleitos. O discurso do “bandido bom é bandido morto” tem se propagado nas campanhas e nas redes, sem o menor pudor.
É perfeitamente compreensível e legítimo que o tema da segurança apareça com tanta força nas pesquisas. A segurança é um anseio natural de todas as pessoas que estão no mundo. Todos querem ter a possibilidade de desenvolver o seu potencial, sem serem constrangidos por nenhum tipo de risco à vida, à sua integridade física e à sua possibilidade de viver em um determinado lugar de forma plena. Segurança é um direito fundamental – não importa onde você viva, a cor da sua pele ou a idade. O que acontece quando isso é apropriado pelo discurso político ou mesmo pelas políticas do Estado é que esse anseio legítimo é reduzido a uma questão de polícia. E ao ser reduzido a uma questão policial, ele acaba sendo submetido ao marco de como a polícia é tratada no Brasil. Ela é orientada para a repressão dos pobres, dos pretos, dos jovens da favela. É uma polícia altamente seletiva, militarizada e violenta, que acaba gerando mais insegurança. Esse encolhimento explica, em parte, a constante frustração que acomete as pessoas, que vivem entre querer mais segurança e não ter seu anseio reconhecido, e o discurso demagógico que oferece soluções simplistas e equivocadas que acabam agravando a insegurança. A resposta, para eles, é flexibilizar o Estatuto do Desarmamento, armar a população, armar ainda mais a polícia, há até uma discussão para armar a Guarda Civil Municipal (GCM). Na verdade, esses exemplos todos são formas de agravar e não diminuir a violência. Nós deveríamos estar discutindo menos armas na mão da população. E refletir sobre o lugar da polícia e o uso da força. Ao focar em uma perspectiva militarizada, você deixa de lado todo o potencial de integração das diferentes instâncias do Estado, de uso inteligente da repressão, que não seja aumentando a violência.
Quais seriam as alternativas para mudar esse perfil militarizado e, ao mesmo tempo, garantindo a segurança da população?
O policiamento ostensivo, em grande medida, poderia ser desarmado, desde que você fizesse um uso tecnológico e de unidades especializadas para aquelas situações raras em que o uso da força se faz necessário. Você precisa ter unidades de resposta rápida localizadas em algum dos pontos da cidade que, se convocadas, podem chegar em 5, 10 minutos ao local da ocorrência. Você não precisa ter todo mundo armado. Para quê? Para sacar e atirar no menino que rouba celular e sai correndo? Não adianta. O policial desarmado e treinado ao ver alguém roubando um celular, por exemplo, pode acionar pelo smartphone ou pelo rádio o outro policial desarmado que está na esquina seguinte, e que rapidamente poderá intervir. A arma na mão desse policial não vai ajudar em nada, só vai aumentar o risco para todos os envolvidos.
Há pouco você disse que a polícia é altamente seletiva. Nessa lógica militarizada, que se aplica nas UPPs e na periferia de São Paulo, podemos entender que na “guerra” contra a violência, a polícia tem um alvo?
A polícia adota uma lógica da guerra, do confronto e da eliminação de um suposto inimigo. Só que esse inimigo em geral tem perfil territorial, ele tem um perfil de cor, raça e de sexo. O que nós estamos dizendo é que algumas pessoas são matáveis. Quem são essas pessoas: mais de 50% são jovens, e dentre esses, mais de 80% são negros e pardos. É uma tragédia. Pense nesse universo de mais de 30 mil jovens que morrem todos os anos, é como se nós derrubássemos um desses aviões que faz a ponte aérea Rio-São Paulo a cada dois dias – cheio de jovens. É isso que está acontecendo diante dos nossos olhos. E uma parte grande dessas mortes é causada por policiais.
No documento entregue pela Anistia às autoridades do Rio, os dados de homicídios levantados apontam que uma em cada cinco mortes envolveu policiais, não é isso?
No Rio de Janeiro, é isso. Um a cada cinco homicídios foi causado por policiais em serviço e em situações que foram consideradas legítimas. Na verdade, o número é maior do que isso.
Em São Paulo, aponta-se que os números de homicídios foram subestimados.
É uma questão fundamental, estamos falando da vida de uma parcela enorme da nossa juventude que está sendo desperdiçada de maneira bruta, gerando uma dor incomensurável em familiares, mães, irmãs e amigos. Comunidades inteiras estão vendo sua perspectiva de desenvolvimento local e promoção econômica comprometidos por essa violência. Então isso tudo deveria ser objeto não só de uma política de Estado de longo prazo, de promoção do desenvolvimento pessoal, é disso que a gente fala, a segurança vista como uma política pública integrada com outras políticas, não apenas uma questão de polícia e de guerra, mas mais do que isso, como uma questão emergencial porque é preciso interromper esse ciclo de morte. Nós precisamos de um plano, de um pacto nacional com metas de redução de homicídios. Isso é possível? Sim. A Colômbia é um exemplo. Num curto espaço de tempo, um país recortado por uma quantidade enorme de conflitos conseguiu se transformar ao tornar essa agenda uma prioridade do Estado. Mas é preciso querer. É preciso que a sociedade e o Estado acordem para essa realidade, já passou da hora.
A sociedade tem se mostrado muito indiferente às denúncias de violência?
Tudo isso que está acontecendo tem um grande grau de consentimento da sociedade. A sociedade está olhando para o outro lado. Uma vez eu me referi à questão como uma espécie de “epidemia de indiferença”. E quando digo sociedade, não é somente o cidadão comum, mas também as pessoas que têm influência na sociedade. Nós hoje estamos no patamar de quase 60 mil homicídios por ano. No Brasil, morre-se o mesmo tanto que se registrou em todos os anos da Guerra do Vietnã. E aí eu pergunto: mas como isso pode acontecer justamente nos 30 anos em que a gente mais avançou em conquistas sociais, redução do déficit de desigualdade, maior oferta em saúde e educação? Por que isso não escandaliza a sociedade? Por que isso não vira uma prioridade efetiva do Estado? Por que é que isso ainda não virou um pacto nacional pela redução dos homicídios? Nós tentamos em vários momentos, com governos diferentes, e agora de novo com o atual governo, sem sucesso. Isso não é prioridade. Prioridade é armar mais a polícia, aumentar o patamar da repressão. Essa é uma pergunta que toda a imprensa, todos os órgãos públicos, todas as pessoas de influência deveriam estar colocando em debate. Assim como, em um certo momento da história do país, fizemos essa pergunta em relação à fome. Não vamos esquecer que em meados da década de 1990, depois do Movimento Pró-Ético na Política, o Betinho de Souza, irmão do Henfil, fez a pergunta fundamental: “Por que as pessoas vão dormir todo dia com fome?” E aí se fez aquela belíssima movimentação nacional que acabou agendando o tema da fome e da miséria absoluta como prioridade nacional. E daí vieram todas as coisas que conhecemos, desde os projetos de Fernando Henrique, associando inclusão e educação, até o Fome Zero e o Bolsa Família dos governos Lula e Dilma. Mas foi preciso uma enorme mobilização da mídia e da sociedade para colocar a agenda de que ter 30 milhões de pessoas com fome não é admissível, vamos enfrentar isso. E nós temos a mesma situação com homicídios. Temos uma epidemia de homicídios e de indiferença.
Em um momento político como o que estamos atravessando, não corremos o risco de que essa discussão vá parar novamente no fim da fila?
Sim, na medida em que você adota uma perspectiva redutora de direitos, que foca em uma política social muito excludente e ajuste fiscal que não leva em conta o padrão desigual em relação a quem acessa serviço de bens e direitos. É muito preocupante e acho que isso vai gerar mobilização por parte de alguns setores brasileiros. E não está só se falando na redução de direitos, já está se implementando.
É quase como se nós estivéssemos em um daqueles jogos de tabuleiro, você volta três casas e avança uma…
Nós já voltamos algumas casas. A questão é saber em que momento e como a sociedade vai reagir e colocar essa discussão na agenda pública. Nós estamos vivendo um momento em que o Estado brasileiro tem um baixo padrão de legitimidade e representação. As pessoas não se reconhecem nele. Não se reconhecem no Congresso porque o Congresso hoje é composto fundamentalmente por uma população que não retrata aqueles que deveria representar. É um Congresso masculino, branco, de pessoas ricas. Temos um governo federal com baixa legitimidade, porque é um governo que não foi eleito. Ele se constituiu após o processo de impeachment, que é uma ruptura. E em situações como essa temos o momento ideal para o avanço das forças do atraso. É nessas horas que a vanguarda do atraso progride, vamos dizer assim, porque ela tem poder e encontra brechas, controla todos os recursos, sempre foi assim na história do Brasil. Ao tentar fazer retroceder aquele movimento pela igualdade, isso vai causar tensão.
E isso acaba se traduzindo que nos protestos aos quais estamos assistindo. Na sua visão, os governos têm feito uso da chamada força excessiva ao contrário do que dizem? Creio que em uma outra entrevista, você chegou a dizer que mesmo que os protestos fossem mais violentos, coisa que não está acontecendo, a reação do sistema de segurança ainda assim deveria ser diferente.
A polícia tem agido como um fator provocador da violência. Essa é a verdade, é isso que nós temos documentado e visto acontecer nos protestos. A polícia não atua como processo de pacificação, como fator garantidor da segurança de todos que querem protestar. Agora, mesmo naquela situação que eventualmente justificaria algum grau de repressão, para garantir o direito de todos a protestar, a polícia deveria fazer uso de forma gradual, cuidadosa e focalizada, muito ao contrário do que temos visto. A polícia parte do ponto de que aquele protesto tem que ser desmontado e já faz uso da força com o grau máximo. O famoso uso gradual da força é um conceito que parece ter sido riscado do manual das polícias no Brasil, em particular de São Paulo e no Rio de Janeiro.
Olhando para o lado positivo e pensando no protagonismo jovem que você citou há pouco, o que falta para que esse movimento ganhe uma escala realmente nacional e que, juntamente com instituições mais tradicionais, possa ajudar a reverter essa situação e dar espaço a uma nova maneira de ver as coisas, uma maneira diferente de pensar o Brasil?
Nós temos que fortalecer na sociedade a disposição para que essas vozes sejam ouvidas na sua diversidade. Isso vale para o Estado, mas vale também para a sociedade. Nós precisamos aprimorar nossas habilidades, como sociedade, como instituição, de escuta. O Congresso e o Estado, em grande medida, têm se feito de surdos a essas demandas e na sociedade, infelizmente, prolifera muitas vezes as falas autocentradas, pessoas que olham somente para o lugar onde vivem – sem escutar os demais. Isso acaba fortalecendo o preconceito, fundamentalismo, polarizações. O direito fundamental à fala, à manifestação, ao protesto, à liberdade de expressão são a base de um ambiente mais propício à escuta e, portanto, ao avanço de agendas e acordos. O que a gente precisa é construir pontes na sociedade em torno dos acordos básicos para superar a desigualdade, lutar juntos contra a violência, diminuir esse patamar absurdo de homicídios, garantir que todos os direitos das pessoas sejam ampliados e não reduzidos. Levantar as cortinas de fumaça que impedem as pessoas de olhar para o que realmente importa, como os 60 mil homicídios por ano. Mas para criar esses acordos que vão além das particularidades, é importante criar canais para que as pessoas possam falar e se escutar.
Ou seja, estamos falando de um país com mais direitos, talvez mais deveres, e certamente muito menos privilégios.
A ideia da cidadania é um compromisso de todos com todos. O meu direito está ligado ao direito da outra pessoa, portanto ele vem acompanhado de deveres. Não essa visão moralista de deveres, mas uma coisa mais lúdica. O meu destino está intrinsecamente ligado ao destino do outro. E o nosso destino como sociedade só vai avançar se a gente superar as desigualdades, a violência e o racismo.
Soraia Yoshida