A onda feminina é cada vez mais forte, assentada na convicção de que a mudança só virá quando o poder for compartilhado
(O Globo, 14/09/2018 – acesse no site de origem)
Felizmente, novidade é substantivo feminino, porque novo na corrida eleitoral de 2018 são as mulheres. A evidência mais recente é a mobilização espontânea e apartidária contra Jair Bolsonaro, que brotou no mundo virtual e promete se materializar em manifestações reais numa esquina perto de você. Ontem à tarde, o grupo “Mulheres unidas contra Bolsonaro” no Facebook ultrapassava 1,5 milhão de brasileiras, entre integrantes e convidadas à espera de confirmação. Foi a primeira vez que a rejeição a um presidenciável — 49% das eleitoras não votariam nele, segundo o Datafolha — deixou de ser percepção subjetiva de instituto de pesquisa e ganhou identidade coletiva.
A articulação contra o candidato do PSL é parte do crescente protagonismo feminino na política. Mulheres são maioria no eleitorado e fração em candidaturas e mandatos. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), o Brasil tem 73,3 milhões de eleitoras (52,5% do total), concentradas na faixa etária de 25 a 49 anos. São mulheres que, preparadas e disponíveis para o mercado de trabalho, se deparam com barreiras de acesso aos melhores cargos e salários tanto no setor privado quanto em funções públicas. Por isso, o desprezo do presidenciável pela agenda de equidade de gênero desce tão mal.
Foi em 2006 que o total de mulheres aptas a votar ultrapassou o de homens em todas as faixas etárias, informa o demógrafo José Eustáquio Alves no estudo “O eleitorado brasileiro cada vez mais feminino e envelhecido”. Mas o poder político nunca foi repartido. “O hiato de gênero nas esferas de poder favorece amplamente os homens”, escreve o pesquisador. Em 2014, o país elegeu uma única governadora em 27 unidades da Federação; 51 deputadas em 513 cadeiras; sete senadoras para 54 assentos em disputa. Em 2016, foram 638 prefeitas eleitas em quase 5.600 municípios. No pleito que reelegeu Dilma Rousseff, as três candidatas — além da ex-presidente petista, Marina Silva (à época no PSB) e Luciana Genro (PSOL) — somaram 67 milhões de votos, dois em cada três válidos.
Para Alves, o número sugere que a falta de representatividade feminina na política se relaciona mais com estruturas partidárias resistentes do que com aversão de eleitoras às candidatas. Este ano, há 8.535 candidaturas femininas num universo de 27 mil registradas. Trata-se de um recorde (30,7% do total), que parece ter mais a ver com a obrigatoriedade de destinar 30% dos recursos do Fundo Partidário a campanhas femininas do que com construção de equidade propriamente — o resultado final das eleições dirá. Na corrida presidencial, por exemplo, há somente duas mulheres encabeçando chapas, Marina Silva (Rede) e Vera Lúcia (PSTU), e quatro candidatas a vice, Ana Amélia (PSDB/PP), Kátia Abreu (PDT) , Manuela D’Ávila (PT/PCdoB) e Sonia Guajajara (PSOL). É prova de que os selos mais tradicionais do sistema político seguem privilegiando os homens.
Na sociedade civil, contudo, a onda feminina é cada vez mais forte e visível, assentada na convicção de que o cenário só vai mudar quando o poder for compartilhado. Noves fora a campanha anti-Bolsonaro, há muita mobilização pelo voto em mulheres para cargos legislativos, principalmente no movimento negro. Uma pesquisa do Ibope para a ONU Mulheres feita em agosto mostrou que 72% dos eleitores negros e negras acreditam que democracia de fato é ter mulheres em espaços de poder e cargos de decisão; entre autodeclarados brancos e brancas a proporção também foi alta, embora um pouco menor, 68%. Dois anos atrás, o país elegeu 454 prefeitas brancas, 178 negras e uma indígena. Nas câmaras municipais, foram 4.877 vereadoras brancas, 2.871 negras e 21 indígenas. Hoje, a organização apresenta a pesquisa completa e lança a plataforma digital Brasil 50-50, com a lista de candidaturas comprometidas com os princípios internacionais de igualdade de gênero e raça. É caminho sem volta.
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