O Itamaraty de Ernesto Araújo macula a trajetória da diplomacia brasileira na defesa dos direitos das mulheres nas Nações Unidas
(Celina/O Globo | 16/07/2020 | Por Sonia Corrêa e Gustavo Huppes*)
O Conselho de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) vota nesta semana duas importantes resoluções para definir e assegurar o compromisso internacional dos Estados em relação aos direitos das mulheres. Os debates têm como foco o combate à discriminação e à violência de gênero, como a condenação da prática de mutilação genital feminina.
Durante a negociação dos textos em votação, o Brasil pediu a retirada de parágrafos inteiros que recomendavam o pleno acesso de mulheres à saúde e a direitos sexuais e reprodutivos. A delegação brasileira foi contra a inclusão do artigo que preconizava o acesso a informações e métodos contraceptivos, bem como ao aborto seguro e legal e à prevenção e tratamento de infecções sexualmente transmissíveis, HIV e cânceres reprodutivos.
Essa conduta consolida o posicionamento retrógrado do governo Bolsonaro e seu alinhamento com Estados reconhecidamente párias na defesa dos direitos humanos. Desde o ano passado, o Brasil vem dando apoio inédito às chamadas “emendas hostis” propostas por governos conservadores para negar o acesso de mulheres a seus plenos direitos.
Apesar das vicissitudes do cenário nacional de políticas públicas e da histórica apatia dos diferentes governos democráticos na promoção e proteção dos direitos sexuais e reprodutivos, o país desempenhou papel de liderança regional em discussões de gênero nas conferências dos anos 1990 e suas revisões. Em 2003, o Brasil foi o primeiro país a propor uma resolução sobre direitos humanos e orientação sexual na extinta Comissão dos Direitos Humanos da ONU; e teve papel relevante na criação do mandato do Perito Independente para Orientação Sexual e Identidade de Gênero, no Conselho de Direitos Humanos. A temática do HIV/AIDS e direitos humanos também ocupou um lugar importante na agenda de política externa brasileira.
A postura do Itamaraty comandado por Ernesto Araújo macula o histórico diplomático do Estado que um dia foi considerado um dos principais atores na luta internacional pela garantia dos direitos humanos.
Durante audiência pública no Congresso Nacional em 2019, o chanceler usou uma metáfora insólita ao tratar os direitos sexuais e reprodutivos como “um truque” da “ideologia abortista”. Segundo ele, o aborto era “uma gilete dentro do bolo” dos direitos da mulher. E adicionou: “A ONU não pode substituir o processo legislativo brasileiro… Eu não vou comer bolo com gilete, e o povo brasileiro não quer comer bolo com gilete dentro”. Outras vozes do governo têm reiterado essa mesma visão na ONU. A ministra Damares Alves, por exemplo, usou seu primeiro discurso no Conselho de Direitos Humanos para defender de maneira absolutista o direito à vida desde a concepção.
Na atual sessão do conselho, “emendas hostis” apresentadas por Rússia, Egito e Arábia Saudita às resoluções sobre direitos das mulheres visam eliminar trechos sobre direitos sexuais e reprodutivos e educação sexual como forma de prevenir abusos contra meninas. As emendas serão votadas nos próximos dias.
A cruzada contra temáticas legítimas dos direitos humanos nas esferas do gênero e da sexualidade que hoje pautam a política externa brasileira é espúria e seus efeitos nacionais e internacionais não podem ser minimizados. A sociedade civil brasileira e as demais instituições democráticas devem estar muito atentas a seus desdobramentos e denunciar essas diretrizes como irresponsabilidade de uma chancelaria que, um dia, foi mundialmente prestigiada pela condução de negociações nesse debate.
*Sonia Corrêa é coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política, e Gustavo Huppes é assessor de advocacy internacional da Conectas Direitos Humanos