Disputa no 2º turno pode ter duas mulheres. Mas o sexismo ainda não foi derrotado, por Matheus Pichonelli

15 de setembro, 2014

(Blog do Matheus Pichonelli/Yahoo Notícias, 15/09/2014) Não faz muito tempo, fui tirar sangue em uma clínica da minha cidade quando vi um senhor armar um barraco na fila de espera. O motivo: ele se negava a ter o sangue coletado por uma enfermeira. Esperneou, berrou, fez beiço. Dizia, a quem quisesse ouvir, que mulher nenhuma tinha jeito para tirar sangue. A enfermeira a observava incrédula. Em vão. O paciente só levantou da cadeira quando um enfermeiro, homem, se prontificou a atendê-lo.

Foi uma das poucas vezes que testemunhei um caso explícito de discriminação contra mulher sem motivo aparente além do fato de ela ser mulher – em geral, a misoginia opera de modo um pouco mais sutil, em discursos e comentários jocosos que vão de piadas sobre loiras à condenação do vestuário. Ainda assim, era impensável que, em pleno 2014, alguém se recusasse a ser atendido por uma profissional mulher. Ou desconhecesse que o escarcéu poderia render a ele problemas com a Justiça.

Lembro desse episódio quando vejo duas mulheres a caminho do segundo turno da eleição presidencial. É possível que o sujeito que, dias atrás, se negava a tirar o sangue com uma enfermeira se negue também a aceitar uma mulher na Presidência. Mas, ao menos nas pesquisas de intenção de voto, esse sujeito é cada vez mais raro. E influencia cada vez menos o seu meio. É bom que seja assim.

Como diria a prudência dos sábios, no entanto, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Ao disputarem o posto mais alto da República, Dilma Rousseff e Marina Silva não ocupam a ponta de um iceberg de conquistas consolidadas. A chegada delas ao topo é um indício de um processo em andamento, e não o seu desfecho, como querem provar os gênios de ocasião que, nessas horas, costumam apelar ao deboche para referendar uma velha posição. “As feministas poderiam explicar como um país machista igual o nosso pode levar duas mulheres ao segundo turno da eleição presidencial”.

No contrapé, os comentaristas de sempre atestam como o machismo não se manifesta apenas na decisão de voto, mas no deboche de quem se nega a entender a questão como um todo. Eles não explicam, por exemplo, por que as mulheres, sendo a maioria dos eleitores, não chegam a 30% dos candidatos da disputa. Dilma e Marina são exceções, e não as regras, em um mundo ainda extremamente masculinizado como a política.

Basta lembrar (na verdade, não basta) que, no país governado há quase quatro anos por uma mulher, pontos fundamentais da luta feminina ainda são considerados tabus. A começar pela negação do Estado em entender a decisão sobre o próprio corpo como uma questão de saúde pública, e não de opinião, passando pela naturalização dos chamados crimes passionais, pelos números da violência doméstica, pela distância da remuneração entre homens e mulheres, pela agressividade das cantadas pelas ruas e pelo sexismo ainda predominante no ambiente de trabalho.

Não à toa, conforme mostrou no início do ano a pesquisa do Ipea sobre “Tolerância social à violência contra as mulheres”, 42,7% das pessoas dizem concordar com a frase “Mulher agredida continua com o parceiro porque gosta de apanhar”. Ou com a frase “se as mulheres soubessem como se comportar, haveria menos estupros”, aceita total ou parcialmente por 58,5% da população.

Na base do iceberg são estes os dados a corroer o discurso de que, se o Brasil aceita uma mulher na Presidência, é porque o machismo não dá mais as cartas por aqui. Ele ainda dá, embora não seja suficiente para mudar os rumos da eleição – é suficiente, entretanto, para provocar estragos a quem tenta circular nas ruas quando quer, como quer e com quem quiser. E não, nem mesmo as duas candidatas estão completamente livres desse sexismo.

Ao fim desta eleição, valeria uma leitura à parte dos especialistas sobre a construção das imagens das candidatas. É como se, para serem aceitas pelos eleitores, elas tivessem de se desfazer de traços relacionados à feminilidade. Uma transita entre a “mãe de todos” e a “gerentona”.  A outra, econômica nos gestos e nas expressões, parece encarnar o recalque de uma figura sagrada. A presidenta, a quem o prefixo “dona” é recorrente, já teve de responder perguntas sobre se tem tempo, de vez em quando, de fofocar com as amigas de Palácio. Em um dos debates entre candidatos, os óculos de Marina foram mais citados em sites noticiosos do que suas propostas. E ambas são lembradas, recorrentemente, como espécies de costelas de Adão: só são o que são por causa dos aliados e ex-aliados homens, Luiz Inácio Lula da Silva e Chico Mendes. Uma é, inclusive, lembrada como “poste”. E não chegaria, segundo esse pensamento, a lugar algum sem o apoio do “criador”. Na propaganda de estreia na TV, o marqueteiro João Santana só faltou criar um slogan: “Ela lava, passa, cozinha e ainda cuida do País nas horas vagas”.

Tente puxar pela memória se você já leu ou ouviu qualquer gracinha ou notícia em tom de relevância sobre o peso de Aécio Neves, de Eduardo Jorge ou do Pastor Everaldo. Ou sobre a cor de seus óculos. Sobre sua calvície. Sobre os sapatos usados na campanha. Sobre botox. Sobre o nome de seus cabeleireiro. Sobre a cor da gravata. Sobre se eles, no meio da campanha, têm tempo de cozinhar macarrão ou fofocar com os amigos. Ou se alguém, ao dizer por que não votaria em um ou outro, em conversas reservadas ou nas redes sociais, expõe a profusão de referências comuns às candidatas mulheres, tantas vezes chamadas de vacas, vadias, cadelas, sapatas, crentes, dissimuladas em meio a referências sobre atributos estéticos, entre montagens de extraterrestres e bichinhos Ewoks, que confirmam o que a filósofa Marilena Chauí chama de “aberração cognitiva”.

A comparação pode ser um exercício interessante a quem vê na tendência da eleição atual o atestado de óbito de uma praga que, sob a ingenuidade das brincadeiras em rodas de conversa, das decisões judiciais sobre honras e famílias e dos estereótipos nas novelas, revistas e programas de variedades, mata, em pleno século XXI, uma mulher a cada hora e meia no Brasil.

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