27/05/2012 – ‘Não quero ser a Cármen. Quero ser a Justiça’

27 de maio, 2012

(Maria Cristina Frias, Folha de S.Paulo) O julgamento no STF (Supremo Tribunal Federal), favorável ao aborto de anencéfalos, foi em uma quinta-feira de abril. No sábado pela manhã, a ministra Cármen Lúcia foi à padaria. Estava entretida com a compra quando ouviu um homem grande vociferar contra “esse bando de vagabundos”. Achou que não era com ela. Mas ele insistiu: “Também esses vagabundos que aprovaram o aborto, aprovaram até união de gays. Tudo com o nosso dinheiro”.
De porte “mignon”, magrinha, como sempre foi desde criança, Cármen Lúcia ficou meio acuada junto ao balcão. Parecia que ele ia bater nela. À volta, ninguém dizia nada, nem para defendê-la, nem para contê-lo.
“Ele refletia uma insatisfação que marca algumas decisões do Supremo e que os mais exaltados expõem de forma agressiva”, diz ela, com a fala pausada, de forte sotaque mineiro.
Além de fazer parte do corpo de ministros do Supremo, que tem à frente outro aguardado julgamento, o do mensalão, Cármen Lúcia Antunes Rocha é desde abril, a primeira mulher a presidir o TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Embora reconheçam a honestidade da ministra, críticos alegam que não há feito algum nisso, uma vez que a presidência do TSE é preenchida por um sistema de rodízio entre os ministros do Supremo. Mas o fato é que Cármen Lúcia assume com uma prova de fogo: em ano eleitoral e, pela primeira vez, sob a vigência da Lei da Ficha Limpa.
INTERNATO DE FREIRAS
Conforme se aproxima a votação, cresce a pressão e as decisões do TSE requerem agilidade e segurança, lembram advogados. Diretas e sem titubeios foram as suas respostas na longa entrevista à Serafina no gabinete da presidência no TSE, no recém-inaugurado prédio projetado por Niemeyer.
Logo que tomou posse, constatou que a obra tinha vazamentos e que a construtora já havia ido embora. “Foi a Delta [empreiteira investigada na CPI de Cachoeira] que fez?”, perguntou ansiosa, logo de cara.
Nascida em Montes Claros, a ministra, que votou pelo direito da mulher de interromper a gravidez de feto anéncefalo, viveu na pequena Espinosa, no norte de Minas, até ser mandada a um internato de freiras, em Belo Horizonte, aos dez anos.
Lá, a rotina era rigorosa. Havia hora para tudo. Freiras tocavam um sininho para acordar as alunas que, imediatamente, tinham de arrumar a cama e entrar no banho. As irmãs ligavam o chuveiro e o desligavam contados minutos depois, sabão enxaguado ou não.
“Era duro e eu sentia falta de casa”, recorda. A 800 kms de distância, só via os pais nas férias. “Mas me deu disciplina. Acho que acabei ficando com uma madre superiora dentro de mim”, brinca. O atual dia a dia espartano não a desmente.
Acorda às 5h30, faz café e senta para escrever seus votos no Supremo. Às 7h, liga para o pai que, aos 94, ainda cuida do seu posto de gasolina. Às 8h, pausa para um café completo. Trabalha até as 11h, quando Cármen, que não tem empregada, prepara o próprio almoço –tarefa fácil porque, pelo que se vê, quase não come. “Mas adoro brigadeiro”.
Vai para o STF e, dois dias por semana, segue de lá para o TSE. Volta para casa por volta de 22h. O jantar se resume a chá com torradas e iogurte.
Exceto em alguns compromissos oficiais, dirige seu carro, o que, de início, causou estranheza nos pomposos salões do Supremo.
“O Brasil mudou…”, comenta. Se bem que, outro dia, reconhecida na fila de embarque para Minas, ofereceram à ministra que passasse na frente. Ela agradeceu e recusou. “Mas aí, um senhor interveio: ‘Ah, não! Não estou educando minhas filhas para que fiquem no final da fila'”, diverte-se ela.
O eleitorado também é outro. “Não há mais espaço para o ‘Rouba, mas faz’.”
Na Corte, define-se como “bem mineira, não entro muito em discussão, mas não deixo de falar quando considero importante”, diz ela, que quase nunca falta.
CALÇA COMPRIDA
Em 2007, Cármen Lúcia foi também a primeira mulher a usar calça comprida no Supremo. Embora o traje estivesse liberado, uma jornalista havia sido barrada. “Achei que o melhor era dar o exemplo.”
Sobre a sua troca de e-mails com o colega ministro Ricardo Lewandowski, captada em fotos durante o julgamento do mensalão em 2007, disse que conversas são “normais”.
“Nos EUA, discute-se antes e longe das câmeras. Um juiz da Suprema Corte americana esteve aqui e ficou horrorizado com nossa exposição. Ministros discutindo e votando à frente de todos!”
“Para nós, quanto mais transparente, melhor.”
Nos bastidores dizem que a ministra gosta de ter apoio dos pares para suas teses. Um fio de orgulho intelectual seria, então, um dos raros traços de vaidade dessa ariana. Elegante, porém sóbria no vestir, tem deixado os cabelos brancos –raros no dia da posse no STF, há seis anos– se avolumarem.
“Amadurece a gente [o STF]”, diz ela. “Vemos as piores coisas de que um ser humano é capaz. Mas não mudei, meus valores humanos permanecem.”
LITERATURA
Fluente em três línguas estrangeiras, lê textos jurídicos em outras duas. A literatura é quase uma obrigação. “Escrevo voto, além de gostar de escrever. Se não leio, começo a repetir palavras.” Não é, porém, de reler obras, rever filmes, peças nem lugares. Não gosta de viver o que já passou.
Mas há cinco livros para os quais sempre volta: “Fio da Navalha”, de Somerset Maugham, “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles, “A Divina Comédia”, de Dante, “Crime e Castigo”, de Dostoiévski e “Grande Sertão – Veredas”, de Guimarães Rosa. “Esses, cada vez é outra Cármen lendo.”
Pouco sai de Brasília. “A gente aproveita os feriados para adiantar o trabalho.” Da falta de lazer, se ressente mais de “não ter tempo para escrever no fim de semana. Isso o cargo me tirou”.
E os namoros? “Acabaram como tinham de acabar. A paixão pela minha vida foi maior do que uma paixão por um homem.” Talvez, por isso, não tenha se casado, nem tido filhos? “Vejo as grandes mães que abrigam todos sob as suas asas, mas para mim não é colocar debaixo, é em cima das asas.”
“Tenho profissão muito racional, mas tenho certeza do afeto, o que conta na vida.”
E como equilibra esse afeto e a lei em suas decisões?
“Juiz só interpreta, não tem legitimidade para criar direito que não existe. O povo entrega ao legislador essa tarefa.” Para ela, o que muda de um juiz para outro é a sua visão de mundo. “Tem de ter compaixão, mas o direito é uma barreira racional à emoção. Gostaria de ser julgada por um juiz assim.”
Diz ter agido dessa forma quando votou pela saída de fazendeiros de terras indígenas na Bahia. “Mas pensei, esse senhor [da associação de proprietários locais] podia ser o meu pai…”
Ou quando, na semana passada, a ministra se emocionou com a beleza de um relato de uma mãe cujo filho envolvera-se com drogas. “Queria dar a mão a ela, mas não posso dar liberdade a seu filho.”
“Peço todas as manhãs a Deus: Senhor, livre-me de mim. Não quero ser a Cármen. Quero ser a Justiça.”
No gabinete, chamam a atenção a mesa organizada, com uma pilha de papéis despachados, e imagens religiosas. “Vai com Deus”, comumente se despede.
Foi difícil votar a favor do aborto de anencéfalos, contra a igreja?, pergunto. “Achei que estava votando pela vida.”
Em outras ocasiões, “já decidi contra mim, contra o que eu achava que seria o melhor, mas votei de acordo com a Constituição”.
Como quando o Supremo validou a decisão do ex-presidente Lula de não extraditar Cesare Battisti, condenado na Itália por assassinatos. Não havia mais espaço jurídico para decisão diferente, julgou.
MENSALÃO
Foi por indicação de Lula que Cármen Lúcia chegou ao STF, em 2006, aos 52. Tinha sido advogada, procuradora do Estado de Minas, professora da PUC-MG.
Ao ser sondada para o cargo, não contou nada a ninguém. Nem acreditava que a coisa fosse adiante, diz. Mas ao sair da reunião com o presidente, a primeira ligação foi para o pai, que ralhou: “Você ainda está em Brasília? E sua aula em BH?”
A preocupação com a responsabilidade, acredita, herdou de ambos os pais.
“Em casa, só não podiam três coisas: mentir, roubar e ter preguiça.”
A mãe dizia que “as filhas teríamos de trabalhar mais para chegar ao mesmo lugar que os homens”.
Do pai, vieram o gosto pelo trabalho e pelo teatro, além da racionalidade para lidar com fatos, mesmo difíceis.
Um dia, quando ela era criança, logo depois de o pai chegar com um carro novo, um menino das redondezas riscou toda a lateral com um prego. Mãe e filhos indignavam-se, enquanto o pai lia jornal.
“E você, não diz nada?”, queixou-se ao marido. Ao que ele apenas respondeu, “ele tem o prego e eu, o carro”.
A ministra defende que se discuta a vitaliciedade dos membros no Supremo para o futuro. De sua parte, não pretende usufrui-la. Além do ritmo desgastante, alega a necessidade de renovação na Corte. Quer ainda fazer outras coisas, viajar e voltar a escrever.
Quanto ao mensalão, diz apenas que “a sociedade espera e cobra o julgamento dessas pessoas. Esse caso tem uma simbologia, o que exige que a gente ande o quanto antes para julgar esse processo. Eu estou pronta. Todas as segundas-feiras dedico as manhãs para estudar isso”.
Para um dos muitos advogados que defendem réus no mensalão, “só lúmpen vai ser condenado. Um pouco por falta de provas e um pouco por falta de vontade política”.
A afirmação soará como o prego no carro do pai?

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