O difícil diálogo de Marina Silva com o Estado laico brasileiro

11 de setembro, 2014

(Rede Brasil Atual, 11/09/2014) O recuo da candidata do PSB à presidência da República, Marina Silva, na proposta a favor do casamento civil entre homossexuais, após pressão do pastor Silas Malafaia, da igreja Assembleia de Deus, foi recebido com perplexidade por parte da comunidade LGBT e por setores mais progressistas da sociedade brasileira, mas é apenas mais um episódio envolvendo a ex-ministra do Meio Ambiente e a expor contradições entre o programa de governo “em movimento” e o Estado laico preconizado pela Constituição de 1988.

O temor de lideranças brasileiras de perder votos ou apoio da chamada bancada evangélica no Congresso não é exclusividade de Marina. A presidenta Dilma Rousseff (PT) foi criticada durante o mandato por não ter enfrentado os representantes neopentecostais, ou mesmo católicos, quando estão em jogo mudanças legais ou constitucionais que mexam em pontos “intocáveis”, como aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo e descriminalização da maconha. No início de agosto, em evento de mulheres das Assembleias de Deus, a presidenta citou um salmo de Davi – do Velho Testamento. “Feliz a nação cujo Deus é o Senhor”, disse.

No Congresso, o deputado federal Jean Wyllys (Psol-RJ) tem criticado frequentemente as ações da bancada evangélica e a falta de vontade política do governo e de aliados para fazer andar propostas de avanços.

Contudo, o caso de Marina preocupa os analistas por posições que não se resumem à chamada governabilidade ou a uma relação institucional ou política com lideranças religiosas. “Dilma também é suscetível a pressões, teve que negociar com os religiosos, mas o que chama a atenção no caso de Marina é que a fala dela sobre aborto, por exemplo, é a opinião dela. Algumas vezes Dilma deveria ter enfrentado os religiosos, mas o problema da Marina é que ela acredita nisso”, diz a pesquisadora Maria das Dores Campos Machado, professora do Núcleo de Pesquisas em Religião, Gênero, Ação Social e Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Os crucifixos que ornamentam as casas legislativas revelam que ainda há um longo caminho para se avançar em busca do chamado Estado laico. No país, os governos ainda convocam igrejas para implementar políticas públicas, como de combate ao crack, à mortalidade infantil ou para a instalação de comunidades terapêuticas, geridas por grupos religiosos cristãos, tanto evangélicos quanto católicos.

No plano de governo lançado oficialmente dia 29 de agosto em São Paulo, Marina Silva elencava uma série de itens “para assegurar direitos e combater a discriminação”, entre os quais um de clareza exemplar: “apoiar propostas em defesa do casamento civil igualitário” entre homossexuais. Porém, após manifestação hostil e ameaças de Malafaia em uma rede social, o programa mudou. Segundo a candidata, o texto original estava errado por “uma falha processual na editoração”.

A nova redação propõe “garantir os direitos oriundos da união civil entre pessoas do mesmo sexo”, o que não representa nenhuma evolução, já que esse entendimento foi consolidado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em julgamento de 2011.

“O que me parece um atraso é que, em pleno século 21, a candidatura da Marina Silva coloque em questão certos direitos civis. Há uma opacidade em relação à figura da Marina Silva e um eventual governo dela. A candidatura Marina se mantém como moderna numa agenda ambiental e numa espécie de idade das trevas na questão de gênero ou na questão do aborto”, diz Francisco Fonseca, professor da Fundação Getúlio Vargas.

Quando ministra do Meio Ambiente do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, de 2003 a 2008, Marina teria usado os serviços do pastor Roberto Firmo Vieira, da Assembleia de Deus, como consultor. Segundo reportagens da época, ele promovia cultos e pregações criacionistas nas dependências do ministério, inclusive com a participação da ex-ministra, ou seja, utilizava um espaço público, do Estado, para a difusão de uma tendência religiosa.

Passados seis anos, em conversa com a RBA, o pastor diz que não é mais da Assembleia de Deus, mas de outra instituição, a Sara Nossa Terra. Ele afirma que não era assessor de Marina, não era contratado nem tinha função no Ministério do Meio Ambiente (MMA). “No ministério, não. Eu organizei a segunda e a terceira Conferência Nacional do Meio Ambiente. Não é verdade que promovia cultos evangélicos. Eu participava de alguns cultos. Eu não organizava nada disso”, afirma. “Eu estava na organização da Conferência Nacional do Meio Ambiente. Era contratado pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).”

“Em todos os demais prédios ali da Esplanada há cultos. Tem dias que é dos católicos, existe uma organização, um calendário. No intervalo da hora do almoço, aqueles que querem, quando há disponibilidade do auditório, se reúnem para orar. Quando não tem, as pessoas oram debaixo das árvores.”

Constituição

O Estado laico é garantido no país pelo Artigo 19, Inciso I, da Constituição de 1988: “É vedado à União, aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.

Apesar da “Lei Maior”, consta que a candidata do PSB prefere consultar outro livro. Segundo a escritora Marília de Camargo César, autora da biografia Marina: a vida por uma causa (editora Mundo Cristão, 2010), diante da necessidade de tomar decisões difíceis, a ex-ministra pratica a chamada “roleta bíblica”, hábito de consultar uma passagem da Bíblia, aleatoriamente, para saber o que Deus recomendaria na situação.

A visão de Marina sobre o aborto, por exemplo, é conservadora e não propõe avanços. “Qualquer mudança (da lei) é uma atribuição do Congresso. Eu, particularmente, não sou favorável ao aborto, e o que está no nosso programa é o que já é previsto em lei”, disse a candidata no lançamento do programa de governo.

No Brasil, o aborto é crime, a não ser quando há risco de vida para a mulher, quando a gravidez é resultado de estupro ou em casos de feto anencefálico, como também determinou o STF em julgamento de 2012. “Mas o aperfeiçoamento da democracia implica, sim, em aperfeiçoamento das leis”, argumenta Maria das Dores.

Em que pese o conservadorismo na área econômica, até mesmo a candidatura tucana à presidência, com Aécio Neves, deixaria parte do movimento social menos preocupado quanto a direitos da mulher e dos grupos LGBT. Os Planos Nacionais de Direitos Humanos 1 e 2 foram construídos no governo de Fernando Henrique Cardoso (depois, ainda viria o PNDH 3, no governo Lula).

Ao lançar o programa de governo, Marina afirmou defender a laicidade do Estado e justificou: “O Estado laico é uma contribuição dos cristãos protestantes, que, durante muito tempo, foram perseguidos”. “Nosso compromisso é que os direitos civis das pessoas sejam respeitados e isso está na nossa Constituição. Nós queremos o respeito do Estado laico tanto para os que creem como para os que não creem.”

Os analistas entendem que, quando Marina diz ser a favor do Estado laico, de fato ela é. Porém o que ela entende por Estado laico, se pressionada por um religioso, muda seu programa de governo e, além disso, como ministra, permite pregação e realização de cultos em espaços que pertencem ao poder público?

“Para nós, é direito da Marina Silva ter a declaração de fé, mas, dentro do Estado laico, como define nossa Constituição, os valores pessoais não podem ser os principais legisladores do processo”, diz Morgana Boostel, secretária-executiva da Rede Fale, entidade cristã evangélica que reúne pessoas de igrejas e organizações em luta pelos direitos humanos. “Mas ao mesmo tempo a gente conhece um pouco da trajetória de Marina e sabe que isso não tem sido o cotidiano da trajetória dela. Não diria que ela é a única candidata a ter que fazer algumas concessões”, pondera. Para ela, a candidata ser religiosa não necessariamente a coloca num lugar de “não diálogo”.

Estima-se que 800 mil mulheres por ano recorram ao aborto de modo precário no Brasil. Apesar de não haver números precisos, entre 15 a 20 mil mulheres morrem anualmente em decorrência da prática. “Estamos no século 21 e ainda estamos debatendo direitos civis. Do ponto de vista dos direitos civis, Marina é a figura do atraso, mas ela quer dizer que não é”, avalia Fonseca.

Poder político e econômico

Na campanha de 2010, quando questionada sobre a posição em relação ao aborto e à legalização da maconha, Marina sugeriu que essas questões devem ser definidas em plebiscito, postura interpretada como uma saída política que não irrite nem religiosos, nem movimentos sociais. O discurso não ignora o pragmatismo, já que a saída é claramente conservadora, pois plebiscitos sobre esses temas têm remotas chances de aprovar mudanças.

Se nos últimos anos alguns avanços no campo moral e de costumes, devido à omissão e conservadorismo do Legislativo e acordos políticos do governo, têm sido decorrentes de posicionamentos do STF, como a união civil entre homossexuais, aborto de feto anencefálico e pesquisas com células-tronco, as perspectivas são de que, com as eleições de 2014, a composição do Congresso deverá ficar ainda mais conservadora.

O Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) prevê que a chamada bancada evangélica cresça, aproximadamente, 30% com as eleições. Atualmente, são 73 parlamentares: 70 deputados e três senadores. Se a previsão se concretizar, a bancada evangélica contará, a partir de 2015, com 95 parlamentares, num salto de 12% para quase 16% da composição de forças.

O diretor do Diap, Antônio Augusto de Queiroz, atribui o possível crescimento da representação evangélica à percepção de que a política institucional traz resultados concretos aos interesses “religiosos”. “O fato de figuras como Malafaia terem ganhado importância no segundo turno da última eleição revelou para eles o prestígio que as igrejas podem ter. Malafaia, pastor Everaldo, o pessoal da igreja Universal e o Magno Malta tiveram uma visibilidade muito grande em 2010 e viram que dá resultado”, diz Queiroz. “Com a articulação político-partidária, eles conseguem brecar uma série de iniciativas que contrariam os princípios que defendem, o que é um estímulo a que concorram à eleição.”

Para a Rede Fale, a bancada evangélica não é representativa do que eles dizem representar. “Muitas vezes, são personagens políticos já conservadores, independentemente da questão religiosa. A questão religiosa fica um pouco como pano de fundo. É usada como desculpa para uma agenda já conservadora”, afirma Morgana.

Os evangélicos não são uma força política apenas do ponto de vista religioso, mas também econômico. Levantamento da revista norte-americana Forbes, no início de 2013, mostrou que igreja, no Brasil, é um ótimo negócio. Segundo a revista, o bispo Edir Macedo, dono da Igreja Universal do Reino de Deus, encabeça a lista dos neopentecostais donos das maiores fortunas no país. Ele tinha, na época, US$ 950 milhões. Em seguida, Valdemiro Santiago, da Igreja Mundial do Poder de Deus, com US$ 220 milhões. Em terceiro, aparece Silas Malafaia, da Assembleia de Deus, com US$ 150 milhões. Em quarto, R. R. Soares, da Igreja Internacional da Graça de Deus, com US$ 125 milhões. Num país em que vigora o financiamento privado de campanhas, o efeito desse poderio em cifrões é óbvio.

Na visão de Fonseca, da FGV, o Estado laico não está ameaçado porque há instituições e uma Constituição no país “capazes de defendê-lo”. “A não ser que mude a Constituição.” Mas, com um Congresso conservador e uma chefe do Executivo evangélica, propostas progressistas continuarão engavetadas. “O presidente tem grande poder de agenda no Brasil e tem poder de veto”, lembra.

Em 2013, quando o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) foi presidente da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara, a influência não foi suficiente para fazer passar uma agenda retrógrada, como a “cura gay”, mas pautas progressistas eram sistematicamente barradas.

Para o analista, só uma reforma política e a pressão popular podem trazer a luz no fim do túnel. “Tem que se fazer uma reforma política e, paralelamente, contar com uma pressão vigorosa de movimentos sociais.”

“A laicidade em si é, hoje, muito mais um valor a ser buscado do que algo concreto, está para ser construída”, ressalta Maria das Dores, da UFRJ. E, nessa busca, vale lembrar que, legalmente, a separação entre Estado e Igreja vem de longe no Brasil, logo após a proclamação da República, em 1889, o que foi consolidado na Constituição de 1891.

Eduardo Maretti

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