Suspeitas de magia negra funcionam como castigo para quem não se enquadra nas normas locais
(El País, 03/02/2018 – acesse no site de origem)
Da caça às bruxas na Europa medieval até os “feiticeiros” contemporâneos da Tanzânia, a crença na bruxaria existiu em todas as sociedades humanas ao longo da história. Nós, antropólogos, há muito tempo somos fascinados por esse fenômeno, mas, como é muito difícil estudá-lo com métodos quantitativos, não entendemos muito bem como e por que ele surge.
No entanto, um estudo que realizamos numa região da China nos permitiu testar a hipótese mais frequente, segundo a qual as acusações de bruxaria funcionam como um castigo para quem não se enquadra nas normas locais. De acordo com essa teoria, o rótulo de bruxa marca as pessoas que supostamente não são confiáveis e estimula as demais a se adequarem por medo de serem estigmatizadas. Entretanto, vários estudos empíricos mostram que, pelo contrário, as acusações de bruxaria minam a confiança e a coesão social.
Nossa investigação se baseia em 800 unidades domésticas de cinco povoados do sudoeste da China. Examinamos o comportamento social das mulheres que tinham sido acusadas de “bruxaria” e o comparamos com as que não sofreram acusações. O trabalho, publicado na Nature Human Behaviour, serviu de base para uma ampla colaboração entre cientistas do University College de Londres, a Academia Chinesa de Ciências de Pequim e a Universidade de Lanzhou.
A fim de determinar as relações sociais e a cooperação entre as unidades domésticas, aplicamos questionários em cada casa, perguntando quem tinha filhos, quem era casado(a) e tinha relações com quem. Também colhemos informações sobre trocas de presentes e sobre os grupos que trabalhavam no campo durante as estações da colheita e semeadura, para ver quem ajudava outras famílias a cultivarem. De todos esses dados surgiram quatro relações sociais entre unidades familiares baseadas no parentesco, nos casais reprodutivos, na troca de presentes ou no trabalho agrícola.
Veneno mágico
Durante nossa estadia na região, fomos eventualmente alertados para não comermos em determinadas casas, já que se acreditava que as mulheres que nelas viviam eram “envenenadoras” sobrenaturais. O termo que utilizavam – zhuou zhubo – é às vezes traduzido também como “bruxa”. Todo mundo sabia quais casas eram alvo dessa pecha, e nos surpreendeu descobrir que representavam 13% do total.
Tal rótulo era um dos indicadores mais fortes de agrupamento nas relações sociais. Os membros das unidades domésticas marcadas raramente tinham filhos ou relações conjugais com os das unidades não marcadas, e tampouco costumavam trocar presentes ou trabalho nas respectivas terras. Por outro lado, as famílias marcadas se ajudavam mutuamente e se reproduziam entre si, o que mitigava os custos da exclusão das relações sociais convencionais.
Também praticamos um “jogo econômico” nos povoados. Entregamos uma pequena soma de dinheiro a cada pessoa e lhe pedimos que doasse a parte que quisesse à comunidade (para ser distribuída entre todos os jogadores). Não encontramos nenhuma prova de que as pessoas tachadas de “bruxas” tivessem uma atitude menos cooperativa que qualquer outra.
Na verdade, observamos que as unidades familiares marcadas eram muito parecidas com as demais, exceto pelo fato de que era mais provável que à sua frente estivesse uma mulher e que fossem ligeiramente mais ricas que a média.
Também descobrimos que o processo pelo qual se adquiria esse epíteto era opaco. Frequentemente, nem sequer as vítimas sabiam quem tinha começado a difundir o rumor sobre elas. Pode ser que somente começassem a notar que os outros as evitavam. Algumas fontes nos informaram que a acusação era transmitida dentro da família, e que as filhas herdavam a condição de suas mães. Consequentemente, a fofoca poderia ter surgido muito tempo atrás.
Interpretar os resultados
Os antropólogos que acreditam que o temor de perder a reputação (devido a uma acusação de bruxaria ou por outros motivos) pode ser um potente motor que impulsione a cooperar com o conjunto da comunidade costumam sustentar seus argumentos com experimentos de laboratório em que empregam jogos econômicos. Esses experimentos também mostram que quem castiga os transgressores pode obter vantagens para sua reputação.
Entretanto, na vida real é difícil encontrar exemplos disso. A maioria dos estudos sobre a bruxaria não são quantitativos nem analisam as relações sociais, como fizemos nós. Embora nosso trabalho indique que não há nada que prove que as pessoas que carregavam a pecha não tivessem uma atitude cooperativa, isso não explica totalmente por que as acusações prosperavam em alguns casos, e não em outros.
Nossa conclusão é que a acusação de bruxaria é resultado da concorrência entre unidades domésticas. A atribuição de culpa pode ter se transformado numa maneira de assumir a dianteira perante o rival e obter uma vantagem competitiva quanto à reprodução ou os recursos. Contudo, a origem da concorrência pode ser diferente nos diversos casos.
Também há outras possíveis explicações válidas. Em todo o mundo, a ideia da bruxaria compartilha numerosos elementos comuns. Por exemplo, as vítimas mais habituais são as mulheres de meia-idade, e frequentemente há acusações de envenenamento envolvidas. Mas também há muitas diferenças. Uma tese distinta sobre as origens das denúncias é que elas são frequentes quando as instituições patriarcais tentam impor seu domínio sobre as matriarcais. Talvez isso fosse aplicável ao nosso caso, já que o budismo, que é a religião mais difundida na região, é dominado sobretudo pelos homens, ao passo que a estrutura tradicional da região é matrilinear, e nela a descendência normalmente é determinada pela linhagem feminina.
Do mesmo modo, a dimensão patriarcal das acusações de bruxaria poderia explicar a prevalência das mulheres entre as vítimas nas sociedades tradicionais, e inclusive em contextos atuais que podem apresentar similitudes com a “caça às bruxas”, como a perseguição via Internet dirigida especificamente contra mulheres.
Quanto mais investigarmos, mais perto estaremos de entender e poder enfrentar os mecanismos que há por trás de práticas que podem ter consequências devastadoras para as mulheres de todo o mundo.
Ruth Mace