Onde começa a desigualdade de gênero? Quando nossa sociedade começa a diferenciar meninos de meninas? A rigor, isso acontece ainda antes do nascimento, quando nutrimos expectativas diferentes – e designamos cores e decorações diferentes – para meninos e meninas. Quando assimilamos que ser menino ou menina vai determinar em algum nível qual a experiência que teremos com aquela criança. Vamos no estádio de futebol? Vou comprar toda a coleção da Barbie?
(Estado de S. Paulo, 12/01/2017 – Acesse o site de origem)
Mas a segregação não acaba quando nasce o bebê. Pelo contrário: seguimos marcando fortemente a existência das crianças pelo gênero, num processo que só fica cada vez mais forte conforme os pequenos crescem. E ao fazermos isso, não só privamos meninos e meninas de uma existência plena e de explorar todas suas potencialidades, mas também adiamos a construção de uma sociedade mais livre e justa.
Precisamos urgentemente falar de gênero na infância. Não só na escola – embora esse debate seja fundamental -, mas em todos os outros ambientes. No convívio familiar, na igreja e nos espaços públicos estamos cercados de regras de gênero, ainda que não nos demos conta disso. Transmitimos muito mais do que imaginamos, tanto pelo o que falamos quanto pelo o que deixamos de falar.
Ilustração: Dika Araújo*
Pode ser repetitivo falar que “boneca não é coisa só de menina e carrinho não é coisa só de menino”, mas enquanto isso não for tratado com naturalidade segue sendo mandatório de se dizer. A divisão por gênero já desde a infância nos limita e desperdiça talentos. Sabe-se lá quantos profissionais, atletas e artistas brilhantes não perdemos apenas porque nunca nos demos ao trabalho de expandir o universo de nossas crianças. É preciso uma determinação sobre-humana para que uma menina siga carreira no futebol ou um menino no balé. Um esforço desnecessário e que poderia ser gasto no aprimoramento do talento de cada um ao invés das batalhas que muitas crianças fora dos padrões travam apenas para ser aceitas e validadas.
Uma vez entrevistei uma coordenadora pedagógica que tinha um projeto incrível numa escola em São Paulo. A grande inovação era, em dois dias da semana, deixar todas as crianças – meninos e meninas – brincarem só com um tipo de brinquedo. Um dia era o “dos meninos” e no outro o “das meninas”, mas a experiência mostrou que essa divisão existia muito mais na cabeça dos adultos do que na das crianças. Elas se censuravam prevendo a reação tradicional dos supervisores.
Nesse mesmo caso, outra coisa me chamou a atenção: as meninas não tiveram problemas para usar os brinquedos “de menino”, mas eles resistiram a usar os brinquedos sempre designados a elas. Por quê? Oras, porque na nossa sociedade o feminino é desvalorizado. Meninos que passam a brincar com coisas “de menina” – e homens que fazem coisas “de mulher” – estão se rebaixando. Repare: é muito mais escandaloso dar uma boneca (ou ferro de passar, vassoura, fogão, etc..) a um menino do que uma bola (ou carrinho, jogos de lógica, guerra ou construção) para uma menina. Quem ousa fazer isso ainda é mal interpretado: não está apenas presenteando uma criança com um brinquedo, mas sim desafiando os costumes ou está “incentivando a homossexualidade”. Acabamos por perpetuar as desigualdades e pavimentamos uma sociedade profundamente violenta com as mulheres.
Regras e estereótipos de gênero não servem para facilitar as coisas ou para o mundo funcionar melhor. Não se baseiam em biologia ou verdade universal alguma, são tão efêmeras quanto nosso tempo e geografia. Causam sofrimento a nossos filhos, sobrinhos e netos (especialmente as meninas), e é por isso é nossa obrigação fazer algo a respeito. A ONG Plan Brasil lançou recentemente o #DesafiodaIgualdade, material que recomendo muito para quem está disposto a pensar no assunto e rever suas atitudes.
Falar que é contra a desigualdade é fácil, mas muito desafiador é mudar nossas atitudes. Falamos aqui de transformar uma realidade já muito assimilada, mas que se encontra em plena transformação. Ao dar o exemplo para as crianças, geramos mudanças substanciais já ao fim de uma geração. E melhor ainda, com alterações simples em nosso cotidiano.
Se envolva, converse, faça parte, mude. Qualquer ação conta, menos ficar parad@.