Era para ser um fim de semana com feriado. Música alta pela favela, crianças correndo pela rua, golzinho marcado pelos chinelos bem gastos e a pipa empinada no alto do céu cinza. Era para ser dia de alegria, com churrasco nas lajes e famílias reunidas. Era para ser. Poderia ser, mas não foi.
(Folha de S.Paulo, 26/04/2017 – Acesse o site de origem)
No lugar da música, um silêncio cortado apenas pelo som metálico que saia das armas de diversos calibres. Foi assim. E é. Já são cinco dias consecutivos sob a trilha sonora dessa guerra às drogas que os moradores do Complexo do Alemão conhecem bem. Parece que todo dia é dia de operação policial no Complexo do Alemão. E por onde essas operações passam, deixam rastros de sangue do povo preto e favelado.
Gustavo tinha 17 anos, ele seguia em direção à padaria que trabalhava mas sua trajetória foi interrompida com um tiro de fuzil. Testemunhas afirmam que Gustavo chegou a gritar “sou trabalhador”. Ele morreu na hora.
Bruno, que era militar do Exército, estava de folga em casa quando foi alvejado por um tiro de fuzil na perna e morreu. Ele tinha apenas 24 anos.
Pedro Henrique tinha 13 anos, ele estava dentro de casa quando uma bala de fuzil atravessou a sua barriga. Ele foi socorrido mas não resistiu aos ferimentos e morreu um dia depois.
Os corpos no chão são dos homens. Mas quando um jovem negro morre nas favelas, ao menos uma mulher negra morre junto. Da saudade e da solidão impostas pelo Estado. É mais uma mãe de favela que vai enterrar seu filho precocemente. É mais uma mulher que não vai mais encontrar seu parceiro ao chegar em casa no fim do dia. São mais irmãs que vão crescer sem irmãos, filhas que crescerão sem pais.
Por que morte de preto não incomoda? Não incomoda a morte de favelado? Não incomoda a condenação a 11 anos de prisão de um inocente? Quem vai enxugar as lágrimas da mãe do Gustavo, do Bruno, do Pedro? Das tantas mães que perderam seus filhos vítimas dessa guerras às drogas insana? Quem vai lutar por justiça por nossos mortos? Como fazer para seguir vivendo com medo? Medo de perder seu amor, medo de ter filhos que sejam suspeitos pelo simples fato de serem pretos e moradores de favela? E quem vai pagar a conta da nossa solidão? Indenização nenhuma, por mais que seja de direito, vai conseguir preencher o vazio de uma vida querida que se foi por incompetência do Estado e dos desmandos de suas políticas de segurança.
Fazemos essas perguntas esperando que talvez juntos possamos resolver essa esquizofrenia de achar que mais segurança é igual a mais polícia. Essa loucura de achar que fazer política pública na favela significa colocar morador sob a mira de um fuzil. Se queremos mais segurança teremos que lutar por mais educação, justiça e igualdade. Não há caminhos fáceis, não existem atalhos. Mas precisamos todos nos assustar juntos diante da nossa tragédia. Desnaturalizar essa guerra. Parar de ignorá-la. E parar de ignorá-las: as mulheres que seguem vivas mas mortas por dentro. Sós.
Como diz o escritor afro-americano Ta-Nehisi Coates: “quer se lute, quer se corra, devemos fazer isso juntos, porque essa é a parte que está sob nosso controle. O que nunca podemos fazer é entregar voluntariamente nossos corpos ou os corpos dos nossos amigos. Esta é a sabedoria: sabemos que não fomos nós que estabelecemos a direção da rua, mas apesar disso podemos – e devemos – conceber o rumo de nossa caminhada.”
* Thamyra Thâmara é Jornalista, fotógrafa, social mídia, idealizadora do GatoMÍDIA, AfroFuturista e moradora do Complexo do Alemão. Escreve para Anastácia Contemporânea, Revista DR e Favelados pelo Mundo. Daiene Mendes é estudante de jornalismo, tem 27 anos e mora na Nova Brasília – Complexo do Alemão. É Correspondente Comunitária para o Jornal britânico “The Guardian” e Estagiária de Comunicação na Anistia Internacional Brasil e no Centro de TV da UNISUAM.