Realidade velada, por Samy Adghirni

30 de março, 2014

(Folha de S.Paulo, 30/03/2014) Numa noite de agosto passado, a plateia do teatro Vahdat, no centro de Teerã, presenciou um momento único na história da República Islâmica do Irã. Pela primeira vez desde a chegada dos aiatolás ao poder, há 35 anos, uma mulher cantou sozinha em público -e com a bênção do regime.

No ponto culminante de uma adaptação da ópera “Gianni Schicchi”, de Puccini, a soprano Shiva Soroush, 28, ergueu a cabeça e estufou o peito; sua voz firme e cristalina entoou as lamúrias de sua personagem. Ao fim do solo, o frisson explodiu em gritos e aplausos.

O canto solitário não durou nem meio minuto. Foi suficiente para enterrar o tabu pelo qual uma voz feminina só era lícita se acompanhada de uma masculina.

Naquela noite, o presidente Hasan Rowhani, novo xodó do Ocidente, já governava o país. Mas o aval havia sido emitido, meses antes, pela equipe do conservador Mahmoud Ahmadinejad.

“Eu via no rosto das pessoas um misto de alegria e espanto. Eu estava em êxtase. Nunca me imaginei cantando na frente de membros do regime”, recordou a moça, semanas depois, num café ocidentalizado da capital iraniana. “Sinto que essa reviravolta prenuncia mais coisas boas”, sorriu a cantora.

Shiva nasceu e cresceu sob o regime teocrático e nunca teve dinheiro para viajar ao exterior. Mas ela faz parte da legião de iranianas, anônimas ou ilustres, que desbravam caminhos para tentar recuperar a proeminência perdida com a queda do xá Mohammad Reza Pahlavi, em 1979.

Apesar de ainda viverem sob leis machistas e desiguais, as iranianas impõemse em todas as áreas da sociedade. Três décadas e meia após a revolução, o Irã voltou a ser um dos países de maioria islâmica com ambiente mais favorável – ou menos adverso- para a mulher.

A comparação chega a ser especialmente embaraçosa para os vizinhos do Irã. As sauditas são atreladas por lei a um tutor -irmão, pai ou marido- e não podem nem dirigir. No Qatar, casas tradicionais possuem duas salas de estar, uma para receber convidados, outra para manter as cônjuges, irmãs e filhas longe das visitas. As afegãs devem abster-se de falar com homens que não sejam ligados a elas por vínculos familiares.

No quesito condições de vida básicas da mulher, o Irã também se sai melhor que outras regiões de maioria muçulmana. Metade das marroquinas não sabe ler e escrever, enquanto a taxa de alfabetização das iranianas beira os 90%. A mortalidade materna no Irã é de 21 para cada 100 mil partos, dez vezes menos do que na Indonésia.

Mulheres iranianas são as únicas no mundo legalmente obrigadas a cobrir cabelo e corpo. Mas elas estudam, trabalham e comandam empresas. São advogadas e juízas. Nas entrevistas coletivas, são elas que costumam incomodar os políticos com as perguntas mais certeiras. Madames poliglotas rivalizam-se à frente das mais prestigiosas galerias de arte de Teerã.

No Irã, elas não só votam como são eleitas deputadas, prefeitas e vereadoras.Podem se candidatar a todos os postos para os quais haja eleições diretas, mas nunca uma mulher foi considerada qualificada para concorrer à Presidência ou à Assembleia dos Peritos, órgão consultivo que escolhe e monitora o líder supremo.

O Irã tem mulheres artistas, atletas profissionais, taxistas. Nas universidades, a fatia feminina ocupa 52% das cadeiras. A poligamia está em extinção, e os casamentos arranjados, fora de moda. A mutilação genital, prática mais tribal do que religiosa, é raríssima.

Setareh Nouri, 25, parte da meia dúzia de iranianas que atuam como pilotos da aviação comercial, diz sentir-se desconfortável quando viaja a países árabes. “No Irã temos mais liberdade. Aqui posso trabalhar num ambiente masculino como a aviação, algo impensável no golfo Pérsico”, diz a moça.

A arquiteta Sahere Foruhi, 54, orgulha-se de contrariar frontalmente o clichê da iraniana submissa. Bem-sucedida, viajada e mãe divorciada, espreme sua agenda diária entre serviços para a Prefeitura de Teerã e um escritório no qual tem o ex-marido como sócio.

Sahere avalia que o preconceito ocasional contra mulheres, na rua ou no mundo dos negócios, se assemelha ao da Itália, onde estudou. “Na maioria dos países europeus, a situação não é tão diferente da nossa. Invejável, só a Escandinávia. Ali, sim, as mulheres estão com tudo”, afirma.

Na política, o debate sobre a representação feminina voltou à tona desde que Rowhani foi eleito, em junho do ano passado, com a promessa de “promover oportunidades iguais”. O presidente, um clérigo xiita que se autoproclama moderado, enfrenta críticas por não ter criado até agora o Ministério para Assuntos da Mulher, anunciado na campanha.

Além disso, somente homens constam na sua lista de ministros. Mas três dos12 vice-presidentes que apontou são mulheres. A mais proeminente é Masoumeh Ebtekar, 53, responsável por temas ambientais. Ela ficou famosa no Ocidente após a Revolução Islâmica, quando, então cursando biologia, gastou seu inglês perfeito para tratar com a mídia estrangeira em nome dos estudantes que tomaram a Embaixada dos EUA em Teerã.

O presidente também nomeou duas governadoras (não há eleições diretas para o posto) e escolheu a veterana diplomata Marzieh Afkham, 51, como porta-voz da Chancelaria, principal cargo de relações públicas do Estado.

Prefeitas são só duas, num país com mais de mil municípios. E, fora do Executivo, a representação feminina se mantém tímida. O número de deputadas caiu de 13 para 9 no último pleito. Elas ocupam uma fila exclusiva no plenário de 290 deputados (não há senadores).

ALTIVEZ

O mais surpreendente para quem descobre o Irã talvez seja a altivez cotidiana das iranianas. Elas batem boca no trânsito, barganham preços implacavelmente e pedem informação na rua a quem bem entenderem. Médicas atendem homens e vice-versa.

Jovens e idosas são capazes de se unir de repente para livrar da polícia moral uma mulher interceptada por carregar na maquiagem ou deixar cabelo fora do véu. A pressão e a gritaria são tamanhas que às vezes só resta aos agentes recuar da ação.

Nas grandes cidades, a maioria das jovens emenda um namoro no outro. Quase ninguém se apega à virgindade antes do casamento. “Mantenho uma lista com os nomes dos meus parceiros. Senão, é impossível lembrar de todos”, diverte-se a tradutora M.J., 24.

Enquanto ocidentais cultivam a imagem da iraniana reprimida, muitos homens em países vizinhos têm leitura oposta e enxergam a antiga Pérsia como ninho de mulheres excessivamente liberadas.

Dois anos atrás, um afegão que havia sido pedreiro em Teerã disse à Folha como via as moças dos bairros nobres onde trabalhava. “As iranianas bebem, estão sempre maquiadas e se entregam a homens com quem não se casam. Elas não são boas muçulmanas.”

No livro “The Ends of the Earth” (os confins da Terra, em tradução livre), de 1996, o jornalista americano Robert D. Kaplan expôs suas impressões sobre a república islâmica. Um trecho diz: “As mulheres em Teerã te encaram abertamente. Seus olhos olham fundo dentro dos teus. Cairo não tem muito disso, e Istambul ainda menos”.

POTÊNCIA LAICA

O relativo avanço da mulher no Irã reflete as peculiaridades da história nacional. As bases do protagonismo feminino foram sedimentadas pelo xá Reza Pahlavi, fundador da dinastia homônima. Um militar linha-dura, mas pouco afeito a tradições, Pahlavi nunca escondeu a admiração por seu contemporâneo Mustafá Kemal Atatürk, o líder que pulverizou as fundações islâmicas da vizinha Turquia para transformá-la em potência laica calcada no modelo europeu.

Em 1936, Pahlavi criou o movimento Despertar da Mulher, que, à revelia dos religiosos, baniu o uso do véu e incentivou a criação de uma elite feminina nas ciências, nas artes e nos negócios. Mas, quando a Segunda Guerra eclodiu, britânicos e russos incomodaram-se com o flerte entre o xá e a Alemanha nazista e o pressionaram a abdicar em favor do filho.

Ao assumir o trono, em 1941, aos 21 anos, o jovem Mohammad Reza Pahlavi amenizou a restrição ao véu, mas prosseguiu o projeto de modernização do pai.

Sob a ditadura de Pahlavi filho, dissidentes eram torturados até a morte nas masmorras da Savak, a mais cruel polícia secreta daquela geração. Mas a idade mínima de casamento para meninas saltou de 13 para 18 anos, e mulheres passaram a ter o direito de pedir o divórcio e de dizer “não” a maridos que quisessem uma segunda esposa.

Nos anos 1970, alguns bairros de Teerã haviam se transformado em édens cosmopolitas, onde se viam cabelos soltos ao vento, minissaias e moças bebendo em bares. A face mais visível do glamour iraniano era a imperatriz Farah Diba, mulher do xá, que se dividia entre a filantropia no Irã e o jet set.

REVOLTA

A narrativa ocidental, porém, tende a omitir a rejeição que essa ocidentalização na marra sofria por amplos segmentos da população. No Irã profundo e na miséria das periferias infladas pela industrialização, um sentimento de revolta e alienação fervilhava.

Um dos primeiros atos públicos do aiatolá Ruhollah Khomeini, em 1963, quando era um clérigo provinciano, foi um protesto contra a lei que garantiu às mulheres o direito de votar e concorrer em pleitos municipais. Khomeini foi preso temporariamente. No ano seguinte, ele partiria para o exílio.

Só retornou ao país em 1979, para comandar a revolução, dessa vez com uma base popular que incluía intelectuais, comunistas e a classe média liberal, unidos pela repulsa à autocracia do xá. Em sinal de apoio a Khomeini, mulheres seculares marchavam de véu islâmico pelas ruas de Teerã. “Todas nós participamos da revolução. Nunca imaginamos o que viria depois”, suspira a médica A.K., 53.

Meses após a queda do xá, Khomeini expurgou segmentos laicos da coalizão que o apoiava e pôs em prática seu projeto de implantar o “governo de Deus”. No afã de eliminar o que via como corrupção ocidental, anulou leis familiares da era Pahlavi e impôs um modelo de sociedade patriarcal baseado numa interpretação ultraconservadora da sharia, a lei islâmica.

O limite mínimo para casamento das mulheres caiu para nove anos -nessa idade, nas escolas, as meninas passam por uma cerimônia que marca a entrada na puberdade e fixa, por isso, a obrigatoriedade do véu. Na prática, porém, meninas de até 13 anos podem ser vistas com cabelos descobertos.

Elas perderam acesso a várias profissões, como a de juiz, e passaram a viver sob um regime extremamente desfavorável, que as prejudica em aspectos cruciais como o direito a heranças e guarda de filhos. A propaganda transformou o cânone da esposa dócil e zelosa em pilar da ideologia oficial. A lista de atividades banidas às mulheres incluiu desde o canto até andar de bicicleta. Espaços públicos, como transporte coletivo ou escolas, se dividiram segundo o gênero.

Três anos após a revolução, não somente o véu havia se tornado obrigatório como as mulheres foram proibidas de se maquiar ou andar com homens que não fossem da família, sob pena de se expor à chibata ou à cadeia.

APEDREJAMENTO

Adultério tornou-se passível de execução por apedrejamento. A carência de dados oficiais a respeito desse tipo de pena e o fato de que ela, em muitas ocasiões, é aplicada por cortes locais (que podem agir de maneira autônoma) não permite estimar com precisão sua ocorrência.

Organizações de defesa de direitos humanos fazem avaliações divergentes da situação, mas é seguro afirmar que até o início dos anos 2000 o apedrejamento havia sido imposto dezenas de vezes, incluindo aqueles contra homens.

“As políticas islamitas geraram uma posição extremamente desvantajosa para as mulheres ao reforçarem a dominação masculina, restringir a autonomia feminina e criar um padrão de relações entre gêneros profundamente desigual”, escreveu a feminista Valentina Moghadam, radicada no Ocidente, em artigo científico produzido para o centro de estudos americano Wilson Center, em 2004.

Dois acontecimentos, porém, modificaram de forma inesperada a condição feminina no Irã. O primeiro foi a disparada do número de mulheres nas universidades após a revolução. Nos tempos da monarquia, famílias conservadoras preferiam manter as filhas dentro de casa para preservá-las de ambientes vistos como promíscuos. A adoção de rígidas leis morais tranquilizou os patriarcas, que passaram a permitir o estudo das meninas.
Isso pavimentou o caminho para os altos níveis de instrução das iranianas observados hoje.

O segundo fator decisivo foi a guerra deflagrada em 1980, quando tropas do ditador iraquiano Saddam Hussein atacaram e invadiram o Irã, com anuência dos EUA. Ao longo de oito anos, o conflito mobilizou, matou e mutilou centenas de milhares de homens, abrindo espaço para maior participação das mulheres no mercado.

A situação da mulher continuou progredindo após o fim da guerra e a morte de Khomeini, em 1989. No plano econômico, o rastro de inflação, desemprego e escassez de recursos pós-conflito compeliu o presidente Ali Akbar Hashemi Rafsanjani (1989-97) a restringir o crescimento demográfico. Graças a uma bem-sucedida política de planejamento familiar, a média de filhos por mulher despencou de 5,2 em 1986 para 1,6 em 2011.

Durante o governo Rafsanjani, a polícia moral se tornou menos agressiva. Em 1992 surgiu a revista “Zanan”, primeira publicação local para o público feminino.

A gradual abertura interna culminou com a eleição à Presidência do reformista Mohammad Khatami, em 1997. Iniciava a era dos véus coloridos, dos batons berrantes e das roupas mais justas. Plásticas no nariz e implantes de silicone viraram febre, e a idade mínima para que as mulheres se casassem subiu para 13 anos.

A época selou, ainda, o início da disseminação em larga escala das antenas parabólicas (ilegais, mas onipresentes) e da internet (acessada graças a programas que contornam os filtros do regime). Muitos recordam a euforia que contagiou setores da classe média devido à proliferação de shows, filmes e peças de teatro.

A então crescente sintonia com o mundo externo ajudou a dar voz ao movimento feminista. Em 2003, a juíza e militante de direitos humanos Shirin Ebadi ganhou o Nobel da Paz. Sob Khatami, mulheres acederam ao primeiro escalão do governo e, em 1998, a cientista política Zahra Rahnavard assumiu o comando da Universidade Alzahra de Teerã, tornando-se a primeira reitora da república islâmica.

RETROCESSO

Muitas conquistas retrocederam com a chegada de Ahmadinejad ao poder, em 2005. A guarda moral voltou a infernizar as moças. A revista “Zanan” foi banida. A Justiça, por sua vez, tornou a sentenciar morte por apedrejamento, no caso de Sakineh Ashtiani, acusada de adultério e cumplicidade no assassinato do marido. Sob pressão internacional, o Irã recuou da lapidação, mas manteve a mãe de dois filhos na prisão em situação indefinida.

Há duas semanas, o chefe da Comissão de Direitos Humanos do Irã, Mohammad-Javad Larijani, anunciou que Sakineh havia sido libertada por “bom comportamento”. O Comitê Internacional contra o Apedrejamento, ONG com sede na Europa, dá outra versão. A acusada teria sido solta após tentar se matar engolindo pregos. “Sua morte geraria uma pressão terrível contra o regime, que preferiu se livrar do incômodo”, disse à Folha uma fonte do comitê.

Mas o pior legado de Ahmadinejad quanto à mulher, segundo uma ilustre feminista, foi a paralisação da luta contra aquela que continua sendo a maior injustiça às iranianas: inferioridade perante a lei.

“Perdemos oito anos”, diz, por telefone, Sussan Tahmasebi, 47, radicada nos EUA. A exemplo de Shirin Ebadi -que se exilou no Reino Unido após a controversa reeleição de Ahmadinejad, em 2009-, Tahmasebi teve de sair do Irã após haver defendido mudanças na legislação.”Pessoalmente, culturalmente ou socialmente, as mulheres obtiveram avanços. Mas a lei está em defasagem gritante com a realidade”, lamenta Sussan.

No tribunal, o testemunho feminino ainda vale metade do masculino. O “preço do sangue”, indenização paga pela família de um assassino a parentes da vítima, também é inferior em caso de morte de mulher. A herança dos filhos é maior que a das filhas. Homens podem pedir divórcio com mais facilidade. A mãe tem chances mínimas de obter a guarda dos filhos.

Homens também são os principais beneficiados pelo “sigheh”, espécie de “casamento temporário” no qual o casal define um prazo de validade (que pode ser revogado se houver comum acordo e que vai de algumas horas a 99 anos), para tornar lícitas relações sexuais. O pacto, que não precisa ser registrado, supõe alguma compensação financeira à mulher. Enquanto um homem pode acumular vários “sighehs”, a mulher precisa esperar a expiração do acordo para emendar um segundo. Na prática, o dispositivo acaba sendo um artifício para maquiar prostituição.

Vulnerável nos tribunais, a iraniana carece de recursos para reagir a humilhações de todo tipo.

No ano passado, a Federação Iraniana de Natação se recusou a oficializar o recorde de Elham Asghari, que, embora coberta da cabeça aos pés por um traje preto, percorreu 20 km no mar Cáspio mais rápido que qualquer pessoa no país. A marca da atleta não foi registrada sob o pretexto de as formas de seu corpo terem ficado à mostra quando ela saiu da água.

Meses depois, autoridades impediram Nina Moradi de assumir a cadeira de vereadora para a qual fora eleita, no norte do país, alegando que sua beleza perturbaria o trabalho dos políticos locais.

SURPRESA

Para surpresa de muitos ocidentais, existem iranianas favoráveis à desigualdade. “Essas diferenças existem no Corão. Mulheres são seres emocionais, incapazes de tomar decisões de forma adequada”, argumenta a dona de casa Mansureh H., 47, que apoia a obrigatoriedade do véu.

A dona de casa é adepta do chador (barraca, em farsi), espécie de lençol que cobre da cabeça aos pés, deixando rosto e mãos à mostra. Nos meios mais jovens e liberais predomina o mais leve hijab, que cobre cabelo e pescoço.

Muitas iranianas têm visão oposta à de Mansureh e consideram que o véu constitui a mais contundente ferramenta do regime para controlar as mulheres.

“É um insulto à sabedoria e à personalidade da mulher. O fato de quererem decidir como me visto é terrível. Homens não vivem isso”, esbraveja a jornalista Afsaneh J., 33. “O véu restringe muito nossa vida. Imagine correr no parque de manhã usando isso na cabeça.”

Uma das mais conhecidas atrizes do cinema iraniano confidenciou, num jantar na casa de amigos em Teerã, ter recusado convites de Hollywood por causa do véu. “Quero continuar no Irã. Não posso aparecer em filmes nos quais sempre pedem para tirar o lenço e fazer cenas de romance.”

Parissa Porouchani, 56, que fundou e comanda o maior grupo de marketing no país, lamenta que o véu tenha se tornado uma “obsessão do Ocidente”.”Quando vou à Europa, detesto que me olhem com cara de coitada por ter de cobrir a cabeça em meu país. Ocidentais não entendem que temos problemas mais graves, como desemprego e temas políticos.”

Tanto Parissa como Setareh, a piloto de avião, dizem que o véu restringe o assédio. “Na época do xá, homens mexiam com as mulheres nas ruas ou no transporte público, assobiando ou passando a mão. Há que reconhecer que isso é raro hoje”, diz a empresária.

RESPALDO

Mudar o status legal da mulher exigiria respaldo concomitante de três das instâncias mais conservadoras do regime: o Poder Judiciário, o Parlamento e o Conselho de Guardiães da Revolução (grupo de 12 fiscais ideológicos). A julgar pela crescente pressão interna, a lei não mudará tão cedo.

A estudante e ativista pelos direitos da mulher Maryam Shafipour, 29, foi condenada no início de março a sete anos de prisão por “propaganda contra o Estado”. Maryam tem problemas de circulação, e sua saúde vem piorando na cadeia, segundo relato de parentes ao site reformista Kaleme.

O caso se parece ao da feminista Bahareh Hedayat, 32, presa desde 2010 pelo mesmo pretexto. O Judiciário mantém-se indiferente à campanha pela libertação das ativistas que buscam direitos iguais.

O cerco vai muito além da luta feminista. Execuções dispararam desde o fim do ano passado. Jornalistas voltaram a ser perseguidos. Presos políticos em liberdade condicional retornaram às celas.

A guinada é vista como demonstração de força dos inimigos de Rowhani no fragmentado tabuleiro da teocracia iraniana. Obrigados a engolir as concessões do presidente ao Ocidente na área nuclear, os ultraconservadores, influentes e numerosos, manobram para deixar claro quem manda em casa – inclusive na questão feminina.

Enquanto seus subordinados se digladiam, o aiatolá Ali Khamenei, chefe absoluto da teocracia iraniana, cultiva a ambiguidade. Mas, no discurso do Ano Novo persa, na semana passada, Khamenei disse que “cultura é mais importante que economia”. Em aparente sinal de apoio às facções contrárias à liberalização da sociedade, ele pediu às autoridades que combatam “brechas culturais perigosas”.

A feminista Tahmasebi reconhece as limitações de Rowhani. Mas aposta que o renascimento da sociedade civil pós-Ahmadinejad poderia criar um ambiente favorável a mudanças. “Se Rowhani aliviar a pressão do aparato de segurança sobre a população, aspirações das mulheres ressurgirão naturalmente. É compatível com o islã, basta interpretação mais progressista.” Aos obstáculos legais, soma-se uma resistência cultural machista, tão difusquanto profunda, que se manifesta de incontáveis formas.

Mulheres são as maiores vítimas da crise econômica dos últimos anos, decorrente das sanções ao programa nuclear e das políticas populistas de Ahmadinejad, que esvaziaram cofres públicos e acirraram a inflação. O desemprego feminino supera 20%, mais que o dobro do masculino. Por uma regra não dita, homens quase sempre recebem salários mais altos.

“Pelo fato de eu ser mulher, meus clientes querem pagar metade”, diz a advogada Elahe J., 37. “O modelo patriarcal está no sangue dos homens iranianos.”

Apesar da ausência de estatísticas a esse respeito, várias das entrevistadas para esta reportagem dizem ter notado que a violência contra a mulher está em alta.

M.J., a tradutora, culpa as mães, que “mimam demais os meninos”. Ela conta ter sido seduzida por um rapaz moderno e viajado, que terminou o flerte ao descobrir que ela havia tido uma vida amorosa antes dele. “Ele me disse que eu era independente demais.”

A secretária Mehri R., 27, casada, diz falar em nome de todas as iranianas: “Muitas de nós se destacam na sociedade e parecem ter o mesmo espaço que os homens. Mas, quando você ouve segredos íntimos dessas vencedoras, percebe que, no fundo, todas sofrem na sua condição de mulher”.

SAMY ADGHIRNI, 34, é correspondente da Folha em Teerã.

APU GOMES, 30, é repórter fotográfico da Folha.

BEL FALLEIROS, 31, é artista plástica.

Acesse o PDF: Realidade velada, por Samy Adghirni

 

 

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