(UOL, 27/06/2016) Uma van nos conduz do portão ao imponente Palácio da Alvorada, fincado no cerrado de Brasília. Subimos alguns lances de escada, entramos em uma sala de enorme pé-direito, colorida por uma tapeçaria do chileno Kennedy Bahia, ao lado do quadro “Colhendo Café”, de Djanira, sobre a parede de madeira. É ali, no ambiente mais acolhedor da sala, em um sofá branco ladeado de poltronas, que a presidente, afastada do cargo em 12 de maio passado até que o processo de impeachment seja julgado pelo Senado, tem dado entrevistas, a maioria delas para a imprensa internacional. A entrevista para a Agência Pública é a primeira concedida a um grupo de jornalistas mulheres.
Ela chega com meia hora de atraso, sorridente para além do protocolo. Dilma Rousseff e Vera Saavedra Durão –jornalista econômica tarimbada que compõe a equipe de entrevistadoras da Pública– se conhecem há exatos 50 anos, como constata a presidente, depois de checar com a amiga a data em que se conheceram: 1966. As duas mineiras já eram militantes de esquerda antes mesmo de se unirem à VAR-Palmares, a organização fundada em 1969 para travar a luta armada contra a ditadura militar (1964-1985).
Mas a conversa agora é sobre os netos da presidente, Gabriel e Guilherme. “Neto ainda é melhor, tem mais calma para olhar que filho. E nunca falaram para a gente que era importante ter filho, né, Vera?” Ambas riem, lembrando-se do tempo em que a revolução vinha em primeiro lugar.
“Eu lembro você de vestidinho rosa esperando a Paula”, diz Vera, referindo-se ao primeiro encontro das duas mulheres depois da prisão.
Elas foram companheiras de cela no final dos quase três anos que a presidente passou na cadeia, depois de apanhada pela Oban –Operação Bandeirante–, a unidade de tortura e aniquilação de presos políticos do 2º Exército, em São Paulo. Nenhuma das duas jamais imaginou naquele tempo que uma delas seria presidente nem que se veriam mais uma vez em um momento dramático para o país, com Dilma no centro da crise.
A votação do impeachment pelo Senado, com tendência desfavorável à presidente, deve ocorrer em agosto próximo.
Dilma ainda não decidiu se vai se defender pessoalmente diante dos senadores. “Sou do tipo de gente que avalia”, disse no final de uma entrevista franca e explosiva, com 1 hora e 52 minutos de duração. Ela garante que vai continuar lutando pela Presidência do Brasil, conquistada pela primeira vez por uma mulher: “Eles ainda não me tiraram não, eu continuo sendo presidenta”, avisa.
O que significa sair do isolamento imposto pela equipe do atual presidente interino e seu vice, Michel Temer, que chegou a cortar o “cartão-alimentação” usado para suprir o Palácio da Alvorada e negou o custeio de viagens para outros destinos além de Porto Alegre, onde mora sua filha, e Belo Horizonte, sua terra natal.
Nos próximos dias, Dilma lança um crowdfunding –a vaquinha virtual– pelo site Catarse, popular entre músicos, cineastas, jornalistas e ONGs que buscam arrecadar dinheiro para seus projetos. Dessa maneira a presidente e sua equipe pretendem mobilizar seus apoiadores e pagar os custos das viagens para cruzar o país em defesa de sua permanência no governo.
Nesta entrevista exclusiva para a Pública, ela refaz sua trajetória, explica por que se considera vítima de um golpe, fala o que pensa das forças políticas do país e do que esse “golpe parlamentar”, nas palavras dela, representa para a democracia da América Latina. Responde também a perguntas sobre questões polêmicas como aborto, hidrelétrica de Belo Monte e recentes acontecimentos da Lava Jato.
Vera Durão: Queria saber de você como a ideia de se tornar presidente da República tomou corpo na sua cabeça. Foi uma sugestão do Lula ou você também tinha essa pretensão?
Dilma Rousseff: Ô Vera, é assim quase público e notório que eu não tinha a menor pretensão de ser presidenta, tampouco de concorrer a nenhum cargo eletivo naquele então. Foi assim uma coisa “espontânea muito pressionada” –conhece “espontânea muito pressionada”? [risos] Foi isso o que aconteceu.
Vera Durão: Você se sentiu na obrigação de aceitar?
Dilma: Acho que não aceitar é correr da raia, é coisa muito importante para se recusar. E, tendo feito tudo o que fiz no governo dele, era não dar sequência ao que a gente vinha fazendo. Porque, na prática, quando assumi a chefia da Casa Civil, em 2005, eu coordenei o governo. De junho de 2005 em diante. Então, todos esses programas eu vi nascer, participei da formatação, tanto os que ocorreram no governo dele como as decorrências de todo esse processo no meu governo. É uma continuidade.
Vera Durão: E como foi isso na sua cabeça, quando ele te propôs [ser candidata a presidente]?
Dilma: Ah, Vera, eu nem lembro, minha querida. Isso faz parte de outro mundo, de outra época.
Vera Durão: Você se sentiu segura ou achou mais que era uma questão de obrigação?
Dilma: Não teve essas interrogações assim existenciais não.
Vera Durão: Nem do ponto de vista de [ser] mulher?
Dilma: Não. Não era esse o problema. A questão não era essa.
Natalia Viana: E quando foi que a senhora sentiu que queria fazer o seu governo?
Dilma: Uai, desde o início. Não tem como. Agora, todo governo é um governo de equipe, de projeto. Ninguém é um indivíduo solto no governo. Você tem um projeto, você tem um conjunto de propostas, você tem um grupo de pessoas. Não tem como chegar em um governo e ser sozinho na vida. É óbvio que é uma praxe política falar “olha, é o governo do fulano”, mas é o governo de uma equipe, dum projeto, duma proposta.
Natalia Viana: E a senhora pensou que era importante ter a marca de ser o governo de uma mulher?
Dilma: Isso é claro. Tanto é que acho que o transformador nessa história é que era o governo de um metalúrgico, trabalhador, operário, ou seja, da senzala –se você fizer aquela imagem clássica do Gilberto Freyre, Casa-grande & Senzala–, era o primeiro governo que não era do andar de cima, isso do ponto de vista do governo dele; e, no meu caso, era candidata a ser a primeira mulher presidente da República.
Vera Durão: Esse argumento foi usado pelo Lula para te convencer?
Dilma: Não. Ele tinha isso muito forte, ele propunha isso. Mas não se trata de achar que era só uma questão de alguém pegar um bom argumento para me convencer. Não era essa questão. Não pode ser. Se fosse isso, seria algo muito superficial. É ter um conjunto de razões, sendo que essa é uma delas –e essa é importante. Porque ser o primeiro governo de uma mulher no Brasil, um país que diz que não tem nenhum preconceito contra a mulher, mas está eivado de preconceitos, era algo muito importante. Obviamente, guardando as devidas proporções, porque acho que o preconceito contra a mulher é completamente diferente do preconceito contra os trabalhadores, as pessoas de segmentos sociais mais pobres. Contra a mulher é outro preconceito porque passa por uma porção de estereótipos que se tem sobre a mulher. Por exemplo: mulher não pode ser firme, tem que ser dura. Mulher tem que ser ríspida, não pode ser uma pessoa que tem posição. Mulher não é afeita a coisas públicas –e aí aquela frase reiterada sobre mim, da minha “imensa dificuldade de lidar com os políticos”, como se [eles] fossem a coisa pública, ou como se alguma dificuldade de se lidar com os políticos não derive, em alguns momentos, da crise de valores que a política no Brasil atravessa. E outras coisas que tais: mulher tem necessariamente de ser frágil. Se ela não for frágil, ou ela está tendo um ataque de loucura, não está no pleno exercício da sua condição racional, ou você, de uma certa forma, está alienada. Eu cheguei a dizer que eu era uma mulher dura no meio de homens meigos, imensamente meigos, tudo muito meigo, muito doce.
Eu cheguei a dizer que eu era uma mulher dura no meio de homens meigos, imensamente meigos, tudo muito meigo, muito doce
Marina Amaral: A senhora já tinha poder no governo Lula. A senhora sentiu alguma mudança quando virou presidente, no modo como era tratada pelos políticos?
Dilma: Não. Não, em termos. Nunca tinha havido uma chefe da Casa Civil, o segundo cargo mais importante, que funciona como uma variante de uma chefia de gabinete no sentido de estrutura de gestão. Mas também nunca tinha havido uma ministra de Minas e Energia, nem nunca tinha havido uma secretária de Fazenda do município de Porto Alegre. Ainda no período do [governo do] Fernando Henrique Cardoso, fui secretária de Minas, Energia e Comunicações do Rio Grande do Sul. Só tinha eu de mulher. E se tem uma coisa em que o debate é muito técnico é aquele, não é propriamente coisa de mulher, entre aspas. Eu acho que é uma coisa de mulheres, não tem área interditada pelo fato de você ser mulher. Você ser sozinha enquanto gênero em qualquer lugar já mostra um “estranhamento” cá para nós –vamos chamar de estranhamento. Já mostra que tem algumas dificuldades da sociedade em lidar com fatos pioneiros. Agora, ser presidente é um passo além, e nesse sentido há diferença, sim, pois é uma autoridade que é mais inequívoca do ponto de vista em que ela é mais geral. Há, sem sombra de dúvidas, uma visão que em alguns momentos você percebe. Ontem, eu estava conversando com uma cineasta que me disse que, quando ela conseguiu ganhar um certo prêmio, ela achou que tinha ultrapassado o limiar do preconceito para descobrir logo na sequência que esse limiar do preconceito estava bastante bem armado contra ela. Porque na hora do prêmio, o olhar não era para ela, era para a parte masculina da produção. E ela perguntou isso para mim: como é que foi isso com o governo? Eu disse para ela: quando você é presidente, essa discussão sequer é levantada, porque a caneta é sua. A tua autoridade não é passível de contestação. Isso é muito grave.
Natalia Viana: Algo surpreendeu a senhora no tratamento da imprensa ou dos políticos?
Dilma: Da imprensa eu passo surpresa todos os dias, passei surpresa desde o início do meu mandato, não só por ser mulher, mas também pelo projeto que eu represento. Eu não sou propriamente uma pessoa cujos aspectos positivos são realçados.
Andrea Dip: A ONU chegou a soltar uma nota em repúdio à violência de gênero com que a imprensa estava tratando a senhora, principalmente durante o processo de impeachment.
Dilma: Eu acredito que tenha isso, mas a violência não começou agora, a não ser que a gente esqueça o passado. A violência está no fato de que tem uma história sobre mim. Uma vez um repórter falou assim para mim: “Mas então você é normal!”. Ou seja, se eu ando de bicicleta, eu sou normal. Outro dia me perguntaram se eu dormia de sapato. Sabe as histórias que diziam que a gente, na clandestinidade, dormia de sapato, e eram verdade? A gente dormia de sapato para fugir. Eu sou presidenta da República, como é que vou dormir de sapatos? Para fugir? Você entende? Tem estereótipo atrás de estereótipo.
Outro dia me perguntaram se eu dormia de sapato. Sabe as histórias que diziam que a gente, na clandestinidade, dormia de sapato, e eram verdade? A gente dormia de sapato para fugir. Eu sou presidenta da República, como é que vou dormir de sapatos? Para fugir?
Vera Durão: Você acha que o fato da gente ter militado do jeito que militamos –luta armada, clandestinidade–, isso não te deu –a mim me deu, como mulher– uma grande independência e condição natural de conviver com os homens?
Dilma: Eu acho, Vera, que naquela época a questão de gênero, assim como a questão racial e do meio ambiente, não eram pautas. Estamos falando do final da década de 60, início da de 70. A questão de gênero, a questão da homossexualidade, a questão dos transexuais, enfim, um conjunto de questões que hoje são triviais entre nós… O que eu acho que faz é o fato de que sua experiência política como pessoa, e aí, como mulher, você adquire uma capacidade bastante grande de enfrentar dificuldade e lidar com situações anômalas. E eu sempre digo que prefiro que as pessoas adquiram isso em outros momentos da vida e não na cadeia; não é necessário passar pela cadeia para adquirir isso, nem pela clandestinidade [risos]. Agora, isso faz parte da história da gente, do que enfrentamos na vida.
Marina Amaral: Na entrevista que a senhora deu ao Luís Nassif, parece que a senhora traça um roteiro do que resultaria no impeachment, os sinais que foi percebendo. Por exemplo, a senhora diz que foi estranho o momento em que ocorreram as manifestações de junho de 2013, que era um momento em que a senhora estava tentando estabilizar a economia, alavancar o investimento a longo prazo, baixar os juros –já estava enfrentando uma pressão dos empresários–, e naquele momento acontecem as manifestações de junho.
Dilma: É que eu acho que ali, nas manifestações de junho, a razão é uma outra razão. Porque ali você não está em uma situação de crise econômica. O que aconteceu em junho de 2013? Quando você conquista direitos, isso não significa que as pessoas se sentem de uma certa forma contempladas inteiramente. Pelo contrário, a conquista de um direito abre espaço para a conquista de outros direitos. Por isso que a gente dizia: a superação da pobreza é só um começo. Ela não é o fim de nada, ela inicia. E o que a gente levantava é que, para um Estado excludente, como foi sempre o Estado brasileiro, porque era parte de uma sociedade excludente, de uma economia excludente, é mais fácil o processo no qual você transfere renda. Quando você transfere renda, é uma decisão política; é óbvio que você tem que fazer um bom programa. Eu não estou diminuindo o inusitado e até revolucionário que é o Bolsa Família. É uma grande conquista, mas, assim que você faz isso ser massivo, as pessoas querem acesso a serviços de qualidade, querem serviços de educação de qualidade, querem segurança pública de qualidade. A reivindicação implica uma mudança do Estado, que tem um tempo de maturação maior. Há um conflito, então, visível entre a rapidez com que o ganho de renda se dá e a rapidez com que o ganho de serviços ocorre. O ganho na área de serviços é mais lento. Daí a inconformidade também. Ao mesmo tempo, eu acho que esse é um processo, também, que começa com um descontentamento, um mal-estar com a política, com a representação política. Não sei se vocês se lembram, em muitas manifestações, quando era positivo para uma pessoa, diziam: “Me representa! Me representa!”. Eu acho que já naquele momento, não da forma aberta como a partir de um determinado momento começou a ocorrer, aí também por conta das investigações de corrupção, mas começa a ocorrer um mal-estar com esse sistema de representação, que não é só típico do Brasil, esse mal-estar com a representação se dá em relação ao mundo todo. Mesmo considerando que o nosso governo sempre teve uma pauta, e agora isso vai ficar bem nítido, de participação popular. O Brexit, falando de hoje, explica um pouco o que acontece. Da direita à esquerda, viu?
Há um conflito, então, visível entre a rapidez com que o ganho de renda se dá e a rapidez com que o ganho de serviços ocorre. O ganho na área de serviços é mais lento. Daí a inconformidade também.
Marina Amaral: Só para terminar o assunto das manifestações. Talvez tenha sido imaginação minha, mas tive a impressão que a senhora estava dizendo que, além disso daí, a senhora viu algum tipo de orquestração? O surgimento da direita, por exemplo, que começou a aparecer no final dos protestos de junho… Surgiu alguma dica para o governo de que estava tendo uma manifestação da direita?
Dilma: Não. Eu não acho que aquilo ali foi uma manifestação da direita. Eu não acho, realmente. Não acho que esteja ali o fulcro dos movimentos de direita, não acho. Acho que o fulcro dos movimentos de direita está em… Antes da crise havia já uma certa oposição a repartir privilégios no Brasil. Acho que este componente, diante da crise, radicaliza a classe média. E faz com que valores de direita sejam muito dominantes. Olha a pauta das manifestações pró-impeachment, e não é porque é pró-impeachment, mas olha as pautas delas.
Mas o que eu quero dizer é que, nesse processo e nessas manifestações pró-impeachment, para mim, o setor que mais perdeu foi o setor da oposição que tradicionalmente tinha um projeto, que é o PSDB. Acho que o PSDB cometeu um gravíssimo equívoco político. Primeiro perdeu a cara porque endireitou. Mas endireitou não só do ponto de vista dos projetos econômicos ou políticos. Endireitou do ponto de vista dos valores. Se misturou no movimento e deu força a ele. E estimulou, organizou e propôs um movimento que era baseado em algumas questões inadmissíveis. Como é que [o PSDB] se mistura com um [movimento] que defende o golpe militar? Como é que é possível tratar de uma situação em que os direitos individuais e coletivos mais básicos são desrespeitados? Então eu acho que criou naquele momento, nessa transação do impeachment, uma situação muito ruim. Por quê? Porque isso foi orquestrado, querida. Como foi orquestrado? Foi orquestrado logo depois da minha eleição. Não é lá em 2013. A minha eleição é uma eleição extremamente conflitiva. Ultraconflituada. Nunca houve uma eleição no Brasil com aquele perfil. Acaba a eleição, eles pedem recontagem de voto, coisa que no Brasil não se via há séculos. Pedem auditoria na urna eletrônica. As duas coisas não se verificando, eles começam a tentar impedir a minha diplomação. Depois disso, apoiam a ida para a presidência da Câmara do senhor Eduardo Cunha, que tem uma pauta eminentemente de direita. E que faz, talvez, o processo mais grave no Brasil, que foi tornar o centro hegemonizado pela direita, rompendo com uma tradição centro-democrática que vem desde a redemocratização, com Ulysses Guimarães, a Constituinte, em que um dos protagonistas importantes foi o centro democrático no Brasil. O PMDB, o velho MDB, né?
Mas o que eu quero dizer é que, nesse processo e nessas manifestações pró-impeachment, para mim, o setor que mais perdeu foi o setor da oposição que tradicionalmente tinha um projeto, que é o PSDB. Acho que o PSDB cometeu um gravíssimo equívoco político. Primeiro perdeu a cara porque endireitou
Dilma: Ele dá essa guinada quando o Cunha assume a hegemonia dele. Porque ele teve a hegemonia. E essa hegemonia está expressa no governo do Michel Temer. Ele é Cunha. O Jucá não mente quando diz que Michel é Cunha. Um dos grandes problemas desse governo é esconder o Cunha. Porque o Cunha não é uma pessoa lateral deles. Ele é o líder deles. Líder em todos os sentidos.
Marina Amaral: Do PMDB inteiro ou líder da direita?
Dilma: Estou falando deste grupo que está no poder, este grupo que está no poder não é todo o PMDB, não é. Você tem gente no PMDB… Você tem o Requião no PMDB, o próprio Renan. Você tem pessoas das mais diferentes. Agora, este grupo que hoje é do governo Temer é o grupo hegemonizado pelo Cunha. A proposta dele não é surpresa. O Cunha, vocês sabem –vocês são da imprensa, vocês acompanham –, qual é a pauta do Cunha. E as pautas-bomba que eles nos impunham é para criar o caldo para o golpe. Qual é a pauta-bomba? Bloqueia o governo. Nós não só não conseguimos aprovar as nossas pautas, como eles apelam para a mais lamentável demagogia, passando pautas que inviabilizam o país. Teve um momento em que, caso aprovasse, seriam R$ 200 bilhões. Depois, mais recentemente, chegou a R$ 400 bilhões. Então, não só não aprova o que você manda, como também cria um nível de obstáculo para o exercício da atividade governamental. E é engraçado, que tem, para mim, uma característica muito interessante nas críticas desse governo, que são assim, ó: o que esse governo faz? Primeiro, ele denuncia projetos que não existem.
Repórteres: Como assim?
Dilma: Na política externa: “Vou impedir a ideologização que o Brasil faz”. Então denuncia coisa que não existe. E a imprensa apoia. Segundo: critica medidas que nunca estiveram na pauta. Quando é que eles são óbvios? Quando, você pode olhar, toda vez que eles falam o que pensam, são obrigados a voltar atrás. Porque não está no tempo ainda de mostrar todas as garras. Esperemos passar a discussão do impeachment e eleição, aí mostraremos todas as garras. Agora, uma garra feíssima já foi mostrada, né? É essa do teto de gastos. Para gente ter uma ideia, no caso da educação, eu estou falando dos valores, na educação se gastou mais ou menos R$ 101 bilhões [no ano], se não me engano. A viger esse pacto, nós teríamos gasto este ano 35 [bilhões] só. Então vejam o que vai significar isso para o futuro. Porque o raciocínio é simples: você corrige o gasto de educação pela inflação; aí aumentam as pessoas [estudando], e o gasto está só corrigido pela inflação, o que acontece? Do ponto de vista real, diminui o gasto por pessoa! Óbvio! Além disso, faz isso mais quatro governos e mais esses dois anos, ou seja, quatro governos estarão impedidos de exercer o direito político do orçamento.
Natalia Viana: Presidente, e em termos dos interesses econômicos? Por exemplo, qual foi o peso do pré-sal na articulação pelo seu impeachment?
Dilma: Olha, eu acho que todas as riquezas do Brasil têm peso. O pré-sal tem um peso muito especial. O que está na questão do pré-sal? Não é a participação do setor privado. Por quê? Porque ele participa do pré-sal. Vamos olhar o leilão de Libra, que é o único campo do pré-sal integral, não tem nenhum outro. Então vamos olhar a prova material. Quem é que participa de Libra? Participam de Libra quatro empresas privadas: Shell, que é uma grande empresa; Total, que é uma empresa francesa grande – não é uma major, mas é uma quase major –; duas chinesas, a CNOOC e a CNPC. É bom lembrar que os maiores compradores de petróleo do mundo são os chineses. O controle da distribuição do petróleo está na mão dos chineses. Daí porque qualquer grande empresa privada internacional gosta da parceria com os chineses. Para a gente não ser otário e ficar achando que a presença de chinês é algo terrível, como diziam umas pessoas do Rio de Janeiro.
Natalia Viana: Mas aquela modificação proposta pela senhora…
Dilma: Não, mas aí o que é o problema? Não é a presença [dos estrangeiros]. O problema é o seguinte: são dois regimes, o de concessão e o de partilha. O regime de concessão se caracteriza pelo fato de que quem achar o petróleo é dono do petróleo. Se achou o petróleo, qualquer empresa – da Petrobras a qualquer uma – achou, no Brasil, ele é dono da jazida. Por que isso? O risco de não achar é muito alto. Muitas empresas, inclusive pequenas, quebram porque não acham. E aí, gastou 20 milhões, 30 milhões, até 100 milhões de dólares para prospectar. Bom, o que acontece no Brasil? No pós-sal, o nosso petróleo era difícil de achar, implicava riscos, era com grande teor de enxofre, com uma coisa que chama API – uma forma de medir a qualidade do petróleo – muito baixo, 14, 15 graus API. E, além disso, em muitos lugares [encontrava-se] pouco petróleo. Não eram grandes campos. Então não era muito petróleo, a qualidade não era muito boa e com um risco elevado. Modelo de concessão correto porque quem achou leva a parte do leão, o petróleo. Que faz com que você tenha um lucro bastante razoável.
Como é o pré-sal? O pré-sal foi descoberto por prospecção, exploração e pesquisa da Petrobras. Foi demarcada uma poligonal e nós sabemos que o grosso está lá dentro dessa poligonal. Nós sabemos que é de muito boa qualidade e que é muito. Então o petróleo do pré-sal é completamente diferente do pós-sal. Então o modelo do pré-sal é de partilha por quê? Pra quem fica a parte do leão, ou seja, o petróleo? Fica pro dono dele. Quem é o dono? A União. E as empresas privadas ficam com uma parte. Pra você ter uma ideia, mais ou menos, eu vou falar entre 75% a 80% para a União e o restante…
Vera Durão: Para as privadas?
Dilma: Não é para as privadas, não, para a dona, Petrobras inclusa. Por isso que eu falo 70% a 75%, porque, se você botar a Petrobras junto com a União, aí dá uns 80% para o país. Agora, pergunto a você, o que leva quatro grandes empresas internacionais a virem aqui e pagarem 20 bilhões sabendo que a regra é essa? Muito petróleo, a certeza de que vai achar, da qualidade e do lucro, portanto. Então, o que estão querendo fazer é um absurdo. Alterar o regime de partilha é, de fato, um absurdo. Esse pode ser um dos elementos que eles jamais conseguiriam num processo eleitoral com discussão com a população – convencer a população de que isso era bom para o país. Portanto, através da eleição, eles não iriam conseguir a aprovação disso. Agora, acho que essa é uma questão. Eles também vão reduzir a saúde, acabar com o Minha Casa, Minha Vida. Já acabaram! Porque acabaram já com a faixa 1. A faixa 1 é a faixa pobre do Oiapoque ao Chuí.
Vera Durão: Dilma, você acha que a maldição do petróleo também passou aí pelo processo que levou ao seu afastamento?
Dilma: O que eu acho grave no Brasil nessa área é… Eu sou a favor – inclusive tenho sido acusada, uma das causas do meu impeachment é o fato de que o meu governo foi favorável, o meu governo não impediu investigação de corrupção. Nós somos completamente favoráveis a isso. Agora, também sempre deixamos claro que, quando você combate a corrupção, você não pode destruir nem as empresas nem os empregos. Assim como se faz no resto do mundo. Os Estados Unidos tiveram recentemente, junto com o resto do mundo, talvez o maior processo de corrupção que foi os bancos, os seus derivativos, e todos os processos que levaram a perdas astronômicas.
Vera Durão: A crise de 2008.
Dilma: Isso, a crise de 2008. Eles não destruíram os bancos. O que eles fizeram? Cobraram multas elevadas, puniram os executivos e não destruíram os bancos. O que no Brasil poderia se fazer também: multa, prende os executivos, mas não destrói as empresas. Não impeça que elas tenham crédito. Não faça com que elas destruam seus empregos. Por que eu estou falando nisso nessa altura? Porque a cadeia de petróleo e gás é muito importante para o crescimento do Produto Interno Bruto do Brasil. Ela gera emprego, se calcula que ela responda entre 1 e 2 pontos percentuais do PIB. Então atirar na cadeia de petróleo e gás é atirar no PIB do país.
Vera Durão: Tem um efeito cascata gigante.
Dilma: Violento. Que é outra explicação da crise também.
Marina Amaral: A esquerda citou muito o pré-sal durante a articulação do impeachment. Falou-se que havia influências estrangeiras nessa tentativa de derrubar a senhora do poder e que isso estaria associado ao pré-sal. A gente vê que o projeto de alteração do pré-sal é do senador José Serra, que assumiu o Ministério das Relações Exteriores. A senhora vê alguma relação nisso ou a senhora acha que é pura especulação?
Dilma: Eu repito para você: eu acho que eles jamais conseguiriam fazer com o pré-sal o que pretendem sem ser através de métodos absolutamente fraudulentos e golpistas. Por eleição direta não fariam. E eles não ganham eleição direta há muitos anos. Então, eu acho que tentaram encurtar o caminho. Agora eu tenho dito o seguinte. Falo muito com a imprensa estrangeira e muitos [jornalistas] me perguntam: tem influência externa no golpe? Eu quero te dizer o seguinte: não é necessário para discutir o golpe no Brasil atribuir responsabilidade a nenhum outro país do mundo. Nós fomos competentes na arte de dar um golpe aqui no Brasil. Nós não precisamos deles para nós fazermos golpe. Este golpe é endógeno. A responsabilidade por ele é das oligarquias locais. Pode ter gente muito feliz – é outra coisa. Pode ter gente até que deu uma mãozinha – é outra coisa. Mas não é relevante.
Andrea Dip: Presidente, vou mudar um pouquinho de assunto. Em suas campanhas, a senhora visitou vários templos evangélicos. Mas a bancada evangélica foi a que mais barrou projetos, inclusive do próprio PT, como a cartilha anti-homofobia, a discussão de gênero nas escolas, se opôs à lei que criminalizaria a homofobia e aos avanços das políticas relacionadas aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Durante o processo do impeachment, esses deputados da bancada evangélica e alguns pastores televisivos foram dos que mais atacaram a senhora de forma mais violenta. A senhora acha que valeu a pena fazer essa aliança?
Dilma: Acho fundamental que se abra essa discussão com eles. Você não vire as costas para 30% do país. Não faça isso. Nós temos que discutir com os evangélicos, falar com eles, porque eu também não acredito na uniformidade deles.
Marina Amaral: Nem todos são liderados pelo Cunha…
Dilma: Não, e não é isso. Eu acho que nem todos têm uma visão tão fechada.
Andrea Dip: Mas a bancada evangélica sim…
Dilma: Isso é outra coisa. Isso é a representação deles. Agora, pelo fato de a representação de segmentos do Brasil ser ruim, eu não vou deixar de falar com eles.
Vera Durão: Sim, mas você não deixou de falar com eles. Você fez uma aliança política com eles.
Dilma: Eu não fiz, não. Eu não fiz aliança nenhuma com eles. Aliança, como assim?
Vera Durão: De te apoiarem.
Dilma: Me apoiaram, mas nunca discutiram o que eu podia falar e o que eu não podia falar. Agora, eu acho que é fundamental que você converse com os evangélicos. Fundamental. No Rio de Janeiro, isso é decisivo, por exemplo. Vou falar isso porque eu acho isso grave: não acho que é possível a gente demonizar uma religião. Não é correto.
Andrea Dip: Mas em termos de políticas públicas, projetos de lei…
Dilma: Pois é, minha querida, mas eu vou continuar indo em templo evangélico sempre que me convidarem.
Marina Amaral: Mas a aliança com os evangélicos não barra determinados avanços?
Dilma: Não. Depende do que você para fazer aliança com os evangélicos aceita.
Andrea Dip: Eu vou aproveitar esse gancho e…
Dilma: Agora veja bem, querida, presidente da República não interfere em algumas coisas. Vou te antecipar, vou falar de aborto. O que nós podemos fazer no caso de aborto? Vou falar de aborto. Aborto legal nesse país está na lei. A lei é a seguinte, a lei é clara, você pode ter aborto em três casos: quando há estupro contra a mulher, quando a mulher corre risco de vida no parto e feto anencéfalo. São três casos. O que vocês estão perguntando é o seguinte: por que eu não criei mais três? O cumprimento desses três nós colocamos no SUS.
Andrea Dip: Não, é se a senhora é a favor da descriminalização do aborto.
Dilma: Eu pessoalmente posso ser a favor de tudo. Como presidenta, eu não interfiro nisso.
Natalia Viana: Mas a senhora pessoalmente é a favor?
Dilma: Não vou te responder isso. O dia em que eu sair da Presidência, eu te respondo. E eles não me tiraram, não. Eu continuo sendo presidenta. Assim como eu não posso declinar aqui que eu sou A, B, C ou D em relação a qualquer religião. Eu não posso fazer isso.
Andrea Dip: Mas a senhora não acha que seria bom…
Dilma: Para vocês pode ser ótimo. Para o exercício da Presidência, é péssimo. Querida, a hora que eu aceitar isso, eu aceito que aquela mulher que entrou lá na Secretaria [Fátima Pelaes, atual titular da Secretaria das Mulheres] chegue e fale: sou contra ter direito ao aborto por estupro. A gente que é servidor público cumpre a lei. Se a lei é ruim, nós temos de mudar a lei. Servidor público faz isso, não fica falando “eu acho isso” ou “eu acho aquilo”. Assim como eu fui contra o que ela falou, porque ela não pode falar aquilo. Não é algo que ela possa discutir. A lei é clara.
Andrea Dip: Mas não é uma questão de saúde pública, já que tem mais de 800 mil abortos por ano?
Dilma: A saúde pública garantida no governo são esses três pontos. Se eu estiver fora do governo e for feminista, eu luto por outras coisas, viu? Agora, eu fui feminista, tá?
Andrea Dip: No passado, presidente?
Dilma: Eu fui da Ação da Mulher Trabalhista, querida.
Vera Durão: Do PDT?
Dilma: Não, mas nós éramos a favor de cada coisa do arco da velha… [risos]
Andrea Dip: Mas não é mais feminista?
Dilma: Eu fui feminista. Hoje eu sou presidenta.
Marina Amaral: Mas a senhora diria “eu fui de esquerda”?
Dilma: Eu não entro nesse tipo de questão nem que a vaca tussa. Não tirei direitos dos trabalhadores, não tirei férias, não tirei nada, querida. Agora, eu não faço a política. A de saúde pública é garantir que o SUS, que é o nosso Sistema Único de Saúde, cumpra o que não cumpria. E até hoje tem resistência. Ou seja, não vamos achar aqui que é um passeio cumprir os três itens [do aborto legal]. Vocês não têm ideia.
Natalia Viana: Presidente, ontem foi preso, em um desdobramento da Lava Jato, o Paulo Bernardo, que foi ministro no seu governo, acusado de um superfaturamento de 100 milhões pela empresa de tecnologia que geria sistema de crédito consignado a funcionários. Diz a PF que o dinheiro seria usado para caixa 2 do PT. Por outro lado, o Marcelo Odebrecht assinalou que…
Dilma: Querida, posso te falar uma coisa? Eu não sei no que vai dar. E nem o que está em processo na prisão do Paulo Bernardo. Então, você vai me desculpar, mas você não vai querer que eu faça uma avaliação sobre coisas que estão sob investigação da Justiça. Agora, acho estarrecedor me perguntar sobre o Marcelo Odebrecht, que nem concluiu a sua delação premiada. Tirante a hipótese de que o seu jornal – e aqui eu vou engrossar – tenha uma escuta dentro da cela, ou do lugar onde ele está fazendo a delação, vocês não têm o direito de me perguntar nada.
Natalia Viana: Na verdade, a pergunta não era em relação a isso.
Dilma: Eu tenho imensa indignação com esse tipo de uso político das investigações da Lava Jato. Uso político.
Natalia Viana: A pergunta era se a senhora acredita que essas revelações afetam suas chances no impeachment.
Dilma: Não, minha querida. Eu acho que eu estou em um nível de vacinação absoluta contra isso. Isso tem sido feito sistematicamente contra mim. Sistematicamente. A última que arquivaram foi aquela em que quase caiu o mundo na minha cabeça porque eu liguei para o Lula e falei: “Vou mandar aí o Bessias”. Agora foi arquivado. Agora, o pato que eu pago enquanto não está arquivado é imenso. E eu me recuso a discutir Marcelo Odebrecht numa delação que nem acabou. Tem vazamento daquilo que não foi feito, tem vazamento… e tudo seletivo. Primeiro vaza eu e fazem um escândalo com isso. E depois aparece o resto. Como que fica? Não sei o que que é o Paulo Bernardo, tem um ano essa investigação, não sei por que prenderam hoje, não tenho a menor ideia… Ele estava fugindo? Preventiva tem de ter motivo. Eu me recuso a dar elementos para um tipo de praxe que a imprensa brasileira está tendo de uso seletivo. Porque a tese era a seguinte: tinha um único partido no Brasil que tinha corrupção. O que se vê é que não é isso que está acontecendo.
Vera Durão: Sérgio Machado disse que é desde 1946.
Dilma: É. O Sérgio Machado deve ser um experiente conhecedor disso. Bom, o que estou dizendo é que não vou compactuar com isso. E comigo é sistemático. Até o ponto do meu cabelo. Eu perdi a paciência no dia do meu cabelo [Merval Pereira, do Jornal O Globo, veiculou em sua coluna que Dilma teria usado dinheiro da refinaria de Pasadena para pagar itens pessoais].
Vera Durão: Você já tomou as devidas providências?
Dilma: Todas. Eu vou processar criminalmente. O dia em que eu processar vai sair na imprensa. Mas eu vou.
Marina Amaral: Tenho uma pergunta sobre outra polêmica, que é Belo Monte. Eu conheço a defesa que a senhora faz da obra, da necessidade, inclusive, energética do Brasil. Eu queria saber se essa visão de desenvolvimento na Amazônia não foi modificada pelas conferências internacionais, por um mundo em que você tem como maior ameaça futura o aquecimento global. Esse tipo de debate não tornou ultrapassado, olhar pra a Amazônia como uma fronteira de desenvolvimento?
Dilma: Nós não olhamos para a Amazônia como uma fronteira de desenvolvimento. Nós utilizamos os recursos que podem ser utilizados mantendo a preservação do meio ambiente.
Marina Amaral: Mas em Belo Monte…
Dilma: Nós preservamos o meio ambiente. O problema da Amazônia, de Belo Monte, não é esse. O problema de Belo Monte é o seguinte: tem um problema seríssimo no clima. Sabe qual é? O problema no clima será sempre energia. O problema do mundo, em relação ao clima, é energia. No nosso caso, nós temos algumas vantagens. Porque nós ainda temos o problema de acabar com o desmatamento, como replantar, como conter e fazer agricultura de baixo carbono e etc. E [a energia hidrelétrica] dá uma grande margem para o Brasil. Somado ao fato de que nós temos recursos hídricos. O que é que entrava todos os países do mundo? Eles não têm. Ou usa nuclear ou usa térmica. Então acho que há uma visão completamente incorreta sobre as hidrelétricas.
Uma coisa é o fato de que se fazia hidrelétrica e não se olhava as repercussões sobre as populações atingidas. Isso é uma coisa. Não se olhava a melhor forma de se fazer com o mínimo de impacto ambiental. Porque, se você não tiver Belo Monte, tem de ter o equivalente de Belo Monte de alguma coisa. De [energia] solar não é, porque é absurdo o preço. A não ser que descubram alguma tecnologia mais avançada, você não paga. Eólica é inviável, você não segura, não tem como. Ela não é uma energia que eles chamam de firme.
Nós somos respeitados internacionalmente, ao contrário do que dizem. Essa Conferência de Paris [COP-21, realizada em dezembro de 2015] não existiria sem nós. Eles reconhecem. O Obama me liga para agradecer. Não sai no jornal, óbvio, nós sabemos por quê. Mas o Brasil tem respeito porque tem uma política que é consistente. Nós só temos 3% de térmica e nuclear. A alternativa é essa. Parou com hidrelétrica vai fazer nuclear.
Marina Amaral: Mas não deveria haver uma garantia pelo menos de o governo ser mais protetor, em vez de deixar aquela população nas mãos das grandes empresas? Por exemplo, a Globo mostrou recentemente uma reportagem sobre a situação de Altamira [município onde foi construída a usina de Belo Monte], que, independentemente da implicância política da Globo com o governo, mostra o esgoto desembocando dentro da…
Dilma: Posso te falar uma coisa? Uma das coisas mais difíceis do Brasil é fazer saneamento.
Marina Amaral: Mas e a contrapartida da empresa? O governo não deveria cobrar o consórcio responsável?
Dilma: Querida, não foi só a contrapartida da empresa. Uma parte de qualquer esgoto no Brasil tem responsabilidade constitucional do município e do estado. Não é da União. Eu posso cobrar o que for da empresa, mas a empresa tem de executar com base no estado e no município. Eu não vou falar do que acontece em Altamira. Sugiro que vocês falem com a ministra [a ex-ministra do Meio Ambiente, Izabela Teixeira]. Eu vou defender hidrelétrica em todas as circunstâncias.
Natalia Viana: Presidente, como a senhora avalia que seu impeachment, se for confirmado, vai afetar outros países latino-americanos e a política latino-americana?
Dilma: Eu acho que já começou a afetar antes, primeiro pela importância do Brasil na região. Mas acho que você tem hoje, no mundo latino-americano, essa variante do golpe parlamentar já feito antes de nós. Isso ocorreu com Paraguai, com Honduras. [O impeachment de Fernando Lugo, no Paraguai] foi durante a Rio+20. Eu sei porque a gente mandou os chanceleres lá para tentar evitar, e não conseguimos. O que está ocorrendo? Eu acho que é uma nova forma de retirar governos que criam descontentamento [em relação] à oligarquia econômica, ou política, ou um grupo de interesses, que se considera descontente em relação a alguma das características do governo em exercício. Aí o que eles fazem? Dão um golpe parlamentar. Em que consiste um golpe parlamentar? Ele não é igual a um golpe militar. Um golpe militar não só extingue o governo em questão, mas acaba também com o regime democrático. Tem uma característica: você tira o governo e mantém o regime democrático. Agora, tem um preço para se fazer isso. Você compromete suas instituições, você cria cicatriz na sociedade. Você, muitas vezes, impede a recomposição do tecido democrático. Então tem uma consequência grave. E acho que criará, na América Latina, uma instabilidade.
Natalia Viana: A senhora acha que pode acontecer em outros países?
Dilma: Acho que pode. Não só eu acho, como chefes de Estado da América Latina, todos temem isso. Qualquer um.
Vera Durão: Na época que você foi afastada, recebeu solidariedade de chefes de Estado latino-americanos?
Dilma: Recebi. Não digo de quem por razões óbvias. As reações dessas pessoas são as mais variadas. Tem uns que fazem solidariedade ativa, tem outros que fazem solidariedade, mas obviamente por razões de Estado. Tem uma gradação.
Natalia Viana: A senhora acha que isso enfraquece a Unasul?
Dilma: Diminuir a importância da América Latina ou da África em relação ao Brasil é um absurdo, porque a força do Brasil no mundo tem a ver também com essa liderança e com essa capacidade de negociação que nós construímos desde o início do governo Lula. Nós abrimos embaixadas, tivemos uma política muito clara em relação à África. E isso explica por que conseguimos indicar pessoas para presidir organismos multilaterais, como é o caso da OMC [Organização Mundial do Comércio] e como é o caso da própria FAO [Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação]. Também explica por que tivemos um nível de interlocução muito forte com todos os diferentes países. No caso específico da América Latina, a Unasul é um produto dos nossos governos, nós construímos a Unasul. A Unasul envolve todos os países deste continente, da América do Sul. E sempre teve posições comuns. O que significa posições comuns? Se tira posição por consenso, ou por consenso mínimo. Há a cláusula democrática, há todo um nível de condução. E há uma prática: não se fala. A única condição de você conviver é você não falar do outro. Você não pode chegar e externar uma posição contundente contra um país. Não se faz isso dentro da Unasul.
Vera Durão: Mas isso foi violado pelo Serra, que falou mal da Venezuela.
Dilma: Eu sei, mas não se faz isso. Sabe o que você pode fazer? Você pega uma carta, escreve uma carta para o Maduro [Nicolás, presidente da Venezuela], externa sua posição e manda o seu embaixador, ou quem você achar que deve, falar para ele que a posição do governo brasileiro é essa, essa e essa. Que nós somos a favor disso, disso e daquilo. E, se acontecer isso, vai acontecer aquilo. Mas você não faz isso em público. Isso não é diplomacia. Nem os EUA fazem isso. Estavam lá outro dia o Maduro e aquele menino, Shannon [Thomas Shannon, diplomata norte-americano que se encontrou com Maduro para reiniciar as conversas entre EUA e Venezuela]. Não se faz isso. Isso não é praxe diplomática. Acredito que está errado fazer isso, porque você limita a sua capacidade de negociação e intervenção. Inclusive se você está preocupado com certos processos em andamento, para você ter mais capacidade de evitar que eles ocorram, tem de se tornar interlocutor. É assim que funciona. No caso do Mercosul, eles [o governo Temer] não estão indo [à reunião em julho] porque não querem a Venezuela. É a hora da Venezuela [assumir a presidência rotativa]. Eles podem achar várias coisas críticas a respeito da Venezuela, mas não será rompendo a praxe – que é cada ano um, segundo o rodízio – ou seja, não é cometendo uma ruptura contra a Venezuela que você melhorará as condições da Venezuela. Isso é uma política tola, porque não produz o resultado que os radicais querem a não ser que isso seja apenas – o que é pior – um discurso não para os nossos vizinhos, mas para si mesmo, o seu povo. A não ser que você esteja fazendo política externa para contentar segmentos internos, que para mim é a hipótese. Não ir à reunião é tão ineficaz que só pode ser uma sinalização para a imprensa brasileira, para o Brasil. O que é uma tolice.
Inclusive, no caso específico do Paraguai, nós nos manifestamos contra e parou por aí. Ninguém ficou falando disso mais. Quando eles elegeram o outro presidente, voltou. Sabe qual é a reação? Absoluta frieza. Ninguém xinga ninguém, ninguém faz declaração para a imprensa. O tratamento é o seguinte: congela a relação. É isso.
Marina Amaral: Falando em golpe e América Latina, a senhora foi a grande articuladora da Lei de Acesso à Informação, que foi gestada junto com a criação da Comissão Nacional da Verdade. Como presidente e chefe das Forças Armadas, como foi assistir aos militares novamente se negando a entregar os arquivos e fornecer informações para a Comissão Nacional da Verdade?
Dilma: Olha, que eu me lembre, o que eles dizem é que não tem arquivos. Há uma diferença entre se recusar a entregar e dizer que não tem. Eles dizem que em determinado momento destruíram os arquivos no passado.
Marina Amaral: Mas não teria como a senhora fazer um questionamento mais duro?
Dilma: Fizemos. Nós fizemos uns três questionamentos. Uai, nós fizemos por escrito.
Vera Durão: Celso Amorim falou fino com os caras…
Dilma: Não. Não falou fino coisíssima nenhuma. Todos os dados, eles não têm nos arquivos. Vera, quem é que ia manter arquivo? Para quê? Para se comprometer?
Vera Durão: Mas lá no Arquivo Nacional a gente descobriu um monte de arquivo.
Dilma: Não, isso é outra coisa. Aquilo fomos nós que botamos lá, pô. Porque nós fizemos o seguinte: um belo dia, bem antes da Comissão da Verdade – foi 2006, se eu não me engano –, fizemos um conjunto de circulares em que a gente pedia [os arquivos] para cada um dos ministérios. Porque não tinha arquivo só com os militares. Tinha arquivo espalhado pelo Ministério das Relações Exteriores, tinha arquivo em vários locais. Então o que a gente pediu? Pega o Arquivo Nacional e lá a gente vai fazer a junção dos arquivos. Era até o Beto Vasconcelos [ex-secretário Nacional de Justiça] que organizava essa ida dos arquivos de todos os lugares para lá. Aí, neste momento, eu, chefe da Casa Civil, dirigia a comissão, mandei um ofício para o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e para todos os comandantes das Forças Armadas, pedindo arquivos deles. Mandaram alguns arquivos que era o que eles falavam que tinham. Bom, na sequência, vem a Comissão da Verdade. Aí a Comissão da Verdade passa a fazer isso. Aí dizem que tem esse arquivo, que talvez tenha um outro arquivo. Aparecem outros arquivos. A gente faz outra suposição: talvez tenha gente que levou arquivo para casa. Aí não sei se vocês lembram que nós fizemos uma legislação que era o seguinte: entrega o arquivo, [ganha] anonimato – você pode entregar e não tem consequência. E o que foi entregue foi muito pouco. Nós estávamos com uma expectativa de ser bastante, mas não foi não. E depois a Comissão da Verdade acha algumas coisas. Eu não lembro o que eles acharam. Porque aí eles juntaram tudo. Você me desculpa, mas eu não acredito mais que tenha arquivo.
Vera Durão: Você acha que eles falaram a verdade?
Dilma: Não é que falaram a verdade, acho que destruíram [os documentos]. Ou os que estão em posse das pessoas, que podem ter, não entregam. E você não sabe, não tem registro.
Vera Durão: Dilma, até que ponto a Lei de Anistia teria impedido ou travado que no Brasil se fizesse justiça com os torturadores, como aconteceu na Argentina, no Chile, no Uruguai? Vocês chegaram a tentar alguma coisa nesse sentido? Você, como uma ex-presa política, chegou a fazer consultas?
Dilma: Não precisa fazer consultas, Vera. Você sabe qual era a situação.
Vera Durão: Mas o que vocês temiam?
Dilma: Não passa, querida. Não temos nada. O Supremo Tribunal Federal não deu ganho de causa a isso, Vera.
Vera Durão: Então é a Lei de Anistia que travou?
Dilma: Não, Vera, é a instituição do país. Supremo Tribunal Federal. O que eles disseram é que a lei podia fazer qualquer coisa. Entraram contra a lei. E ele disse que a lei é aquela. Ô, Vera, você está num país que tem Supremo Tribunal Federal e a hora que ele decide que é assim, é assim.
Vera Durão: A gente hoje ainda engole essas coisas, de elogios ao Ustra [Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-Codi], essas provocações. O cara já foi processado várias vezes, não aconteceu nada com ele.
Dilma: Ô, Vera, eu acho que a gente tem de aprender na vida que tem a nossa indignação pessoal e a compreensão da realidade. A realidade é essa. Quando o Supremo decide, não tem a quem recorrer, Vera. Porque neste regime em que a gente vive você faz uma lei, é o Legislativo que a faz – ela foi enviada, se não me engano, pelo Executivo. Mas quem aprovou e etc. foi o Legislativo. Aí, se recorreu contra os termos da lei ao Supremo, e o Supremo sancionou a lei. Sancionou, não. Ele deu ganho à interpretação. Não tem discussão, Vera. Você perde várias. A arte é que não existe fazer um governo sem saber que você perde e você ganha. Não tem um jeito de ganhar todas. Até porque eu acho que tem uma correlação de forças. Nós não conseguimos ganhar essa. É que nem eu perdi na Câmara lá aquele dia por correlação de forças.
Marina Amaral: Eu queria perguntar outra coisa. Lembro quando entrevistei o Zé Dirceu depois do mensalão – eu estava na Caros Amigos na época –, e ele disse: “O erro do governo foi ter feito aliança com vários partidos pequenos. O certo teria sido fazer desde sempre uma aliança com o PMDB”. Daí veio o governo da senhora…
Dilma: Olha, minha filha, está danado. Vou explicar por que está danado. O Fernando Henrique Cardoso fazia maioria em três partidos. Maioria simples. Conseguia maioria de dois terços com quatro. O Lula, se eu não me engano, era com oito e onze [partidos]! Eu, eram quatorze. Quatorze eu fazia maioria simples. E olhe lá. Vou te explicar por quê. Houve uma imensa fragmentação partidária no Brasil. Quando o Supremo decide acabar…
Vera Durão: Culpa do Supremo.
Dilma: Não, não é culpa do Supremo. Ele decidiu. Eu não vou ficar falando mal do Supremo. Não vou. O Supremo acaba com a cláusula de barreira. Amplia-se o número de partidos. Não é uma questão que você queira ou não. Eu acho que tem uma crise estrutural no sistema político brasileiro porque tem um nível de fragmentação que é tanto por partidos como dentro dos partidos. Os partidos, hoje, têm grupos que têm a ver com os diferentes estados da Federação, que têm diferentes interesses. Tem bancada da bala, bancada disso, bancada daquilo. É importantíssimo que o Brasil tenha uma recomposição partidária. E essa recomposição partidária é fruto das regulamentações que a lei estabelece para a questão eleitoral e também pela qualidade do voto. Se você olhar o voto parlamentar e o voto majoritário, o voto majoritário para presidente, sobretudo, e mesmo para governador, e o voto proporcional, você vai ver o seguinte: as políticas representadas pelo voto presidencial ao longo da história são mais progressistas. As políticas defendidas pelo parlamento são mais conservadoras. Por quê? Por um motivo simples: quando você faz a eleição presidencial, você tem uma relação direta entre o seu programa e a população. O filtro diminui porque você tem direito a programa de televisão gratuito, você tem um debate mais direto. Quando você tem a eleição proporcional, todos os filtros que existem nas regiões e nos estados ficam fortes. Quais? Controle econômico, as políticas oligárquicas, a dificuldade dos movimentos sociais se expressarem pela diferença de poder. Quanto mais organizados eles são, mais eles vão se expressar. Mas eles vão ter um voto segmentado porque é um voto proporcional. E aí tem aquela discussão se aí caberia o voto distrital para facilitar porque você teria, de uma certa forma, o voto majoritário nas regiões. Porque o voto distrital pega um distrito, bota você e ela escolhe entre as duas [opções]. Então você tem uma coisa hoje no Brasil: eu fui eleita por 54,7 milhões de votos, agora isso não se expressa no [voto] parlamentar. Nada. Pelo contrário, né? Nós chegamos a 60, 70 [deputados eleitos] do PT. O PSDB e o PFL tinham, no governo Fernando Henrique, 120, 115. Quase o dobro.
Vera Durão: Se você reassumir, você vai mudar isso, esse presidencialismo de coalizão?
Dilma: Eu farei basicamente um governo de transição. Porque é um governo que vai ter dois anos, e o que nós temos de garantir neste momento é a qualidade da democracia no Brasil, o que vai ocorrer em 2018. Eu farei isso, sobretudo. Acho que cabe a discussão de uma reforma política no Brasil, sem dúvidas. Nós tentamos isso depois de 2013 e perdemos fragorosamente. Tentamos Constituinte, tentamos reforma política, tentamos…
Natalia Viana: Teria força para um plebiscito?
Dilma: Não sei. Não tenho ideia.
Marina Amaral: Mas há esse compromisso da senhora, chamar um plebiscito?
Dilma: Não, não. Está em discussão isso. Não há um consenso. É uma das coisas. Uma das propostas colocadas na mesa. Agora, há de todo mundo uma opção por eleição direta, né? Sempre.
Vera Durão: Agora, Dilma, você não pode escapar dessa prisão desse presidencialismo de coalizão apelando para os seus eleitores, para o povo? Como você está fazendo agora?
Dilma: É que nós vamos continuar isso. Vou continuar fazendo. Não tem mais como recompor. Vou te falar, eu não recomponho governo nos termos anteriores em hipótese alguma.
Vera Durão: Por que você compôs? Você sentia pressões fortes para isso?
Dilma: Porque o nosso mapa até então era esse. Foi feito assim o meu governo, né? E vamos lembrar bem que eu tinha um vice. E quem articula isso, obviamente, eu não acho que o vice é a maior liderança, eu acho que a maior liderança é o Cunha. Acho que o vice é um dos elementos. Mas esse governo, ele faz parte desse processo eleitoral. Eu acho que houve uma mudança no pacto político.
Vera Durão: Você vai ao Senado se defender?
Dilma: Estou avaliando. Sou do tipo de gente que avalia.
Andrea Dip, Marina Amaral, Natalia Viana e Vera Durão
Acesse no site de origem: Se voltar, Dilma diz que fará um governo de transição até 2018 (UOL, 27/06/2016)