Atrás do cercadinho, duas crianças começam a chorar, mas logo param. Uma terceira surge nos braços da mãe e se junta à dupla. Os pequenos zanzam pelo chão e compartilham brinquedos sob os olhares de Celma, espécie de supervisora daquela turma.
(Folha de S.Paulo, 28/08/2016 – acesse no site de origem)
No fundo de um corredor do bloco A do Crusp (a moradia estudantil da USP, na zona oeste), num cantinho com paredes tomadas por desenhos infantis, funciona desde janeiro uma creche improvisada por mães estudantes.
Elas não podem colocar os filhos nas creches da universidade porque as vagas não são mais abertas desde 2015 –foram cortadas 141. A medida se deve à redução no quadro de servidores devido ao plano de demissão voluntária, segundo a instituição.
Por isso, as mães sem vaga se desdobram para estudar, trabalhar e cuidar dos filhos.
Toda tarde, de segunda a sexta, a criançada se reúne para brincar em frente ao alojamento de Celma Reis da Silva, 30. Ela é mãe de Caio, 1, e aluna do quinto ano de geociências e educação ambiental.
Frida, Gaia, Maju, José, Isa. Às vezes, Eros, quando a mãe tem de revolver problemas fora do campus. Ao menos sete filhos de mães da graduação e da pós passam por ali.
“A gente tem esse universo de ajuda aqui. Se você precisa de fralda, de remédio, alguma mãe vai te ajudar”, conta Stella Theodoro, 34, que se formou em letras no ano passado, ainda grávida de Frida, 1, e agora cursa licenciatura e trabalha dentro da USP.
No bloco A do Crusp, e apenas nele, os 12 apartamentos térreos são destinados às mães. Elas não precisam dividir com outros estudantes o espaço de dois quartos, como acontece nos outros alojamentos (com três quartos).
No entanto, segundo estimativa dos moradores, vivem ali outras 60 mães. Cerca de 25, segundo Stella, estão sem creche na USP para os filhos.
No começo, ela chegou a assistir aula com a filha –foi aprovada com nota 7,8. “Brinquei que a nota era coletiva. Um me emprestava a caneta, o outro, o papel”, lembra.
Mas nem todos os professores aceitam crianças na sala. Por isso, conta ter sido reprovada em duas disciplinas.
“No início, a gente se sente culpada, mas não é isso. Nós, universitárias, temos o direito de ser mãe.” Stella deixa Frida com Celma à tarde. À noite, tenta se virar: ou a deixa com um amigo que é pai e mora no bloco ou pede ajuda para outras amigas.
“A gente não consegue ter uma rotina. Só vou conseguir estudar depois que a Frida dormiu, à meia-noite”, diz.
Celma, que estuda à noite, também recorre a uma amiga para conseguir ir às aulas.
Mesmo assim já se encrencou no curso: não pôde fazer a disciplina de técnicas de campo –que lhe exigiria passar cinco dias num parque no sul do Estado– por não ter como levar o filho nem com quem deixá-lo. Sem as aulas, sua formatura será adiada.
A estudante conta já ter se acostumado a cuidar de tantas crianças. Para fazer comida para os meninos, tem ajuda de algumas mães.
Outra mãe que recorre a Celma é Roseleine Bonini, 42, mestranda em letras, para quem a rotina já foi mais fácil na graduação. Mãe de três, ela estudou com as duas primeiras filhas, de 12 e 8 anos, na creche da USP. Hoje, o menor, Eros, 1, está sem vaga.
“Deixei o trabalho em março para cuidar dele”, diz. Eros fica com Celma quando ela precisa levar a do meio para a escola fora da Cidade Universitária. Como nem sempre consegue fazer isso, a filha pode repetir por falta.
Doutoranda em engenharia de materiais e cruspiana, a colombiana Margarita Bobadilla, 30, mantém a filha Sofia, 3, na creche da USP, mas mesmo assim se engajou na luta das outras mães.
“Graças à creche, hoje a minha filha tem um pai doutor e uma mãe doutoranda.”
Com base em dados repassados pela universidade, ela elaborou com colegas um estudo que concluiu: em 2015 e 2016, a instituição já aumentou o gasto com auxílio-creche para funcionários e professores em R$ 1,2 milhão.
Em 2015, segundo a pesquisa, a USP gastou em custeio das creches R$ 1,8 milhão, o equivalente a 0,04% do orçamento da instituição, valor pouco representativo para ser economizado, segundo ela.
O caso foi levado ao Ministério Público e está sendo investigado em inquérito civil.
Segundo o advogado da associação de moradores do Crusp, Augusto Pessin, que tentou obrigar a USP a aceitar mais crianças nas creches (o pedido foi negado pela Justiça), o corte é o “retrocesso de um direito fundamental e uma covardia com as mães”.
Editoria de Arte/Arte Folha | ||
Raio-X do Crusp |
OUTRO LADO
Segundo a USP, não há previsão de abertura de um novo processo seletivo para a contratação de funcionários para as creches da instituição.
Na época do corte de 114 vagas, no ano passado, a universidade afirmou que um “quadro defasado de funcionários” e a adesão dos servidores em “número acima do esperado” ao programa de demissão voluntária levaram à adoção da medida, para “não comprometer os serviços prestados”.
A instituição possui, ao todo, cinco creches no Estado. Duas no campus Butantã, na zona oeste da capital paulista, uma na Faculdade de Saúde Pública, na região central de São Paulo, e outras duas em Ribeirão Preto e em São Carlos, no interior do Estado.
Em 2015, 402 filhos de estudantes, professores e funcionários, de quatro meses a seis anos de idade, estavam matriculados nas creches da USP. Neste ano, são 324 crianças, segundo dados da Superintendência de Assistência Social da universidade.
Os estudantes, porém, contestam a explicação dada pela USP para os cortes. Segundo estudo feito pela colombiana Margarita Bobadilla, 30, que cursa doutorado em engenharia na Poli, a universidade tem capacidade, hoje, para atender cerca de 600 crianças. Bobadilla mora no Crusp e mantém a filha Sofia, 3, na creche da instituição.
De acordo com a estudante, como os gastos se mantiveram no mesmo patamar dos anos anteriores (cerca de R$ 26 milhões para pagar funcionários e manter a estrutura dos prédios), as vagas ociosas representam um “desperdício de recurso público que poderia ser evitado”.
A pesquisa também mostra que os gastos da USP com auxílio-creche irão quase triplicar neste ano em relação ao ano passado e que deverão superar o valor do custeio das creches.
A assessoria da USP informou, em nota, que não conseguiu verificar os dados utilizados nesse estudo. As alunas dizem que usaram informações repassadas pela própria instituição e divulgadas no portal da universidade.
Sobre o número de mães que vivem atualmente na moradia estudantil do campus Butantã, estimado em 72 pelos estudantes, a universidade diz que são apenas 31.