Avanço no mercado de trabalho não livrou mulheres da sobrecarga nos afazeres domésticos

08 de março, 2015

(O Globo, 08/03/2015) Levantamento mostra que média de horas dedicadas por elas a tarefas é até quatro vezes maior que a dos homens

Todo dia ela faz tudo sempre igual. Mas é a segunda década do século XXI, e a mulher não só sacode o marido de manhã e antecipa o que será servido no jantar, como acompanha tarefas dos filhos, organiza compras no supermercado e trabalha, antes de encarar novamente a jornada noturna em casa. O cotidiano de Renata, Debora, Daniele e outras tantas é prova de que, conquistado o direito a trabalhar fora de casa — importante bandeira do Dia Internacional da Mulher, comemorado hoje —, o sexo feminino não se livrou dos afazeres domésticos.

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Tabulação do GLOBO nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) mostra que, de 2001 a 2013, a média de horas dedicadas por elas a tarefas como cuidar dos filhos, limpar a casa e outras atividades não remuneradas voltadas ao lar caiu de 26 para 20 por semana. Entre os homens, a média nada oscilou, permanecendo em cinco horas. E, enquanto 45% dos homens se dedicam às atividades, essa fatia entre mulheres é de 85%. Mesmo aquelas que conseguem o mais alto grau de escolaridade (mestrado ou doutorado), seguem, em média, trabalhando mais do que os homens, inclusive os apenas alfabetizados. Somadas as horas dos afazeres de casa com a jornada no mercado de trabalho, elas ocupam cerca de dez horas a mais do que eles, por semana.

— Isso é reflexo de uma sociedade patriarcal e machista. As mulheres tiveram de se dividir entre tarefas de reprodução e de produção. Elas têm jornada dupla e, às vezes, até tripla de trabalho — afirma Suzana Cavenaghi, professora do Programa de Pós-Graduação em População, Território e Estatísticas Públicas da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence) do IBGE. — Fizemos uma revolução de gênero pela metade. Saímos de casa para trabalhar, mas os homens não participam das tarefas domésticas.

A engenheira Renata arruma a filha Clarice: jornada semanal de trabalho dentro e fora de casa somam 60 horas (Foto: Guito Moreto)

Outra pesquisa, do Núcleo de Estudos sobre Desigualdades Contemporâneas e Relações de Gênero da Uerj, indica que, quando se trata de percepção de igualdade, há avanços. Sete em cada dez homens e 83,7% das mulheres concordam totalmente que as tarefas domésticas devem ser divididas igualmente. Quando perguntados sobre o período dedicado ao trabalho doméstico (sem incluir o cuidado com crianças), homens disseram achar que suas cônjuges despendem 26,7 horas em tais tarefas por semana, enquanto elas afirmam gastar, na verdade, 24,5 horas. Já elas tendem a reduzir o tempo de trabalho declarado pelos cônjuges, afirmando que eles levam sete horas semanais nas atividades, enquanto eles falam em 10,7 horas. A compreensão masculina, no entanto, ainda não se reverte em práticas mais igualitárias. Os próprios homens assumem contribuírem pouco. Do total, 3,4% deles dizem ser quem sempre lava e passa roupa, por exemplo, enquanto a fatia delas que dá a mesma resposta é de 43,2%.

— Há uma distância entre a intenção e o gesto. E, além disso, os homens têm percebido que as mulheres devem ter direito a trabalhos e salários iguais, mas essa percepção ainda é desproporcional ao entendimento sobre de quem é a responsabilidade de cuidar dos filhos e da casa — explica Clara Araújo, coordenadora do Nuderg e professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Uerj, ao falar sobre o estudo amostral feito em 2014, no Rio, com 1.198 entrevistados.

‘QUESTÃO CULTURAL’, DIZ ENGENHEIRA

Exemplo do atual alto nível educacional feminino (o número de mulheres que completam a graduação é 25% superior ao de homens, segundo o Censo de 2010), a doutora em Engenharia Elétrica Renata Costa, de 38 anos, calcula gastar cerca de 21 horas semanais com afazeres domésticos, além das 40 horas de trabalho como professora universitária. Casada e mãe de duas filhas, de 14 e 6 anos, ela é responsável por orientar empregadas domésticas, fazer o mercado e acompanhar deveres de casa da caçula, entre outras tarefas.

— Acho que as coisas têm melhorado. Comparado ao meu pai, o meu marido é mais participativo, por exemplo. Mas ainda há uma questão cultural. Acabo tomando a frente nas coisas aqui de casa. Acho que os homens são mais desligados, às vezes esquecem de dar banho ou jantar — opina.

Rotina e discurso parecidos tem Fabiana Barros, de 35 anos. Doutora em Odontologia e Periodontia, ela divide o tempo entre o funcionalismo público, um consultório, a sociedade em uma marca de joias e os cuidados do filho de 1 ano e meio.

— Considero uma questão cultural a mulher assumir mais funções domésticas do que o marido, mas não me sinto incomodada com isso. Por uma opção, gosto de ter esse controle da casa e acredito que tenho ajuda nas principais decisões — assegura. — O que acontece hoje é que tento reconhecer o que chamo de facilitadores. Uso sites de compras para abastecer a casa e os serviços de delivery por telefone. Outra ferramenta que uso é um site de administração de funcionários.

Os serviços citados por Fabiana estão entre os fatores que contribuíram para a redução de seis horas, ao longo de 12 anos, no tempo dedicado por mulheres aos afazeres domésticos, apontam especialistas. Outros elementos associados à mudança são a queda da fecundidade e o auxílio de empregados domésticos. A propósito, a diminuição do número de filhos teria tido como um dos motivos a percepção das mulheres sobre o tempo dedicado aos cuidados com as crianças.

— A minha hipótese é que essas relações de gênero tiveram influência na queda da fecundidade, hoje abaixo da taxa de reposição (2,1 filhos por mulher). A mulher sabe que, por conta dos filhos, tem de trabalhar menos horas, o que a leva a ganhar menos. Quanto mais quiser se inserir no mercado de trabalho de maneira igualitária, mais vai evitar aumentar o tempo em afazeres domésticos, o que derruba a fecundidade — explica Suzana Cavenaghi.

Clara Araújo acrescenta que, com a redução do número de filhos e o envelhecimento da população, o cuidado se torna um problema social e não apenas privado.

— É preciso reconhecer e valorizar essas atividades. Não só porque as desigualdades associadas a elas são injustas em relação às mulheres, mas porque isso está afetando uma série de pactos e dinâmicas sociais — diz, citando outros exemplos. — Estudos identificam que há impactos no aumento da incidência de uso de medicamentos entre mulheres e que, sistematicamente, elas se manifestam menos satisfeitas que os homens. Há ainda consequências sobre o cuidado de idosos.

O Brasil não está sozinho. Estudo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) mostrou que, mesmo em países desenvolvidos, as mulheres passam quase duas vezes mais tempo dedicadas a atividades não remuneradas que os homens. A média, levando em conta 26 nações — Alemanha, Canadá, Dinamarca e Japão, entre elas —, indica que as mulheres gastam quatro horas e 35 minutos nelas, por dia, enquanto eles se ocupam por duas horas e 20 minutos diariamente.

DIFERENÇAS DESDE A INFÂNCIA

Os dados da Pnad tabulados pelo GLOBO indicam também que a desigualdade de gênero no tempo dedicado a afazeres domésticos ocorre desde cedo. Enquanto meninos de 10 a 14 anos passam 2,7 horas semanais nas atividades, o período gasto por meninas da mesma faixa de idade é de 7,6 horas.

Servidora pública federal e doutoranda em Políticas Públicas, Daniele Neves, de 38 anos, tenta mudar isso em casa. Divorciada, ela conta que, com práticas, dá lições sobre igualdade ao filho.

— Nós, mães, temos um papel nisso. Converso com meu filho sobre as minhas conquistas no trabalho, para que ele veja a mãe como uma profissional. E, embora ele tenha 8 anos, tento inseri-lo nos afazeres de casa. Ele é responsável pela limpeza do próprio quarto e me ajuda quando vou lavar roupas. Temos de acostumá-los. É atribuindo trabalho a esses pequenos homens que conseguimos uma sociedade mais igualitária no futuro.

Coordenadora de População e Indicadores Sociais do IBGE, Bárbara Cobo faz coro.

— Tem de haver uma mudança do modo como criamos nossos filhos. Talvez os contextos em que os criamos façam com que sejam estimulados a reproduzir formatos. Se não fizermos esse trabalho, perpetuamos esse tipo de filosofia — afirma, acrescentando que há necessidade de organização das cidades que favoreça o uso do tempo, com oferta de creches, transportes e outros serviços de qualidade que facilitem a vida de famílias, além de adequações nas leis trabalhistas.

Para Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres Brasil, a questão de gênero e uso do tempo precisa ser trabalhada não só em políticas públicas como em instituições privadas:

— Além de compartilhar a carga de trabalho dentro dos lares, é preciso trabalhar outras vertentes que ajudem nessa divisão. São necessárias políticas públicas que possibilitem isso, como mais vagas em creches, além de espaços e serviços que permitam o compartilhamento do trabalho doméstico entre a sociedade e os membros dos lares.

Dandata Tinoco; Colaboraram Antônio Gois e Julianna Granjeia

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