Alguns dias atrás, alguém falou na televisão: “No Natal tem que ter peru”. Fiquei pensando quantos anos minha mãe, empregada doméstica, ficou sem comer peru ou um alimento melhor no Natal. Tereza Vasconcellos começou a trabalhar como doméstica aos nove anos de idade. Nada ganhou de presente, talvez nem uma guloseima diferente, em muitos “Natais” de sua vida. Sequer um alimento decente. Aliás, o conceito de trabalho decente não existia e o trabalho era indecente. Tudo isso em 1939 ou 1940. Assim como ela, milhares de meninas e jovens negras precisavam trabalhar para assegurar o próprio sustento e de sua família. Minha mãe não concluiu o ensino fundamental porque negros não estudavam. O país vinha do sistema escravocrata em que era proibido para a população negra ingressar na escola. Neste período, o Brasil se dividia entre a elite, os subalternos e os escravizados. Minha mãe frequentou a escola apenas para aprender a ler e escrever. Lia inicialmente gibis, fotonovelas e revistas como Seleção. Assim era tratada a população negra que construiu o país com as próprias mãos.
Leia mais:
Reunião de criação da Rede Nacional de Assessoria Jurídica das Trabalhadoras Domésticas – Brasília/DF, 28/04/2015
Regulamentação do trabalho doméstico deve ocorrer em maio, prevê senadora (Senado Norícias, 27/04/2015)
Donas de casa também podem ter aposentadoria (Agência Nacional, 25/04/2015)
A obrigação de registrar o contrato de trabalho na carteira de trabalho da trabalhadora doméstica existe desde 1972, ou seja, mais de 40 anos se passou e hoje apenas 46% das trabalhadoras mensalistas possuem a anotação na CTPS no Rio Grande do Sul. Este é o melhor índice do Brasil. A cidade de Fortaleza, Ceará, tem o pior índice: 28% das mensalistas possuem o registro na CTPS, segundo informações da Fundação de Economia e Estatística (FEE). As domésticas constituem a maior categoria profissional de mulheres no Brasil: 7 milhões.
A luta pelo reconhecimento da profissão dura mais de 80 anos. As trabalhadoras domésticas esperam há mais de 50 anos por direitos como Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e salário-família para serem equiparadas aos trabalhadores urbanos. Além da dificuldade de reconhecimento dos direitos pelo Poder Judiciário e pelas políticas governamentais, estas mulheres enfrentam a discriminação e o preconceito da sociedade. Muitos empregadores ainda tratam as trabalhadoras domésticas como escravas, uma vez que exigem longas jornadas de trabalho, pagam menos que o salário mínimo vigente, ou salário “in natura”, dando roupas e objetos que não usam mais em substituição do salário em espécie.
Denota-se neste tema a existência de dois pilares difíceis de transpor: raça e gênero. A categoria é formada predominantemente por mulheres negras, e infelizmente o racismo está impregnado na sociedade. Além disso, o trabalho por elas desempenhado está culturalmente pré-determinado como sendo um trabalho de mulher. Isso significa que as mulheres negras executam o papel das mulheres brancas no âmbito privado da família. Percebe-se que esses dois fatores explicam, sem justificar, por que há dois anos a categoria espera a regulamentação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 72. O mais valioso presente a ser ofertado nesta segunda-feira, 27 de abril, dia nacional do trabalho doméstico, será a regulamentação da PEC nº 72 e o reconhecimento da profissão, demonstrando que evoluímos como seres humanos.
Beatriz da Rosa Vasconcelos é advogada e integrante do Conselho Diretor da ONG THEMIS Gênero e Justiça de Porto Alegre/RS