Revestido de falsa igualdade, projeto desenhado pelo governo Michel Temer é extremamente nocivo para as trabalhadoras, especialmente as mães
(CartaCapital, 13/12/2016 – acesse no site de origem)
Um dos grandes assuntos em pauta ultimamente tem sido a polêmica proposta de reforma da Previdência gestada pelo governo de Michel Temer. Na semana passada, foi divulgada a notícia de que, para se aposentar com o benefício integral, o brasileiro precisará contribuir por pelo menos 49 anos.
Pelas novas regras que o governo pretende aprovar, o tempo mínimo de contribuição será de 25 anos, mas, com o cumprimento desse período, o trabalhador terá direito a somente 76% da aposentadoria, respeitando-se o piso do salário mínimo.
A cada ano de contribuição, será somado mais 1% ao cômputo, até completar 100%. Ademais, a idade mínima passa a ser de 65 anos, independentemente do gênero do contribuidor ou da contribuidora.
A Previdência Social atua em cima das contingências que implicam a perda da capacidade laboral dos contribuintes, tais como morte, acidentes, idade avançada, desemprego e funções reprodutivas.
Atualmente, as regras gerais da previdência social preveem que os trabalhadores têm direito à aposentadoria se comprovarem o mínimo de 180 meses de trabalho (quinze anos), além da idade mínima de 65 anos, se homem, ou 60 anos, se mulher. Para conquistar o benefício integral, mulheres devem contribuir por 30 anos, e homens por 35 anos.
Apesar dos esforços do atual governo para legitimar a proposta de reforma da Previdência como imprescindível para a manutenção do sistema da seguridade social, a mesma tem sido bastante criticada por endurecer as regras atuais e prejudicar o trabalhador que ainda não adquiriu o direito ao benefício.
A despeito de inúmeras problemáticas dessa proposta, um dos pontos críticos do projeto, mas pouco discutido pelos canais de comunicação, é a equiparação tanto no tempo de contribuição, como na idade mínima de 65 anos para homens e mulheres.
Falsa igualdade
Talvez por superficialmente se cobrir por um manto de justiça, ou talvez por não termos um atual governo comprometido com as questões da mulher, esse ponto parece estar passando batido nas discussões sobre a reforma da previdência. Mas será que é realmente justo equiparar a idade mínima e o tempo de contribuição dos trabalhadores e das trabalhadoras?
O que, de início, pode soar como uma efetivação do princípio de que homens e mulheres são iguais perante a lei, é, na verdade, um enorme distanciamento da consagração da igualdade material entre os gêneros, de forma que esse projeto se apresenta extremamente nocivo para as trabalhadoras, especialmente as mães de família.
E, justamente por se revestir de uma falsa igualdade, a questão está gerando dificuldades argumentativas até mesmo para pessoas que se identificam com a causa da promoção de igualdade de gênero.
Basta um olhar um pouco mais crítico para se perceber o quão injusta é essa equiparação. Afinal, ignora-se por completo o fato de que a mulher possui dupla jornada de trabalho e ainda ganha menos do que o homem para exercer as mesmas funções.
Uma questão interessante que sempre é destacada quando se fala sobre a igualdade de idades mínimas para obtenção de aposentadoria é acerca do fato de que as mulheres têm maior expectativa de vida do que os homens.
Não seria injusto, então, que as mulheres se aposentassem antes? Entendemos que não.
Afinal, essa realidade não acontece por conta de diferenças biológicas entre os sexos, tampouco por desdobramentos da vida laborativa, e sim por questões culturais decorrentes da construção dos gêneros.
Mulheres têm mais preocupação e cuidados com sua saúde, atentando-se a tratamentos e a prevenções de doenças, o que lhes prolonga a vida. O que é realmente importante de ser analisado é a questão contributiva.
Dados do IBGE (2014) apontam que as mulheres ainda recebem em média 27% a menos do que os homens para desempenharem a mesma função. Além disso, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, em relatório próprio, divulgou que essa disparidade salarial é praticamente o dobro da média mundial, colocando o país num ranking bastante baixo em termos de igualdade de gênero.
Além disso, a maternidade tem feito com que as mulheres se afastem do mercado de trabalho em média cinco anos, principalmente pela falta de oferta de vagas em creches públicas que possibilitem às trabalhadoras conciliar seu empregos com os cuidados das crianças, após esgotado o prazo da licença-maternidade.
E mesmo quando há creches disponíveis, há dificuldade de conciliar os horários de trabalho com os horários restritos dessas escolas, que normalmente são em meio período e coincidem com o horário comercial da maior parte das trabalhadoras.
Ainda, dados de uma pesquisa realizada pelo PNAD (2011) mostram que embora as mulheres no Brasil tivessem uma participação menor do que os homens em termos de horas semanais no mercado de trabalho (36,9 e 42,6 respectivamente), elas dedicavam, em média, 21,8 horas semanais às tarefas domésticas e de cuidado (reprodução social), representando mais do que o dobro de tempo da dedicação dos homens, com 10,3 horas semanais.
Desse modo, acrescentando-se a média de horas semanais no mercado de trabalho, a jornada dupla das mulheres brasileiras chega a 58,7 horas totais por semana, contra 52,9 dos homens.
Ou seja, colocando na balança, a jornada de trabalho feminino é de cinco horas a mais do que a masculina, sendo que estas horas consomem e desgastam a trabalhadora, acrescentam valor à sociedade, mas não são remuneradas.
E se o projeto de reforma da previdência passar, essas horas sequer serão computadas para fins de aposentadoria, gerando um encargo muito superior às mulheres do que aos homens.
Dupla jornada
As regras atuais da previdência brasileira utilizam critérios que levam em consideração essas diferenças biológicas entre os sexos, especialmente no que se refere à reprodução.
Por conta disso, a seguridade social garante benefícios diferenciados, que assegurem a essas mulheres proteção no desempenho das funções reprodutivas sem prejuízo do trabalho, como a licença maternidade e a estabilidade da gestante e puérpera, por exemplo.
É preciso ter em mente que a previdência é basicamente pautada na lógica do trabalho, isto é, leva-se mais em consideração o valor moral sobre o labor do que o aspecto contributivo do ponto de vista financeiro.
Tanto assim o é, que a aposentadoria rural, por exemplo, apenas exige que se comprove o tempo de serviço, sem que haja contribuições. Nesse sentido, é importante ressaltar que o cuidado com os filhos é uma forma de trabalho essencial para a reprodução e manutenção da sociedade, sendo essa atividade realizada majoritariamente por mulheres, as quais exercem praticamente sozinhas e sem qualquer tipo de remuneração.
Assim, como é um trabalho não remunerado exercido em favor de toda a sociedade, sem que o Estado atue de maneira eficaz para trazer algum tipo de alívio a essa infindável tarefa, não seria razoável que se impusesse a incidência de contribuição previdenciária.
A divisão sexual do trabalho, nos moldes como se dá, beneficia a esta sociedade estruturada no patriarcalismo. A mulher que se afastou do mercado de trabalho para cuidar dos filhos está exercendo uma função imprescindível. E devido à falta de estrutura e de políticas públicas universais, essa tarefa se mostra irreconciliável com a contribuição formal para a previdência social.
A regra que garante às mulheres o direito de se aposentar cinco anos antes do que os homens, nada mais é do que uma compensação à mulher que trabalha na dupla jornada, uma real tentativa de promover a igualdade material a partir do direito e do ordenamento jurídico.
Esta é uma interpretação comprometida com a promoção da equidade de gênero e uma interpretação capaz de atender aos desígnios da Constituição Cidadã.
É tratar os desiguais como desiguais na medida de suas desigualdades, a fim de se alcançar o verdadeiro equilíbrio de direitos entre homens e mulheres.
Cumpre destacar que esse tipo de ação afirmativa não se assemelha às discriminações contidas em ordenamentos jurídicos, especialmente no direito do trabalho. Não se trata de se utilizar justificativas da biologia para discriminar e afastar mulheres do mercado de trabalho formal, como a proibição do trabalho noturno feminino ou outras tantas.
O que se vê no caso da previdência social é uma tentativa de remediar e reparar uma desigualdade de gênero que já está ocorrendo e que não será capaz de ser superada sem a devida atuação estatal.
Vale dizer que não são todos os países que necessitam desse tipo de abordagem. Muitos deles, especialmente aqueles que já alcançaram uma maior paridade entre os gêneros, como a Noruega, utilizam-se primordialmente de critérios culturais, e não biológicos, inclusive para essas questões reprodutivas, entendendo que há responsabilidade compartilhada do casal pelos cuidados com familiares vulneráveis, como os bebês.
Porém, enquanto não chegarmos neste patamar de compartilhamento das funções, precisaremos continuar mantendo políticas afirmativas que visem superar e compensar a desigualdade entre homens e mulheres.
Nesse diapasão, vale lembrar que as atuais regras da previdência social brasileira são mais rígidas do que muitos países tidos como desenvolvidos, como a Bélgica, Itália e França. Não podemos deixar que momentos de instabilidade fiscal e econômica sirvam de motivo para restringir direitos sociais e promover retrocessos.
O Brasil é signatário da Convenção de Belém do Pará (Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher) e, por meio dela, se comprometeu a promover a igualdade de acesso a direitos e a oportunidades para suas cidadãs.
Claro que as responsabilidades estatais não se encerram em medidas afirmativas como esta.
Mas este é um ponto de partida necessário e fundamental para que alcancemos de fato a equidade de gênero. Quando conseguirmos repartir melhor as cargas familiares, quando o Estado conseguir prover e garantir creches de qualidade para todas as crianças da primeira infância, será possível reavaliar a situação previdenciária das mulheres no Brasil.
Antes disso, qualquer mudança no sentido de retração de direitos é um golpe contra a dignidade das mulheres e contra o Estado de Direitos que estávamos construindo.
* Marina Ruzzi e Ana Paula Braga são advogadas