Monique Morrow, diretora da Cisco e uma das vozes femininas mais relevantes em tecnologia, acredita que as empresas têm de apostar no humanismo
(El País, 31/01/2017 – acesse no site de origem)
Monique Morrow fala sussurando. O lugar, uma sala multicultural do Artic 15 –evento dedicado aos empreendedores tecnológicos do norte da Europa, realizado em Helsinque–, onde se escuta uma babel de línguas unidas pelos uns e zeros da programação. É este lugar o escolhido pela CTO (executiva de tecnologia) da New Frontiers, a área de desenvolvimento e engenharia do gigante tecnológico Cisco, para a entrevista. Perguntas e respostas sobre o papel da mulher na tecnologia, a globalização, as equipes multidisciplinares, o poder do big data ou o estresse no trabalho voam em voz baixa. A diretora deixará a empresa em fevereiro, depois de 12 anos. É uma das vozes femininas mais relevantes no mundo tecnológico e a editora do livro The Internet of Women, que ilustra a mudança cultural que a contribuição das mulheres traz à inovação.
Pergunta. A senhora não fala de feminismo, de paridade entre o homem e a mulher. Fala de neutralidade. Por quê?
Resposta. Há um lado feminino em você. Como há um lado masculino em mim. O que eu peço é a neutralidade. Temos, na realidade, todos os traços de caráter dentro de cada ser humano em proporções distintas. O desafio que é preciso enfrentar é se dar conta de que, no final das contas, a única coisa que importa é a inclusão. Seja um homem, uma mulher, uma pessoa negra, que você tenha uma orientação sexual minoritária ou sofra de síndrome de Asperger. É preciso contar com você. Acho que nos restam duas gerações para superar este problema. Mas, por outro lado, eu me pergunto: “Estamos no século XXI. Como pode ser que ao pensar nisto calculemos que ainda é preciso esperar duas gerações?”. Todos os estudos apontam que a inclusão gera lucros empresariais. Calcula-se que a igualdade da mulher no mercado de trabalho poderia produzir mais de 8 trilhões de euros (27,2 trilhões de reais) de lucro mundial.
P. E como se pode conseguir reverter a tendência?
R. Realmente não acho que seja uma questão de esperar essas duas gerações. É preciso tornar isso um imperativo na empresa. Nós, CTOs, temos que nos erguer e obrigar que a inclusão seja adotada. E isto é parte de uma mudança geral de filosofia que é preciso executar nas empresas. O que e de que forma premiamos? Por exemplo, atualmente não se premia a colaboração. A realidade é que somos recompensados por ficarmos trabalhando toda a noite, sem dormir, mais que por qualquer outra coisa. Por estarmos disponíveis 24 horas para as emergências, que se tornam mais e mais comuns.
Por isso considero que temos de premiar outro tipo de comportamento nos funcionários. Criar uma espécie de divisa social. Pode-se discutir a natureza desse prêmio, se deve ser um plus econômico ou outro tipo de vantagem. Mas a chave é premiar o comportamento que desejamos adotar em um negócio. Por exemplo, se alguém tira férias, você o recompensa. Se não responde a e-mails no fim de semana, você recompensa. No Vale do Silício a situação é terrível. As vezes tentam fazer esforços inúteis de declarar “O dia de não ler e-mails”, mas de pouco adiantam.
P. Mas isto é falar em eliminar o crunch [palavra do jargão tecnológico para denominar os períodos de tempo em que os empregados de uma empresa fazem uma enorme quantidades de horas extras].
R. Nem os homens nem as mulheres gostam do crunch. Todos estamos cansados. Isto passa pela cultura competitiva. Mas é possível ser competitivo e se preocupar com o ser humano que você tem diante de si. Porque às vezes nos esquecemos de que as pessoas que trabalham conosco são seres humanos. Ao colocar as pessoas para fazerem crunch, e obrigá-las a assumir um sem-número de tarefas que determinam a que devem dedicar suas horas, minutos, segundos, você as desgasta aos poucos. Você as desgasta muito rápido. E isto passa, e aqui fala meu lado filosófico, porque a tecnologia tem duas caras. Por um lado, permite desenvolver novas capacidades, mas, por outro, ela as tira de nós.
Voltando à mulher, falamos de 51% do planeta. E nos deparamos com mulheres que são perseguidas, como ocorre na Nigéria, se tentam ter acesso à educação. Em setembro de 2015 as Nações Unidas aprovaram 17 metas para o desenvolvimento sustentável do mundo. A primeira é acabar com a pobreza. A quinta, acabar com a desigualdade de gênero. Há uma grande correlação entre as duas. Por exemplo, quando adotamos iniciativas para fazer com que as mulheres estudem tecnologia e ciência, nos damos conta de que chegamos tarde. De que os problemas começam muito antes.
P. Em que sentido?
R. No sentido de que, desde crianças, as diferenças são estabelecidas. Se uma pessoa tem um filho homem deveria educá-lo no princípio de que todas as tarefas são divididas. Alguém me disse uma vez: “A paternidade não é o trabalho da mãe”. E isso vale também para qualquer tarefa doméstica, desde limpar a casa a tirar o lixo. Também com os brinquedos, que não se impeça um menino de brincar com bonecas, se é isso o que ele quer. Se você der aos seus filhos, independentemente do gênero, um tratamento neutro, igualitário, eles reproduzem fora de casa essa forma de ser tratados. Os papéis de gênero se interiorizam bem cedo, já aos cinco anos. Lembro da história de uns amigos, um casal de cientistas, que explica bem isso. Sua filha de seis anos, voltando da escola, e dizendo-lhes: “Papai, mamãe, não posso estudar matemática porque não sou um menino”. Isso acontece assim, de repente. Agora essa menina é uma astrofísica. Mas é porque seus pais se sentaram com ela e lhe explicaram que poderia ser o que quisesse.
P. Recentemente, uma pesquisa demonstrou, analisando o código no serviço do Github, que as mulheres são melhor programadoras que os homens. Mas só se ocultassem sua identidade e se o examinador não soubesse que eram mulheres. Se ele soubesse, as notas baixavam.
R. Lembro desse estudo. Foi em fevereiro [de 2016]. Lembro que pensei, ao lê-lo: “Aí está”. Há mulheres com uma excelente predisposição para programar. Como também há para o jogo de videogame. O problema é que têm de ser muito persistentes por causa da pressão cultural que se exerce paulatinamente. No segundo grau já restam poucas que queiram ser cientistas ou programadoras. Na universidade, ainda menos. Só as mais persistentes chegam até o final. Não estamos falando de um teto de vidro. Falamos de um abismo de vidro. E tanto os homens como as mulheres, mais as mulheres, é verdade, caem nesse abismo. Por exemplo, com a idade. O mundo, e no setor tecnológico isso acontece especialmente, te convence de que se você está acima de uma certa idade já não pode inovar ou aprender coisas novas. Se você for mãe, por exemplo, a sua carreira profissional fica em perigo. Isto, em última análise, faz com que pessoas valiosas abandonem sua carreira para sempre.
P. Expandindo o foco, como a tecnologia pode ajudar os países em vias de desenvolvimento?
R. Acho que há muito o que aprender com todos os países do mundo e pegar exemplos concretos para uma categoria que eu chamaria de inovação reversa. Como tecnólogos, precisamos ter precaução com o tecnocolonialismo e entender as oportunidades e soluções que ocorrem localmente e como estas inovações podem depois se transferir para o restante do mundo.
P. E que tecnologias, especificamente, a senhora vê como vencedoras para essa globalização cuidadosa com o que é local?
R. Talvez esteja influenciada, mas acho que a realidade aumentada/virtual (AR/VR), videogames, design e blockchain têm o potencial para fazer deslanchar o potencial das economias. Podemos imaginar como aplicar de múltiplas maneiras estas tecnologias na educação, saúde, cidades inteligentes. Um exemplo, o projeto Utopia, que repensa de modo smart os subúrbios urbanos. Também teremos de pensar em como introduzir a ética em sistemas automatizados informaticamente.
P. Em resumo, é preciso conseguir que a tecnologia nos ajude a ser mais humanos.
R. Exatamente. E que o mundo tecnológico se nutra de outras perspectivas além das clássicas. Artistas, pessoas de outras raças e culturas, idosos… Novas perspectivas que ajudem a ver as coisas com um olhar fresco. É preciso apostar em equipes multidisciplinares que incluam antropólogos, historiadores, psicólogos e filósofo, bem como programadores e engenheiros. Temos de pressionar para que as empresas assumam esse enfoque empático. Se não o fazem, estou certa de que não sobreviverão ao século XXI.
P. E como os novos paradigmas tecnológicos podem ajudar a conseguir isso?
R. De muitas maneiras. Por exemplo, em Stanford estão estudando o que chamam de dark data [dados obscuros]. É um tipo de dados não estruturados que Stanford está estruturando com base em seu sistemaDeep Dive. Imagine que vocês publiquem uma foto no EL PAÍS e uma máquina comece a questionar coisas como o grupo demográfico ao qual essa imagem está preferencialmente voltada ou os motivos editoriais para publicá-la em tal posição na capa. Ou, aplicado a qualquer cidadão, podem fazer inferências sobre o seu grupo social a partir de suas redes sociais, sobre o tipo de pessoa com a qual você convive, as opiniões que você tem, etc.
Não se deve enfrentar esse poder da tecnologia temendo o Grande Irmão. É preciso usá-lo para nos entendermos melhor e poder fazer deduções que nos ajudem a melhorar. Dou um exemplo muito claro: se você está em uma posição de poder, tende a escolher pessoas que se pareçam com você, que concordem com as suas preferências. Não é algo que você faça nem sequer premeditadamente. Você faz isso inconscientemente. É aí onde você precisa da inteligência artificial para fazer essa inferência por você e fazer com que você reflita sobre os motivos ocultos das decisões que toma.
Ángel Luis Sucasas