Ocupar os espaços públicos enfrentando o significado da invisibilidade do espaço privado parece ser um ponto nevrálgico das lutas emancipacionistas.
Qualquer que seja nossa bandeira, em algum momento, nos depararemos com essa questão: da cultura que justifica a violência sexual culpabilizando as mulheres ou que sugere resguardar a violência doméstica ao ambiente familiar à formatação do poder político, compreender que estamos saindo do “quadrado” destinado a nós ao sermos mulheres no espaço público é fundamental.
(#AGORAÉQUESÃOELAS/Folha de S.Paulo, 23/03/2017 – acesse no site de origem)
Sou Manuela d’Ávila, tenho 35 anos, sou jornalista e mestranda em Políticas Públicas. Sou mulher, branca e de classe média. E mãe da pequena Laura. Milito no Partido Comunista do Brasil há 18 anos, fui dirigente estudantil, sou dirigente partidária e, atualmente, deputada estadual. Fui vereadora e deputada federal por dois mandatos. Sou, portanto, uma das poucas mulheres a ocupar mandatos eletivos no Brasil. Fui uma das sete vereadoras de um total de 33 em Porto Alegre, uma das 42 deputadas de um total de 513 e sou uma das oito de 55 deputadas estudais. Em todas as minhas eleições, fui a parlamentar mais votada de meu Estado, o Rio Grande do Sul. Me apresento para que saibam meu local de fala e para que pensemos juntos o que acontece quando uma de nós ocupa um espaço público.
Hoje, passados doze anos de meu primeiro mandato, tinha 23 anos, compreendo de maneira muito mais consciente os preconceitos que sofri e aqueles que ainda expetimento em minha rotina, a cada dia que saio do espaço privado reservado a mim, enquanto mulher, e ocupo o espaço público, pensado por homens e para homens.
Sou mãe por opção. Opção porque quis ficar grávida e opção porque defendo o direito das mulheres de não serem mães se assim quiserem. Não lembro de muitas reflexões minhas sobre o real significado da maternidade como espaço de reprodução do machismo antes de eu mesma ser mãe. Decidi, junto com meu companheiro, manter minha filha sob nossos cuidados exclusivos durante os mil primeiros dias. Somos donos de nossas agendas, eu deputada e ele músico, podemos nos revezar em nossas dinâmicas de trabalho. Decidi, também, seguir as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e amamentar exclusivamente minha filha até os seis meses, prolongando a amamentação até o seu desmame natural.
Minha primeira reflexão foi sobre a licença maternidade.
A Assembleia gaúcha não concede licença de seis meses para as parlamentares (concede para as trabalhadoras). Por que? O regimento interno diz que o deputado dispõe de quatro meses de licença saúde sem que o suplente assuma. Como a posse do suplente significa perda de influência política, a criação de exceção para a licença maternidade não está em pauta. Também não está em pauta o aumento da licença paternidade (de apenas vinte e um dias!).
Voltei a trabalhar exatamente no dia em que Laura fez quatro meses. Era 27 de dezembro, o Governador havia convocado uma sessão extraordinária e fazia uns 40 graus em Porto Alegre. Bebês maiores amamentados sentem fome com muita frequência e, com o calor, precisam ser hidratados. Foi memorável as idas e vindas de meu companheiro Duca com Laura. Era uma da madrugada quando decidi que ele não a tiraria mais de casa, que não era justo ela ser amamentada no carro ou no banheiro ou na gritaria dos corredores. Foi ali também que percebi que há doze anos eu era submetida a processos de votação noturnos – e que iso era sexismo. Meus colegas, homens, não têm majoritariamente, nenhuma responsabilidade no ambiente privado, familiar, doméstico. A rotina no plenário dos parlamentos não acompanha a rotina de horários da família, pois aos homens não cabem responsabilidades corriqueiras como buscar os filhos na escola, por exemplo.
Depois disso, passei a ouvir conselhos para que não amamentasse na Assembleia, para que deixasse Laura numa creche. Nem vou escrever sobre a quantidade de opiniões que nós, mães, ouvimos sobre como devemos criar nossas filhas. Também não vou me alongar sobre a culpa sem fim que imputam a nós: se deixamos na creche, somos ruins; se deixamos em casa, não estaremos permitindo que convivam com crianças; se amamentamos, é errado; se damos leite, em pó também é.
Vou me deter à percepção que toda a política é feita para a inexistência de mulheres em espaços de tomada de decisão e, principalmente, mulheres com filhos.
Toda ida com Laura a uma agenda, a uma sessão, a um compromisso virou, sem que eu percebesse, um gesto de resistência.
Um gesto de ousadia.
Percebi que, mesmo que eu explicasse que ela era amamentada, que ela estava feliz, agarrada comigo no sling, as pessoas se incomodavam com a presença dela. Na verdade, elas se incomodavam comigo. Comigo sendo mulher e mãe. Pois eu podia estar ali enquanto não dizia que o horário de almoço não era o correto para uma reunião, que depois das 21 horas preferia estar em casa para vê-la (nos dias em que a deixava com Duca), que a agenda de três dias deveria ter pausas para que ela respirasse.
À maternidade, tão “endeusada” pela sociedade, é reservado o espaço privado. A casa, a sala de amamentação. Percebi que o espaço público, sobretudo os espaços de poder, não tem espaço para nós. Por isso mesmo decidimos ficar. Eu e Laura. Para mostrar que lugar de mulher é em todo lugar. E qualquer lugar pode ser de qualquer mulher. Inclusive, das que decidem ser mães.
*Manuela d’Ávila é uma jornalista e política brasileira. filiada ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB). Foi deputada federal pelo Rio Grande do Sul entre 2007 a 2015 e líder de seu partido na Câmara dos Deputados, em 2013. Exerce atualmente o mandato de deputada estadual em seu estado. É mãe de Laura.