(Diário do Grande ABC, 21/06/2015) Além da antecipação das aposentadorias por idade e tempo de contribuição em cinco anos, o sistema de seguridade social brasileiro garante às trabalhadoras a licença e o salário-maternidade, em regra por 120 dias. Em todo o debate da reforma da previdência, as propostas são para reduzir sua amplitude, restringindo ou extinguindo esses direitos.
É possível, entretanto, reformar para avançar na promoção da emancipação honesta das mulheres para a vida livre e independente, com políticas públicas de previdência que não sejam meros prêmios de consolação pelas dádivas naturais da gravidez e da amamentação ou pela dupla jornada. As mulheres talvez tenham conquistado mais acesso ao trabalho de um século para cá, mas os salários ainda são menores e as tarefas domésticas ainda não são majoritariamente compartilhadas com os homens.
Estudos promovidos pelo Grupo de Pesquisa Seguridade e Gênero, na Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), liderado pela pesquisadora Regina Stela Correa Vieira, têm trazido luz a este debate. A licença e o salário-maternidade não precisariam impor o isolamento da mulher e da criança, se a licença e o salário-paternidade fossem sérios o suficiente para permitir colaboração masculina efetiva na atenção à mulher e à criança. Soluções como redução de jornada de trabalho de pais e mães no início da vida dos filhos, ou mesmo a integração ampla das crianças ao ambiente de trabalho (por meio da efetivação do direito à creche no local de trabalho), permitiriam repensar toda a preparação para a educação infantil, com consequências em todas as relações sociais, em poucas gerações.
Se houvesse, entre pessoas unidas com regime de comunhão de bens, algo como uma ‘comunhão da contribuição previdenciária’ que vinculasse cônjuges ou companheiros (as) de forma ampla, não haveria dependência de quem presta serviço doméstico a quem trabalha fora e as meias-aposentadorias seriam autônomas e não obrigariam um (a) e outro (a) à manutenção do laço familiar – que deve se perpetuar pela vontade do afeto, e não pela dependência econômica.
Essa contribuição compartilhada garantiria o custeio também de outra forma de proteção, hoje inexistente: se reconhecêssemos o divórcio e a violência doméstica e familiar como riscos sociais com cobertura previdenciária por tempo determinado, as mulheres poderiam se libertar efetivamente das relações de dependência – sem depender do arbítrio da justiça quando precisassem de alimentos. Tais prestações seriam seletivas e relacionadas à necessidade. Quanto menos mulheres delas precisassem, mais concretos seriam os efeitos da emancipação feminina, tanto no trabalho quanto na família.
Exemplares mulheres independentes são muitas, e merecem todas as honras além do Oito de Março. Mas não são todas. A família eudemonista, propugnada pelo direito civil-constitucional, implica a realização existencial plena de cada um dos indivíduos que a componha. Levar a previdência social das mulheres a sério pode permitir, por via oblíqua, que elas agreguem infinitos sentidos para o exercício da liberdade.
Material produzido por Noa Piatã Bassfeld Gnata, diretor jurídico do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário), doutorando e mestre em Direito do Trabalho e da Seguridade Social pela USP, Largo de São Francisco
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