Elas recebem menos que os homens não por um fenômeno de mercado, e sim por preconceito – um problema que prejudica as mulheres, suas famílias e a sociedade inteira
(Época, 31/07/2017 – acesse no site de origem)
Seria possível uma mulher “valer” mais dentro de casa sem ser remunerada, desempenhando o papel tradicional de “babá, cozinheira, lavadeira, passadeira, motorista, faxineira e professora particular”, além de “nutricionista, clínico geral e psicóloga”, em vez de trabalhando fora? Essa foi a tese defendida pelo economista Gustavo Cerbasi no artigo “O valor de uma mãe em casa”. Para analisar tema tão complexo e relevante, é essencial se basear em dados de pesquisas sérias e especializadas sobre o assunto, sem sair da análise econômica. Uma análise que contabilize apenas o salário da mulher versus os gastos que a ausência dela exija no cuidado dos filhos, além de incompleta, é equivocada, como mostra o relatório de 2016 do Center for American Progress.
O documento calcula os custos ocultos, para a mulher, de abandonar o trabalho remunerado e passar a trabalhar exclusivamente no cuidado dos filhos. Esses custos vão muito além dos salários que deixam de ser recebidos, chegando a 3,2 vezes o valor da simples remuneração. Isso porque deixar o trabalho remunerado reflete negativamente na aposentadoria e em outros benefícios, além de a mulher deixar de ter a perspectiva de aumentos salariais e trocas de emprego durante a carreira.
Além de receber cerca de 70% do salário do homem para fazer o mesmo trabalho, tendo a mesma formação (IBGE, 2015), a mulher sofre outras penalidades apenas por ser mulher. Segundo pesquisas da Universidade da Pensilvânia, o salário das mulheres diminui cerca de 7% por filho. Se a diferença no salário se devesse apenas ao período da licença-maternidade, mulheres ganhariam o mesmo que homens, exceto neste período. Contudo, verifica-se que esse “desconto” ou punição continua sendo aplicado às mulheres, mesmo após a idade fértil. Logo, tem-se mais uma evidência da falta de fundamento para o argumento de que a diferença salarial seria um “fenômeno de mercado”.
A situação é ainda mais preocupante no caso brasileiro, uma vez que 40% dos lares são chefiados por mulheres (IBGE, 2015). Assim, para quase metade das famílias, simplesmente não há como conceber o “valor de uma mãe em casa”. Aceitar essa discrepância salarial como fato natural do mercado é um problema, porque perpetua a desigualdade e agrava a situação de vulnerabilidade social de cada família chefiada por mulher.
Podemos pensar também no efeito coletivo – outras pesquisas recentes, como a análise da McKinsey Global Institute (MGI) em 95 países, demonstram que seriam adicionados US$ 28 trilhões à economia global até 2025 se todos os países atingissem a plena igualdade econômica entre homens e mulheres. Isso representaria um acréscimo ao PIB global quase equivalente às economias dos Estados Unidos e da China juntas.
Calcula-se esse impacto com base na eliminação não apenas da atual diferença salarial entre homens e mulheres para um mesmo trabalho com a mesma formação, mas também de outros bloqueios ao potencial de desenvolvimento dos países. Isso inclui diversas formas de trabalho não remunerado (geralmente no cuidado de familiares), a sub-representação econômica (como a discriminação na concessão de crédito), a sub-representação política e as diversas formas de violência contra a mulher.
O ganho decorrente de uma maior equidade de gênero seria ainda maior em países em desenvolvimento. A América Latina, por exemplo, seria enormemente beneficiada, com um aumento estimado de 10% de seu PIB.
No caso do Brasil, dar à mulher a real opção de continuar com sua carreira sem ser prejudicada – a despeito ou não de ter filhos – geraria um aumento de US$ 850 bilhões no PIB. O benefício também seria substancial em países desenvolvidos. No caso do Japão, país no qual as convenções sociais são muito fortes, o aumento de seu PIB seria de 13%.
São as tais “tradições” mencionadas por Cerbasi que estão levando o Japão a uma grave crise de natalidade, uma vez que o fardo da responsabilidade pelos filhos, carregado até o momento exclusivamente pela mulher, é alto demais para elas continuarem querendo tê-los. O país está tomando diversas medidas para mudar essa realidade que ameaça sua própria perenidade.
Adicionalmente, diversas evidências científicas demonstram que mulheres valorizadas na força de trabalho e na alta gestão das companhias geram maior inovação, melhores práticas em relação aos diversos grupos de interesse no negócio (stakeholders) e ao meio ambiente, além de apresentar maiores níveis de conformidade com a lei (compliance). Em outro trabalho recente, verificou-se que, para uma mesma infração ética no ambiente de trabalho, as mulheres eram punidas mais fortemente do que os homens. Ao serem mais pressionadas para exibir uma conduta ética, as mulheres acabam por se comportar mais dessa forma.
O valor de uma mulher no mercado de trabalho também tem reflexos na seleção dos melhores talentos. O Brasil é um dos países que mais sofrem com a escassez de profissionais qualificados. Em uma economia do conhecimento, essa falta na mão de obra é uma das responsáveis pelo menor desenvolvimento do país. Se as mulheres constituem 57% dos universitários e são a maioria entre os detentores de ensino superior (12,5% das mulheres completaram a graduação contra 9,9% dos homens), perdemos talentos quando elas se veem menos valorizadas no mercado de trabalho.
Ao entender que o filho não é responsabilidade exclusiva nem primordial da mulher, mas do casal e da sociedade, o chamado “risco associado ao gênero” deixará de existir. Aliás, essa é uma nova denominação para algo que já tem, há centenas de anos, nome e sobrenome: preconceito de gênero, vedado pela nossa Constituição e por diversos órgãos internacionais, como a ONU, para a qual erradicar preconceitos de gênero é uma meta do milênio.
É isso que permitirá à mulher escolher de fato o que é melhor para si e para seu arranjo familiar, a despeito de “tradições” que a limitam, bem como limitam a sociedade. Lugar de mulher é onde ela quiser e é nosso dever buscar fazer disso uma realidade para todas as brasileiras.
Angela Donaggio é professora e pesquisadora da FGV Direito SP. Fabiane Midori é estagiária do Grupo de Pesquisa em Direito e Gênero da FGV Direito SP.